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Qual a função do "capacete" na cabeça dos casuares?

- Atualizado no dia 16 de junho de 2024 -

          Similares a avestruzes e emas, os casuares (gênero Casuarius, família Casuariidae) são as maiores e mais massivas aves da Austrália e da Nova Guiné, e as maiores aves que habitam florestas. Os casuares não voam e usam suas poderosas pernas para navegar e explorar através da vegetação em busca de alimentos, e também para desferir letais chutes contra potenciais predadores ou ameaças! Além disso, possuem afiadas garras que tornam o chute ainda mais destrutivo (Fig.2). De fato, são comumente considerados uma das mais "perigosas" aves do mundo - mas não necessariamente atacam humanos sem qualquer motivo ou exibem agressividade em qualquer encontro, e casos de sérios acidentes envolvendo humanos parecem ser muito raros (Ref.1) (!). A plumagem preta dessas aves, junto com o pescoço roxo e azul, fornecem camuflagem para escondê-la no seu habitat - e, de fato, são difíceis de serem observados diretamente na vegetação densa mesmo com o grande  porte corporal. São cruciais para o equilíbrio ecológico, ao espalhar sementes de frutos diversos ao longo de grandes distâncias. Onívoros, se alimentam de frutas, fungos, invertebrados e, ocasionalmente, até mesmo pequenos mamíferos e répteis.

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(!) Aliás, embora um número de acidentes e perseguições envolvendo humanos e casuares tenha sido registrado nas últimas décadas - algo normal para interações diversas entre diferentes animais -, apenas duas mortes causadas por casuares têm sido reportadas. No primeiro caso, em 1926, envolvendo um adolescente de 16 anos de idade que atacou um casuar com um taco de beisebol (Ref.8). No segundo caso, em 2019 na Flórida, de um idoso de 75 anos de idade que entrou dentro de um cativeiro com dois casuares para coletar um ovo da ave, e aparentemente um macho cuidando do ninho reagiu para defender os ovos, desferindo múltiplos golpes com as garras (Ref.11). E observe que, no caso mais recente, a ave não estava nem mesmo no seu habitat natural e era mantida em uma propriedade privada nos EUA, provavelmente sob estresse (Ref.12). 

Figura 2. Pata de um casuar da espécie C. casuarius, mostrando as três longas (~10 cm) e afiadas garras. Poderosos chutes com essas garras podem ser letais. Essa ave podem pular até 2 metros de altura a partir do solo e pode correr com velocidade de até 50 km/h. Em raros "ataques" documentados dessas aves contra humanos, o casuar pulou sobre a pessoa para desferir os golpes. Ref.11

> É um mito ainda muito disseminado que essas aves são imprevisíveis ou muito agressivas. Casuares atacam humanos por razões muito específicas.

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            O casuar-do-sul (espécie C. casuarius) alcança uma massa corporal de até 58 kg (machos) e 76 kg (fêmeas). Habita a ilha da Nova Guiné e florestas úmidas no nordeste da Austrália, mas também podendo ser encontrado na Indonésia. Outras duas espécies, as quais ocorrem na Nova Guiné, são o casuar-do-norte (C. unappendiculatus) e o casuar-anão (C. benneti). As fêmeas de casuares possuem um porte ~30% maior que aquele dos machos. Essas aves também podem ser encontradas em várias das Ilhas Aru, na Indonésia. Com dieta rica em frutas, essas aves são importantes dispersadores de sementes, especialmente sementes de grandes dimensões e de plantas frutíferas exóticas (Ref.10). Podem também consumir pequenos animais de forma ocasional e oportunística.

Figura 3. As três espécies de casuarC. casuarius (foto maior), o C. unappendiculatus (foto menor à esquerda) e o C. benneti (foto menor à direita). Essas aves possuem uma altura de 1,3-1,5 metro quando adultas e podem viver até 40 anos de idade. Fotos: San Diego Zoo 

 

Figura 4. Os ovos dos casuares são facilmente reconhecíveis no seu habitat natural, devido à notável coloração verde. Fêmeas botam quatro ovos que os machos incubam por 2 meses e então cuidam dos filhotes por mais 9 meses. Foto: San Diego Zoo

          Respondendo finalmente à pergunta inicialmente proposta, a função biológica da dura estrutura no topo da cabeça dessas aves (capacete craniano) tem sido alvo de várias especulações e hipóteses, incluindo arma, ferramenta para a abertura de caminho em vegetações densas, elemento visual de comunicação social e até mesmo um "instrumento" de captação ou de ressonância sonora - nesse último caso, no sentido de amplificar vocalizações de baixa frequência (!). Porém, essas funções historicamente propostas entram em conflito com dados anatômicos e observacionais, ou são suportadas por limitada evidência. 

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> O capacete dos casuares é constituído essencialmente de queratina, a mesma proteína do cabelo, unha e chifre dos rinocerontes. O interior da estrutura exibe uma rede extensamente vascularizada. Filhotes saem dos ovos sem o capacete, desenvolvendo-o com o avanço da idade.

> Na espécie C. casuarius, esse capacete é formado por oito elementos ósseos independentes (Ref.4). As dimensões do capacete são tipicamente em torno de 13 cm de altura, 13,5 cm de comprimento e 5 cm de espessura (Ref.6).

