Artigos Recentes

Existe relação entre incels e transtornos mentais?

 
          Indivíduos categorizados como "Incels" são caracterizados pelo celibato involuntário

          Celibato involuntário faz referência a indivíduos que desejam manter relações sexuais com outras pessoas mas, por motivos diversos, não alcançam esse objetivo. Desse grupo de indivíduos, temos um subgrupo conhecido como incels, cujos representantes são caracterizados como pessoas solitárias do sexo masculino e percebidos como indivíduos "que expressam seu ódio contra mulheres e homens sexualmente bem sucedidos, assim como ódio a si mesmo e humor bizarro" (Ref.1). Embora as atividades dos incels geralmente se limitem a comunidades na internet, ações violentas no mundo real têm sido também testemunhadas. Notavelmente, um ataque a tiros ocorrido no ano de 2014 em Isla Vista, na Califórnia, que culminou com a morte de 6 pessoas e 14 feridos e um atentado em Toronto, no Canadá, onde um autodenominado incel atropelou e matou 10 pessoas dirigindo uma van, em 2018.

          Desde 2014, quase 50 incidentes violentos têm sido documentados associados ao "movimento" incel.

          Em um desses trágicos incidentes, ocorrido no dia 12 de agosto de 2021, em Plymouth, Inglaterra, um adulto de 22 anos, Jake Davison, matou 5 pessoas e feriu mais outras três antes de tirar a própria vida. Eventualmente a polícia revelou que Jake participava de uma comunidade online de incels, lamentando sua virgindade e expressando ódio contra mulheres que supostamente estavam "negando sexo". Além disso, a investigação apontou que Jake tinha passagem em serviços de saúde mental e um diagnóstico de autismo.

          Nesse ponto, emergem algumas questões. A construção de um incel é simplesmente resultado de doutrinação ideológica? Incel é sinônimo de violência? Qual é a exata relação entre transtornos e condições mentais e inceldom?

- Continua após o anúncio -


   INCEL E A MANOSFERA

          O celibato involuntário é entendido como uma situação em que um indivíduo deseja manter relações sexuais, mas não tem a possibilidade de encontrar um parceiro interessado - ao longo de um período de vários meses ou anos - e sente-se incomodado com esse estado. Diferentes indivíduos com orientações sexuais e identidades de gênero variadas podem se reconhecer na situação de celibato involuntário: 

- pessoas comprometidas cujos parceiros não têm desejo de relacionar-se sexualmente com elas; 

- pessoas solteiras que nunca mantiveram relações sexuais;

- ou pessoas que já tiveram relações sexuais anteriormente, mas encontram dificuldade de encontrar um parceiro na situação atual. 

          O termo "incel" é derivado da expressão em inglês involuntary celibate ("celibato involuntário" no português). O "fenômeno" incel emergiu inicialmente na América do Norte e eventualmente se espalhou a nível global através da internet. Interessantemente, a origem do neologismo incel não possui relação inicial com indivíduos do sexo masculino: pode ser traçado até o ano de 1997, a partir de um site criado por uma estudante universitária Canadense queer, intitulado Alana’s Involuntary Celibacy Project ("Projeto do Celibato Involuntário de Alana") - cujo objetivo era discutir a prolongada falta de atividade sexual da estudante com outras pessoas e construir uma comunidade online que fosse inclusiva e auxiliasse pessoas de quaisquer identidades de gênero ou orientação sexual com dificuldades de estabelecer relacionamentos amorosos (Ref.2). A ideia para o projeto aflorou após sua fundadora ter iniciado tardiamente e com muito esforço seu primeiro namoro, em 1996, aos ~25 anos de idade e como resultado positivo de psicoterapia.

Figura 1. Quando criou o site, Alana estava vivendo em Toronto, Canadá. O site eventualmente se tornou um fórum para homens e mulheres falarem sobre o estado de solidão e discutirem os potenciais motivos impedindo relacionamentos amorosos. Duas pessoas que se conheceram no site inclusive acabaram se casando. Alana adotou o termo "involuntary celibate" para se referir aos membros da comunidade e mais tarde abreviou para "invcel", até alguém sugerir "incel" como mais pronunciável. O termo era usado no site para se referir a qualquer pessoa que estava sozinha, nunca teve sexo ou não conseguia estabelecer relacionamento há muito tempo. Inicialmente um fórum, mais tarde o projeto tomou a forma do site chamado IncelSupportRef.2-3

          Embora Alana descrevesse seu projeto como um ambiente agradável e seguro, sua comunidade também testemunhou o aparecimento de alguns homens aparentemente revoltados contra mulheres. Após alguns anos, Alana abandonou a comunidade por motivos pessoais, e permitiu que o local continuasse servindo ao propósito de acolher e ajudar outras pessoas. Com o tempo, a ideia da comunidade foi sequestrada e seus propósitos desvirtuados por jovens e adultos com intensa frustração sexual e/ou ódio, que culpam o mundo - e as mulheres em particular - pelos insucessos na vida sexual. Espalhando-se em diversos fóruns online (ex.: chans) a partir do início da década de 2000, a comunidade incel nos últimos anos se tornou sinônimo de ódio para a percepção pública - e, de fato, aceitando e promovendo abertamente atividades e conteúdos violentos e misóginos - e o termo "incel" se tornou pejorativo nesse contexto. A ascensão do "incel misógino" coincide com o ganho de popularidade de plataformas como o Reddit e o 4chan (Fig.2).  

Figura 2. O site 4chan, um fórum de imagens com formato anônimo de postagens, é atualmente conhecido pela significativa presença de incels. O site se esconde sob a máscara da "liberdade de expressão" para permitir a publicação de mensagens e postagens com teor misógino, racista e agressivo. Outro site com presença de incels é o Reddit, que abriga comunidades variadas para discussão de temas diversos. O Reddit manteve uma comunidade nomeada r/incels com aproximadamente 40 mil membros que foi fechada em 2017 devido ao alto nível de violência e discursos de ódio; em 2018, a comunidade Incels.me foi suspensa pelo mesmo motivo. Indivíduos incels responsáveis por chacinas possuem origem desses fóruns.

Figura 3. O site Incels.is - emergindo a partir do Reddit - é um dos maiores fóruns voltados exclusivamente para indivíduos incels, e atualmente conta com mais de 26 mil membros. Link para o site: https://incels.is/

------------

> Em 2018, Alana começou outro projeto chamado love, not anger, para combater o movimento incel misógino e violento. O projeto continuou ativo até 2020. 

> Talvez o indivíduo mais conhecido e referenciado na comunidade incel é Elliot Rodger. Em 2014, com 22 anos de idade, Elliot abriu fogo contra várias pessoas em Isla Vista, Califórnia, matando 6 pessoas, ferindo treze e cometendo suicídio em seguida. Elliot nutria forte ódio contra mulheres por não conseguir ter relações sexuais, e chegou a escrever um manuscrito detalhando sua vida desde a infância, descrevendo o quão negativamente a virgindade afetava sua vida e a intensa inveja que sentia de outras pessoas ao seu redor que mantinham relações sexuais. É frequentemente referenciado em fóruns incels como ER.

> Desde 2014, dezenas de incidentes violentos têm sido ligados à comunidade incel.

> No contexto contemporâneo onde o termo incel foi "sequestrado" pelos celibatários involuntários homens, Femcel é um termo que tem sido usado em comunidades online para fazer referência a mulheres que não conseguem relações sexuais ou um relacionamento de longa duração - apesar de querê-los - devido a fatores diversos, desde culturais até deficiências físicas, mentais ou cognitivas. Incels (homens) geralmente negam a existência de "incels femininos", alegando suposta vantagem do sexo feminino em encontrar parceiros sexuais como regra absoluta - algo obviamente incoerente e falso.

----------

          Uma definição contemporânea para o termo incel ainda é muito controversa, por causa da pluralidade geográfica, cultural, visões políticas, problemas enfrentados, atitudes e situações socioeconômicas dos indivíduos na comunidade associada. Em atuais debates públicos, acadêmicos e na mídia, o termo é tipicamente usado para fazer referência a "homens misóginos, heterossexuais e cisgêneros que são incapazes de assegurar uma relação sexual ou romântica com mulheres cisgêneras e heterossexuais" (Ref.4). Por outro lado, existem homens incels que não são necessariamente misóginos ou mesmo participam de fóruns ou grupos online. Além disso, em contraste com a percepção da mídia e do público em geral, a maioria dos incels não parece exibir traços de violência (Ref.5-6). Apenas uma minoria de incels parece abraçar a violência, glorificar assassinos incels, fantasiar sobre estupro e desdenhar das consequências desses atos, embora misoginia seja muito prevalente. Nesse sentido, uma definição mais razoável e inclusiva baseada na Ref.7:...

         ... Incel é um pessoa do sexo masculino cisgênera e heterossexual com uma dificuldade persistente de formar relacionamentos românticos ou sexuais apesar de esforços ou vontade nesse sentido, resultando em estresse psicológico. Essa experiência ou percepção estressante de rejeição forma parte da identidade dessa pessoa, de tal modo que ela tende a acreditar que não pode formar tais relacionamentos.

          A comunidade incel interage com outros grupos que apresentam em comum um interesse pela defesa dos direitos masculinos, constituindo um coletivo conhecido popularmente como "manosfera" (manosphere, em inglês), um termo com origem em 2009. A manosfera é composta quase exclusivamente por homens heterossexuais, e com participação cada vez maior de indivíduos mais jovens. Incels em geral tipicamente aceitam as crenças sobre atração sexual e papeis de gênero na sociedade defendidas na manosfera, culpando estruturas e ideais da sociedade assim como movimentos feministas.

            A manosfera é uma coleção de fóruns e outras plataformas online constituídos por homens reunidos por uma visão de mundo primariamente misógina, onde desumanização e ódio contra mulheres é entendido como uma solução simbólica para as frustrações de suas vidas, sejam elas financeiras, sociais ou sexuais. Comunidades na manosfera promovem um entendimento hierárquico das relações de gênero alimentadas por terminologias específicas, teorias pseudocientíficas, super-generalizações de conceitos científicos e categorizações de seres humanos baseadas na aparência física, riqueza e status social. Entre as crenças misóginas, os membros da manosfera nutrem em especial a ideia de que o feminismo arruinou o que eles percebiam como uma sociedade ideal (mulheres subjugadas, sem direito de escolha e sem significativo protagonismo). Embora a manosfera seja composta por fenômenos diversificados, observa-se comumente que o feminismo é visto como uma ameaça e o anti-feminismo se apresenta como um ponto em comum que liga suas diferentes expressões, bem como a noção de opressão masculina advinda das mulheres ou de outros homens. Para a manosfera, o feminismo provocou uma desvirilização do sexo masculino que precisa ser recuperada.

----------

> O conceito de "Pílula Vermelha" (Red Pill), que faz referência ao filme Matrix (1999), emerge justamente dessa luta da manosfera contra o feminismo ("guerra dos gêneros"). A pílula vermelha representaria o despertar dos homens em meio à alegada realidade de subjugação masculina e de "lavagem cerebral" sendo feita nos homens.

> Há uma percepção de que a filosofia da Pílula Vermelha, que possui fundamentos supostamente inspirados em alguns conceitos encontrados na psicologia evolutiva e na economia neoliberal, funcionaria como um antídoto para o feminismo - entendido enquanto estratégia das mulheres para assegurarem parceiros sexuais com boa genética e estabilidade financeira.