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          Um estudo de 2019 trouxe convincente evidência de que esse capacete funciona como uma janela térmica que permite a dissipação de calor corporal - similar ao suor humano e a língua ofegante de cães (Ref.16). E o capacete atende às características de um dissipador térmico: não é um isolante e é muito vascularizado. Os casuares vivem em clima tropical, possuem grande porte corporal, densas e longas penas pretas, e, nesse sentido, estão sob forte pressão térmica, necessitando de eficientes mecanismos para dissipar o calor acumulado em excesso no corpo. Análises termográficas de infravermelho apontam que o capacete, de fato, atua como um radiador, transferindo calor para o ambiente a altas temperaturas e restringindo a perda de calor em baixas temperaturas (Fig.5). Isso também sugere que dinossauros do Mesozoico e pterossauros com estruturas similares podem também ter usado esses apêndices como meio de adaptação em ambientes tropicais. Se existem outras funções para o capacete dos casuares, é ainda incerto.

Figura 5. Casuar em diferentes temperaturas ambientes. Essas fotografias no infravermelho mostram que o capacete dessa ave serve, pelo menos em parte, como um radiador térmico. Quanto maior a temperatura, mais calor é dissipado no capacete (por m2), mas com a perda de calor sendo restrita em temperaturas baixas. Função similar é observada no bico de certas aves, como tucanos. Ref.16

(!) CURIOSIDADE:  Os casuares emitem um característico som de baixa frequência parecido com as reverberações de um trovão, que chegam até 32 Hz no C. casuarius e 23 Hz no C. benneti, e possivelmente podem alcançar menos de 20 Hz (Ref.4). Essa produção sonora pode servir para melhorar a comunicação entre membros da mesma espécie dentro da densa vegetação ou entre longas distâncias, incluindo para fins reprodutivos. No vídeo abaixo, é possível ouvir parte do espectro desse som produzido por um casuar-do-sul no habitat natural dessa ave (frequências mais baixas acompanhando as emissões sonoras não foram captadas devido a limitações técnicas do microfone utilizado) - esse tipo de vocalização de frequência muito baixa é até 40 dB mais alta do que o som de fundo do ambiente natural dessa espécie.

           

> Casuares-do-sul exibem uma grande variedade de vocalizações, incluindo altos chamados territoriais de baixa frequência, assobios, rosnados profundos e "tosses" (usados por machos adultos para manter contato com os filhotes). Com exceção de interações agonísticas, essa ave é geralmente silenciosa fora do período de acasalamento. Independentemente do período, fêmeas são muito mais vocais do que machos. Amplo espectro de vocalizações é observado em todas as espécies de casuares. Ref.13-15

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REFERÊNCIAS

  1. Kofron, C. (1999). Attacks to humans and domestic animals by the southern cassowary (Casuarius casuarius johnsonii) in Queensland, Australia. Journal of Zoology, 249(4), 375-381. https://doi.org/10.1111/j.1469-7998.1999.tb01206.x
  2. https://www.australiazoo.com.au/wildlife/our-animals/cassowary/
  3. https://www.chesterzoo.org/our-zoo/animals/southern-cassowary/
  4. Mack & Jones (2003). Low-Frequency Vocalizations by Cassowaries (Casuarius Spp.). The Auk, Volume 120, Issue 4, Pages 1062–1068. https://doi.org/10.1093/auk/120.4.1062
  5. https://anatomypubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ar.24477
  6. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/joa.13733
  7. https://jva.journals.ekb.eg/article_226455.html
  8. Keller M. D. (2009). Behaviour of Southern Cassowary 'Casuarius Casuarius' towards Intruders. The Journal of the Queensland Ornithological Society, Vol. 39, No. 2, 49-53. https://search.informit.org/doi/abs/10.3316/informit.720189639439182
  9. https://aszk.org.au/wp-content/uploads/2020/06/Southern-Cassowary-Casuarius-casuarius-johnsonii-Biggs-J.-2013.pdf
  10. Campbell et al. (2023). The southern cassowary (Casuarius casuarius johnsonii) remains an important disperser of native plants in fragmented rainforest landscapes. Austral Ecology, Volume 48, Issue 4, Pages 787-802. https://doi.org/10.1111/aec.13309
  11. Davis et al. (2022). Cassowary Attack: Utilizing the MARCH Mnemonic in Rare Events. Journal of Emergency Medical Services. https://www.jems.com/patient-care/cassowary-attack-utilizing-the-march-mnemonic-in-rare-events/ 
  12. https://www.jacksonville.com/story/news/crime/2019/04/15/florida-man-killed-on-his-farm-by-cassowary-he-owned/5432897007/ 
  13. Healy, T. P. (2022). Southern Cassowary (Casuarius casuarius), version 2.0. In Birds of the World (S. M. Billerman, Editor). Cornell Lab of Ornithology, Ithaca, NY, USA. https://doi.org/10.2173/bow.soucas1.02
  14. https://www.sfzoo.org/double-wattled-cassowary/
  15. https://animaldiversity.org/accounts/Casuarius_unappendiculatus/
  16. Eastick et al. (2019). Cassowary casques act as thermal windows. Scientific Reports 9, 1966. https://doi.org/10.1038/s41598-019-38780-8
  17. https://nationalzoo.si.edu/animals/southern-cassowary