Figura 4. Em 2020, o controverso dono da Tesla, SpaceX e da plataforma X (ex-Twitter) fez menção à pílula vermelha sem explicitar o contexto: "Tome a pílula vermelha". Musk também frequentemente compartilha e parece apoiar conteúdo de perfis associados à manosfera. 

 > Com base em conceitos de seleção sexual - e ignorando fatores culturais e sociais -, a manosfera define que existem basicamente dois tipos de homens: machos alfas e machos betas. Indivíduos do sexo feminino buscariam relações sexuais com homens que se enquadram em um certo padrão de características que indicariam bons genes, mas também procurariam relações duradouras com homens com características diferentes, necessitando de apoio emocional e financeiro e segurança para sua prole. Na linguagem da manosfera, os alfas seriam aqueles que teriam um maior número de mulheres interessadas em sexo (monopólio sexual) devido às suas características – tanto evidências físicas de força e virilidade, quanto manifestações psicológicas de dominância -, enquanto os betas seriam eleitos para suprir as necessidades por segurança e apoio, ou seja, bons pais em potencial, mas suscetíveis a cuidar de filhos dos machos alfas (traições ou relacionamentos prévios). 

> Os machos betas são entendidos na manosfera, em comparação aos alfas, como tendo características mais femininas - tais como um desgosto por situações de risco, humildade e dependência da presença de mulheres -, sendo representados como fracos, carentes e avessos à pílula vermelha, o que os mantém em sua condição de submissão e padecimento frente às mulheres. Os betas seriam os homens que escolheram a Pílula Azul, permanecendo iludidos frente à realidade de avanço feminista. Mulheres explorariam recursos dos betas e procurariam manter relações sexuais com Alfas.

 

Figura 5. Um dos membros mais conhecidos da manosfera é Andrew Tate, um empresário e ex-kickboxer que se tornou um grande influenciador global nas redes sociais ao defender ideias misóginas e discursos conspiracionistas e negacionistas. Tate faz menção frequente a uma suposta matrix que estaria manipulando e alienando os "homens fracos". Foi detido pela polícia no final de 2022 e indiciado em junho deste ano, junto com seu irmão Tristan, na Romênia, acusados de envolvimento com tráfico humano, violações e formação de uma unidade de crime organizado. Além disso, os irmãos são acusados de múltiplos estupros. Ambos aguardam julgamento. Ref.8-9, 32

> Por fim, existe também o conceito de Pílula Preta (Black Pill), que faz referência principalmente à comunidade incel dentro da manosfera. Seriam indivíduos com uma visão desesperançosa da realidade, desprovidos de aparência física, genética e outros atributos que os tornariam permanentemente condenados a desvantagens críticas impossibilitando relacionamentos sexuais ou amorosos. Tipicamente esses indivíduos se veem como "sub-humanos" ou marginalizados (Ref.10).

> Esses conceitos e ideias têm sido massivamente propagados dentro e fora da manosfera em grande parte na forma de memes e outras formas comunicativas de fácil digestão pelo público geral. Meme é um termo apropriado da biologia, especificamente dos estudos do biólogo britânico Richard Dawkins, que denominou de meme qualquer unidade de transformação cultural, como a linguagem, que se modifica, multiplica e se alastra pelo território virtual.

> Considerado um dos pilares da "filosofia" RedPill, podemos destacar trechos do livro "O Macho Racional" (Tomassi, 2013) que resumem a ideologia geral da manosfera (Ref.11):

"Homens heterossexuais: vocês foram enganados por toda sua vida. Nossa cultura ginocêntrica colocou as  mulheres em um pedestal, idealizadas de um modo que sufocou a análise racional de sua natureza. [...]. Pois bem, hora de uma dose cavalar de pílula vermelha. Eis algumas verdades chocantes: Mulheres não se importam nem um pouco com os sacrifícios que um homem faz por elas. Se o marido vai para uma guerra e é derrotado e morto, ela se casa com um dos soldados do exército vencedor."

"Os homens são os verdadeiros românticos. Por sua natureza descartável, eles são mais propensos ao idealismo, a se entregar a um propósito. Mulheres, na realidade, são oportunistas. Por serem o lado preservado, elas sempre vão procurar otimizar suas possibilidades. Reprimir seus interesses sexuais não  faz você parecer mais confiável para uma mulher. Na verdade, essa atitude diminui suas chances de conseguir alguma intimidade. Músculos contam mais do que 'bom  humor' e 'personalidade' para conquistar uma mulher jovem e gostosa. Isso não é futilidade, é instinto evolutivo."

> Pickupartists (artistas  da  paquera) são parte da manosfera e que atuam explorando indivíduos dentro dessa esfera: são homens que ensinam técnicas de sedução e que, no final das  contas, são movidos apenas pelo interesse comercial imediato em vender cursos.

> Relevante apontar que existe, além de muita ignorância, machismo e argumentações empobrecidas, muita hipocrisia na manosfera. Por exemplo, homens nesse movimento tipicamente rejeitam ou ridicularizam mulheres que não exibem um "ideal" de beleza física; ou seja, são extremamente superficiais, espelhando como retratam de forma misógina as mulheres. Muitos são homens revoltados porque são rejeitados ou não ganham a atenção de uma pequena parcela de jovens mulheres com certo padrão "ideal" de beleza, e acabam descontando a raiva e frustração contra mulheres em geral - e ao mesmo tempo em que marginalizam a maior parte da população feminina.

> Nesse último ponto, é importante também apontar que, embora existam óbvios fatores de atratividade moldados por seleção sexual na nossa espécie, traços fenotípicos foram sexualmente selecionados em ambos os sexos. Preferência por certos traços físicos não é exclusividade de fêmeas humanas. E, mais importante, fatores sociais, cognitivos e culturais também são críticos na formação de casais e relacionamentos amorosos na nossa espécie. Um interessante estudo de 2017, por exemplo, encontrou evidência de que habilidosos contadores de história em grupos de caçadores-coletores são parceiros sociais preferidos e possuem maior sucesso reprodutivo (Ref.12). Em vários cenários, saber conversar, entreter e interagir com pessoas pode ser mais importante em grupos e sociedades humanas para relacionamentos amorosos do que simplesmente recursos financeiros e físicos, especialmente se o espectro de potenciais parceiros românticos for ampliado além da "capa do livro". 

Leitura recomenda:


> É interessante mencionar um estudo publicado recentemente no periódico Culture and Evolution (Ref.13) sugerindo que, sob as lentes da psicologia evolutiva, homens [Homo sapiens machos] incels se reúnem em grupos na manosfera para tentar, de forma agressiva (ou violenta) e cooperativa, eliminar competição sexual e driblar a escolha de parceiros por mulheres [H. sapiens fêmeas].

----------

            Ainda que movimentos em defesa dos direitos dos homens tenham sido observados desde o final do século XIX e se manifestado ao longo do século passado, a expansão da internet possibilitou a construção da manosfera enquanto uma coletânea de materiais disponíveis em blogs, sites, fóruns, grupos e páginas em redes, sociais e canais do YouTube, com características próprias que a distinguem dos movimentos off-line – heterogeneidade, descentralização e mutabilidade, com seus conteúdos sendo acessados, editados e contestados por diversos indivíduos, com suas intenções e entendimentos particulares sobre o assunto (Ref.1). 

          A subcultura incel inserida na manosfera é marcada e alimentada por "sentimento de merecimento", misoginia, inveja, fatalismo e vitimismo. A filosofia incel nesse contexto é centrada no entendimento da sociedade como uma hierarquia, onde o lugar das pessoas é determinada pela aparência e onde personalidade não possui qualquer influência na capacidade de conquista sexual ou romântica de um homem. Incels percebem a si mesmos como presos no fundo dessa hierarquia, enquanto que mulheres são vistas como "guardiãs sexuais" que fazem decisões baseadas em atratividade, dimensões corporais (ex.: altura), etnicidade e riqueza (recursos financeiros). Eles acreditam que os homens mais atrativos e idealizados (Chads) atraem as mulheres mais atrativas (Stacys), deixando as mulheres menos atrativas para homens em hierarquias medianas (Normies) e nenhum para os incels (Ref.14). Incels geralmente consideram a atividade sexual como determinante do valor de um homem e, ao negá-los sexo, mulheres os tornariam inúteis - alimentando desespero, desesperança e ódio messe grupo.

           Embora a comunidade ou esfera incel (incelsphere) englobe um espectro de comportamentos - desde homens procurando isolamento até homens que buscam por meios de controlar mulheres para a satisfação sexual imediata -, na parte majoritária desse espectro estão aqueles inseridos na ideologia da Pílula Preta. Incels que "tomam" essa pílula aceitam um destino niilista de inferioridade geneticamente determinado e perdem a esperança de estabelecer qualquer relacionamento sexual. É sugerido que até 95% dos incels acreditam na pílula preta (Ref.5). Em contraste com comunidades na manosfera que oferecem estratégias de auto-melhoramento e de conquista sexual, incels que aceitam a pílula preta não mais acreditam que suas alegadas desvantagens físicas podem ser consertadas ou superadas no sentido de interagir com um parceiro íntimo. Nesse extremo, uma escolha pode potencialmente tomar forma: suicídio e/ou tirar a vida de outras pessoas como vingança contra a sociedade.

----------

> Em 2015, após proclamar "Aqui eu estou, 26 anos, sem amigos, sem emprego, sem namorada, um virgem", Chris Harper-Mercer matou nove pessoas, ferindo outras oito e, finalmente, cometeu suicídio.

> Existe também um componente racista na comunidade incel, onde homens e mulheres brancas são tipicamente retratados como superiores e representantes ideais de Chads e Stacys (ideologia Racepill). Promovendo ideias como Just Be White ("Apenas Seja Branco") e whitemaxxing, membros da comunidade incel defendem que para aumentar a hierarquia de atratividade basta adotar estratégias que tornam a pessoa "mais branca" - desde clareamento de pele até mudança de nome (Ref.15). Outros termos têm sido usados dentro da comunidade para fazer referência a outros esteriótipos raciais; por exemplo, para Chads "não-caucasianos": Tyrone (Pretos), Chadriguez (Latinos), Chadpreet (Sul-Asiáticos), Chang (Leste Asiáticos/Orientais), Chaddam (Árabes). Incels também comumente se referem a pessoas que julgam não ter boa aparência como "sub-humanos". Porém, não é verdade a ideia comum de que a maioria dos incels são 'brancos'; existe bastante diversidade nesse sentido.

> Lembrando que, em termos biológicos, não existem raças [subespécies] humanas. Para mais informações: 


> De acordo com os incels, os Chads são responsáveis pela maioria das atividades sexuais entre homens, algo frequentemente referido nos fóruns como "regra 80/20", ou seja, que 80% das mulheres fazem sexo apenas com os 20% dos homens fisicamente "superiores". Nesse sentido, alguns incels defendem ideias mirabolantes como "Marxismo Sexual" ou "retorno à monogamia estrita" para uma melhor distribuição das mulheres entre os homens. Também criticam o feminismo, argumentando que antes das conquistas de direitos pelas mulheres no século XX, as mulheres em geral eram mais prováveis de estabelecer relação com os outros 80% dos homens [rejeitados] por causa da necessidade de segurança financeira e física.

> Entre os membros da manosfera, incels tendem a ser menos exigentes com a aparência física e outras características de uma potencial parceira romântica ou sexual, e tendem a superestimar a importância da atratividade física para a escolha de parceiros por mulheres. Ref.16

> Dentro de fóruns habitados por incels, existem vários termos atípicos criados e comumente usados pelos membros para fazer referência a elementos diversos da cultura incel. Exemplos: foid, toilet e femoid são termos usados com muita frequência e que visam desumanizar e fazer referência a mulheres; fakecel é usado para fazer referência a indivíduos que não são mas se passam por incels; ascend faz referência a incels que conseguiram transar ou estabelecer um relacionamento romântico. Para a descrição de outros termos: Incel Terminology (página no Reddit).

----------

           A ideologia incel centrada na ideia da pílula preta tem sido descrita como uma crença extremista de supervalorização, a qual enfatiza a natureza compartilhada da crença por outros em um grupo cultural, subcultural ou religioso do indivíduo. Ao longo do tempo essa crença cresce mais dominante, refinada e resistente a desafios. Intenso comprometimento emocional para uma crença extremista de supervalorização pode resultar em um indivíduo protagonizando comportamento violento em seu próprio nome. Dentro da manosfera, incels podem transformar o percebido status masculino de inferioridade em arma para legitimar misoginia e supremacia masculina (Ref.17-18).

           Nesse último ponto, um estudo de 2022 publicado no periódico BJS (Ref.19) analisou quase 3,7 mil comentários relacionados ao ataque incel de 2018 em Toronto, Canadá - onde um autodeclarado incel, Alek Minassian, atropelou pedestres com uma van matando e ferindo várias pessoas - e encontrou que os incels da manosfera veem violência em massa como instrumental, servindo a quatro principais propósitos: 

- reunir atenção do público e da mídia;

- promover vingança;

- reforçar masculinidade;

- gerar mudanças políticas.

           Os autores do estudo concluíram que essa visão suporta a classificação dos incels misóginos como um potencial grupo terrorista e a supremacia masculina como base para terrorismo.

----------

> Incels na manosfera têm sido comumente descritos como alinhados à nova Direita (alt-right), devido ao posicionamento anti-feminista e crença de que são vitimizados pela sociedade do pós-feminismo. Porém, em termos de políticas públicas, incels em geral não seguem uma linha necessariamente à direita. Evidências apontam que muitos se posicionam ao centro ou mesmo à esquerda em temas diversos, incluindo tolerância aos homossexuais - embora exista homofobia em fóruns de incels. Ref.5

----------


   PRIMEIRO ATAQUE INCEL?

           Muitos incels veneram assassinos em massa como Alek Minassian e Elliot Rodger, referenciando-os como "heróis" e "santos" e caracterizando-os como vítimas da sociedade. Estudos têm sugerido que incels celebram assassinatos em massa como um meio para recrutar outros homens, para justificar violência como vingança contra a sociedade e para situar violência como um meio de alcançar mudanças políticas que beneficiam homens. Outro assassino em massa muito popular entre incels é o Canadense Marc Lépine, também referenciado dentro da comunidade incel.

          Em 6 de dezembro de 1989, Lépine, com 25 anos de idade, entrou na Escola Politécnica de Montreal, Canadá, armado com um rifle semi-automático (Ruger Mini-14) e uma faca. Após entrar em uma sala de aula, ele separou os alunos pelo sexo ("garotas à esquerda e rapazes à direita"), ordenando aproximadamente 50 homens a deixar o local. Lépine, então, disse "Eu estou lutando contra o feminismo" e abriu fogo contra as 9 mulheres que permaneceram na sala de aula, atirando da esquerda para a direita e matando seis pessoas e ferindo três. Após essa execução, Lépine continuou seu ataque em outras áreas da escola, assassinando 14 mulheres, ferindo 10 mulheres e ferindo 4 homens. Ele, então, tirou a própria vida, deixando para trás uma nota de suicídio reclamando que homens são oprimidos e afirmando que seu objetivo era mandar as "feministas", que "arruinaram" sua vida e o privaram de "alegria", "para o criador delas".

          O Canadá reconhece o assassinato em massa conduzido por Lépine ("Massacre de Montreal") como um ataque anti-feminista e o dia 6 de dezembro como o Dia Nacional de Lembrança e Ações sobre Violência Contra Mulheres. Em contraste a esse memorial, o trágico evento é celebrado por misóginos e supremacistas masculinos. Na literatura acadêmica, é argumentado que Lépine protagonizou o primeiro ataque incel conhecido na história, devido ao seu histórico marcado por dificuldade de interação social, aparente inconformação com a aparência física, isolamento e aparente vontade de ter - mas não conseguir - um relacionamento romântico com mulheres (Ref.20).

          É sugerido que incels valorizam Lépine acima de outros assassinos em massa porque ele canalizou a violência especificamente contra mulheres (Ref.18).


   "REIS DA TROLAGEM"

          É relevante realçar que muitos estudos e exploração da mídia sobre a comunidade incel são baseados principalmente nas mensagens e textos em fóruns online produzidas por indivíduos anônimos, e não na análise de reais indivíduos incels. Ou seja, são análises observacionais e indiretas. Um estudo publicado em 2023 no periódico Journal of Crime and Justice (Ref.21) trouxe um alerta nesse sentido para a comunidade acadêmica, ao investigar a percepção de 14 indivíduos autoidentificados como incels sobre o conteúdo que circula em fóruns online. 

          As autoras desse estudo levantaram a possibilidade de que muitas mensagens de ódio, polêmicas e chocantes são postadas essencialmente para chamar a atenção e criar maior interação (curtidas, comentários, etc.), algo que espelha como pessoas diversas em redes sociais - incels ou não - atuam para gerar o máximo de engajamento possível. Outra possibilidade é que muitas mensagens mais impactantes são uma exacerbação emocional online do incel, mas que não necessariamente espelham o comportamento ou atitudes da pessoa no mundo real. O estudo - e participantes analisados - também lembrou que nem todos nos fóruns de temática incel são necessariamente reais incels, e às vezes podem estar presentes como membros até mesmo pessoas querendo "zoar" o espaço.

          Obviamente, essas possibilidades não tornam as mensagens preconceituosas e violentas menos recrimináveis, e esse tipo de conteúdo pode contribuir para normalizar ou potencialmente incentivar violência no mundo real dependendo do contexto e nível de vulnerabilidade dos integrantes nos grupos online. E, de fato, vários eventos de extrema violência no mundo real têm sido protagonizados por incels. Essa preocupação é especialmente válida para conteúdos envolvendo a temática do suicídio.

- Continua após o anúncio -


   MENTALCELS E NEURODIVERSIDADE

          Ser um incel pode se referir à identidade (ex.: perceber a si mesmo como um incel), ideologia (ex.: ter crenças consistentes com a visão de mundo incel) e/ou à afiliação (ex.: ser membro de um grupo de pessoas que são incels). É provável que o grau para cada um desses aspectos definindo o "status de incel" (inceldom) varia entre os indivíduos e ao longo de um contínuo (Ref.22).

          Como a emergência e estabelecimento da comunidade incel na esfera online é relativamente recente, análises demográficas e observacionais dessa subcultura são limitadas em geral a pesquisas distribuídas por moderadores de fóruns online e estudos acadêmicos explorando esses fóruns. Incels são demograficamente, etnicamente e religiosamente diversos, e problemas psicológicos associados a esse grupo têm relação com imagem corporal, timidez, deficiência em habilidades sociais, autismo, bullying, inexperiência sexual e romântica, solidão, depressão e pensamentos suicidas (Ref.23-24). Em especial, é aparentemente alta a incidência de depressão e idealização suicida (Ref.5, 24). 

          Uma pesquisa publicada em 2020 (Ref.25), envolvendo a participação de 665 incels, revelou que os participantes eram homens jovens, com idade entre 18 e 30 anos, que viviam com seus pais e não tinham nenhuma experiência íntima com o sexo oposto. A maioria dos participantes reportaram insatisfação nas suas vidas e 95% responderam que a ideologia da pílula preta refletiam de forma acurada a realidade por eles enfrentada. Cerca de 68% e 74% dos participantes reportaram depressão e ansiedade, respectivamente, e 40% reportaram um diagnóstico de autismo. Outras pesquisas similares sugerem que sintomas depressivos e de ansiedade são comuns entre incels.

           Nesse caminho, transtornos mentais parecem afetar parte considerável ou a maioria da comunidade incel (Ref.27). E existe inclusive um termo na manosfera usado para caracterizar indivíduos cujo inceldom é atribuído a problemas mentais: mentalcels. O infame Elliot Rodger - representante extremista da pílula preta e que inspirou múltiplos ataques nos últimos anos com dezenas de mortes - possuía um diagnóstico de autismo (!) e prolongado tratamento com medicamentos psiquiátricos.

----------

IMPORTANTE realçar que indivíduos com transtornos mentais não estão necessariamente sob maior risco para comportamento violento. É um mito que pessoas violentas ou que praticam atos violentos são em sua maioria afetados por transtornos mentais. A realidade é contrária: pessoas com transtornos mentais são vítimas frequentes de violência. Por outro lado, certos transtornos mentais (ex.: depressão) podem contribuir para a condição de celibatário involuntário nos indivíduos afetados e favorecer a entrada desses últimos na comunidade incel ou mesmo torná-los vulneráveis ao radicalismo.

Leitura recomendada


(!) Apesar de ser referido comumente como transtorno do espectro autista, autismo não é considerado um transtorno mental, mas uma condição de neurodesenvolvimento que tipicamente se manifesta no início da infância. Como é um espectro, os traços autísticos variam em severidade e em qualidade. Tipicamente o autismo envolve dificuldades sociais de interação e de comunicação e pode incluir padrões repetitivos de comportamento, uma preferência por rotina e previsibilidade, e, às vezes, intensos interesses especiais. 

Para mais informações:

----------

            Evidências acumuladas - embora limitadas em termos de rigor científico - sugerem que pode existir uma correlação específica entre autismo e atividade incel (Ref.27). É sugerido que aproximadamente um terço dos incels na manosfera podem potencialmente ser diagnosticados dentro do espectro autista (Ref.5). Taxas reportadas de diagnósticos formais de autismo em pesquisas online é de ~20% (Ref.32). Esses números são mais do que expressivos considerando a taxa global de prevalência para o autismo, em torno de 0,6%, e prevalência estimada de 3,6% na população masculina adulta nos EUA (Ref.27). Algumas das dificuldades associadas ao autismo podem aumentar vulnerabilidade do indivíduo em ser arrastado para a ideologia incel (orquestrada por regras) e aumentar o risco de radicalização. Fatores chaves provavelmente associados incluem estilo cognitivo caracterizado por pensamento e interpretações literais, resultando em ingenuidade social e problemas em formar relações íntimas. Certos indivíduos com autismo podem ser particularmente vulneráveis à natureza online da comunidade incel por causa de problemas para compreender relacionamentos amorosos e dinâmicas associadas. Além disso, co-ocorrência de condições como depressão e ansiedade estão frequentemente presentes no autismo.

----------

> Por exemplo, na escala de diagnóstico RAADS-14, o autismo é caracterizado por certas ansiedades sociais (ex.: dificuldade funcional em situações sociais, dificuldade de fazer amigos), mentalização deficiente (ex.: dificuldade em interpretar os sentimentos e gestos de outras pessoas) e reatividade sensorial (ex.: um sentimento de sobrecarga sensorial e uma necessidade de isolamento para "fechar" os sentidos).

----------

          Em 2021, a jornalista investigativa Naama Kates entrevistou no seu podcast Incel uma pessoa ("K") que se identificava como um incel e como alguém no espectro autista. Na entrevista, K questionou a ênfase na aparência física para a caracterização do incel e explicou como ele vê as causas do "mundo incel" (inceldom):

"A maioria dos incels são incels por causa de condições mentais, não por causa da aparência. Portanto, o grande problema é esse: vamos imaginar que você possui uma aparência mediana ou um pouco abaixo disso; se você é um neuro-típico, se você não possui autismo, você é capaz de conseguir uma namorada apenas ao falar com uma garota, por exemplo; você consegue namorá-la no ensino médio, é ainda possível, acredite ou não [...] mas se você é autista, está acabado para você."

"Era impossível para mim criar uma conexão com garotas e mulheres. Naquela época, eu não sabia o que era. E, então, eu sempre tentava encontrar uma namorada, e eu falava para mim mesmo que se eu não conseguisse uma namorada até os 18 anos de idade, eu ia me matar. Todo mundo ao meu redor tem uma namorada. Todo mundo ao meu redor está fazendo sexo [...]"

"Eu perdi muito peso, melhorei minha aparência, e eu tentei fazer isso [conseguir uma namorada], mas o problema é que tudo foi para nada. Você sabe por quê? Porque, como fui descobrir, eu tenho autismo. Eu estou no espectro autista. E isso me causou tanta dor e problema durante o ensino médio, durante a faculdade, e essa é a principal razão do porquê eu sou um incel."

          De fato, autismo é um tema frequente de fóruns de incels. E embora autismo não esteja diretamente ligado a comportamentos violentos, em alguns contextos a combinação de certas características podem levar a surtos e comportamento criminoso. Por exemplo, dificuldades com regulação emocional e baixo controle de impulsos, combinado com estilos cognitivos específicos associados com autismo, como pensamento literal, podem aumentar a vulnerabilidade para engajamento em violência. Com base em estatísticas de alguns estudos, a minoria radicalizada de incels são mais prováveis de estarem no espectro neuro-divergente com um diagnóstico formal (Ref.27).

          Estudos também têm apontado que fóruns online podem funcionar como câmaras de ressonância para ideias negativas, particularmente para aqueles que possuem dificuldades para se comunicar com outras pessoas (Ref.28). Solidão - um traço muito comum entre os incels - é exacerbada ao invés de ser aliviada na comunidade incel online, ampliando o mecanismo afetivo de ressentimento que transforma solidão em emoções antagonistas (Ref.29). Nesse último ponto, isolamento social tem sido recentemente realçado como aspecto chave do inceldom, um fator que pode explicar o porquê dos incels reagirem de forma tão negativa à dificuldade de estabelecer relações românticas e sexuais: falta de suporte social (Ref.29-30). Boa parte dos incels em fóruns online reportam que não possuem amigos, e frequentemente culpam o autismo e a aparência física por tal condição. De fato, esse é um tópico comumente discutido nesses espaços. Um exemplo de comentário em um fórum incel no Reddit (r/Braincels): 

"incels não estão atrás apenas de sexo... o que eles realmente querem é afeição e uma ligação emocional genuína. Alguns dizem que eles não se importariam com sexo contanto que pudessem experienciar amor. Alguns até mesmo dizem que eles seriam felizes se apenas pudessem ter um amor platônico ao invés de um amor romântico (alguns incels possuem pouquíssimos amigos ou nenhum amigo)."

           E o próprio meio virtual favorece o isolamento social ao reduzir interação social interpessoal no mundo real, o que pode gerar um ciclo de retroalimentação para incels que mergulham nas comunidades online.

           Por outro lado, como as taxas de autismo na comunidade incel são oriundas de auto-reportes, questionários online ou diagnósticos retrospectivos seguindo eventos de homicídios e suicídios, a associação deve ser encarada com cuidado. Um estudo de 2023 inclusive sugeriu que muitos incels podem estar usando o preconceito contra o autismo para vitimização e justificar misoginia online (Ref.31). Outro ponto importante é não inferir que todos os homens com autismo estão sob risco de entrar para a comunidade incel. Pode ser que um subgrupo particular de indivíduos em certas circunstâncias é mais vulnerável. 

          Além de autismo, depressão e ansiedade, transtorno de personalidade narcisística pode estar associado aos incels na manosfera. Traços de grandiosidade, pretensiosidade, merecimento e inveja extrema de outras pessoas que mantêm relações sexuais são comuns na comunidade incel e na manosfera em geral - algo ilustrado em especial e abertamente pelo caso Elliot Rodger - e estão ligados ao narcisismo. E a co-ocorrência de autismo e de narcisismo pode ser uma combinação particularmente explosiva, aumentando o risco de alguém com autismo engajar em comportamento violento (Ref.27). 

Figura 5. Fatores de risco associados com indivíduos incels na manosfera. Ref.27

           Abuso (ex.: histórico de bullying), transtorno do estresse pós-traumático e transtorno bipolar têm sido também associados aos incels (auto-reportes e diagnósticos formais). Aliás, outro fator comumente compartilhado por indivíduos no espectro autista é um histórico de bullying na escola, este o qual pode nutrir em certos indivíduos e circunstâncias respostas de ódio contra a sociedade.

          Por fim, o avanço das redes sociais e a crescente invasão da internet e das suas ferramentas na vida das pessoas também podem causar confusão na seleção de potenciais parceiros amorosos e dificultar o estabelecimento efetivo de relacionamentos no mundo real. Em especial, a exposição online cada vez maior a conteúdo visual sexualmente estimulante, fotos artificialmente modificadas ou modelos físicos que não espelham típicas pessoas no dia-a-dia, concomitante com interação social no mundo real cada vez menor, podem alterar significativamente os padrões e expectativas para a escolha de parceiros românticos no mundo real em relacionamentos de curto a longo prazo - criando mais barreiras para pessoas (homens e mulheres) com dificuldade de interagir com outras pessoas ou que buscam relações além da "impulsividade sexual".


REFERÊNCIAS

  1.  Ruffo, E. S. (2021). O Fenômeno Contemporâneo dos Incels: uma investigação psicanalítica. Universidade Estadual de Maringá [Tese]. Link do PDF
  2. https://www.lovenotanger.org/
  3. https://www.bbc.co.uk/programmes/p06jmmlm [Entrevista com Alana]
  4. Czerwinsky et al. (2023). Misogynist incels gone mainstream: A critical review of the current directions in incel-focused research. Crime, Media, Culture: An International Journal, Volume 20, Issue 2. https://doi.org/10.1177/17416590231196125 
  5. Tirkkonen & Vespermann (2023). Incels, autism, and hopelessness: affective incorporation of online interaction as a challenge for phenomenological psychopathology. Frontiers in Psychology, Volume 14. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2023.1235929
  6. https://www.gov.uk/government/publications/predicting-harm-among-incels-involuntary-celibates/predicting-harm-among-incels-involuntary-celibates-the-roles-of-mental-health-ideological-belief-and-social-networking-accessible
  7. Sparks et al. (2023). An Exploratory Study of Incels’ Dating App Experiences, Mental Health, and Relational Well-Being. The Journal of Sex Research. https://doi.org/10.1080/00224499.2023.2249775
  8. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/andrew-tate-sera-julgado-por-trafico-e-estupro-diz-tribunal-romeno/ 
  9. https://apnews.com/article/andrew-tate-romania-court-travel-ban-european-union-15e96649e66eb820ed5729923a6d287d 
  10. Daly & Reed (2022). “I Think Most of Society Hates Us”: A Qualitative Thematic Analysis of Interviews with Incels. Sex Roles 86, 14–33. https://doi.org/10.1007/s11199-021-01250-5
  11. Lima-Santos & Santos (2022). Incels e Misoginia On-line em Tempos de Cultura Digital. Estudos E Pesquisas Em Psicologia, 22(3), 1081–1102. https://doi.org/10.12957/epp.2022.69802
  12. Smith et al. (2017). Cooperation and the evolution of hunter-gatherer storytelling. Nat Commun 8, 1853 (2017). https://doi.org/10.1038/s41467-017-02036-8
  13. Baselice, K. A. (2024). Analyzing Incels through the lens of evolutionary psychology. Culture and Evolution, Volume 20, Issue 1. https://doi.org/10.1556/2055.2022.00016
  14. Broyd et al. (2024). Incels, violence and mental disorder: a narrative review with recommendations for best practice in risk assessment and clinical intervention. BJPsych Advances. 2023;29(4):254-264. https://doi.org/10.1192/bja.2022.15
  15. Gheorghe, R. M. (2023). “Just Be White (JBW)”: Incels, Race and the Violence of Whiteness. Affilia, Volume 39, Issue 1. https://doi.org/10.1177/08861099221144275
  16. Costello et al. (2023). The Mating Psychology of Incels (Involuntary Celibates): Misfortunes, Misperceptions, and Misrepresentations. The Journal of Sex Research. https://doi.org/10.1080/00224499.2023.2248096
  17. Halpin, M. (2022). Weaponized Subordination: How Incels Discredit Themselves to Degrade Women. Gender & Society, 36(6), 813-837. https://doi.org/10.1177/08912432221128545
  18. Halpin et al. (2024). A solider and a victim: Masculinity, violence, and incels celebration of December 6th. Canadian Review of Sociology/Revue canadienne de sociologie, Volume 61, Issue 1, p. 7-24 https://doi.org/10.1111/cars.12460
  19. O'Donnell & Shor (2022). "This is a political movement, friend": Why 'incels' support violence. BJS, Volume 73, Issue 2, Pages 336-351. https://doi.org/10.1111/1468-4446.12923
  20. Bloom, M. M. (2022). The First incel? The legacy of Marc Lépine. The Journal of Intelligence, Conflict, and Warfare, 5(1), 39–74. https://doi.org/10.21810/jicw.v5i1.4214
  21. Daly & Nichols (2023). 'Incels are shit-post kings': incels’ perceptions of online forum content. Journal of Crime and Justice, Volume 47, Issue 1. https://doi.org/10.1080/0735648X.2023.2169330
  22. Maryn et al. (2024). Identifying Pathways to the Incel Community and Where to Intervene: A Qualitative Study with Former Incels. Sex Roles 90, 910–922. https://doi.org/10.1007/s11199-024-01478-x
  23. Stijelja & Mishara (2023). Psychosocial Characteristics of Involuntary Celibates (Incels): A Review of Empirical Research and Assessment of the Potential Implications of Research on Adult Virginity and Late Sexual Onset. Sexuality & Culture 27, 715–734. https://doi.org/10.1007/s12119-022-10031-5
  24. Tastenhoye et al. (2023). Incels: An Introduction for Mental Health Clinicians. Journal of Psychiatric Practice, 29(5):p 384-389. https://doi.org/10.1097/PRA.0000000000000738
  25. Cook et al. (2024). The mental well-being of involuntary celibates. Personality and Individual Differences, Volume 218, 112474. https://doi.org/10.1016/j.paid.2023.112474
  26. https://www.adl.org/blog/online-poll-results-provide-new-insights-into-Incel-community
  27. Broyd et al. (2023). Incels, violence and mental disorder: a narrative review with recommendations for best practice in risk assessment and clinical intervention. BJPsych Advances, 29(4):254-264. https://doi.org/10.1192/bja.2022.15
  28. Tietjen & Tirkkonen (2023). The Rage of Lonely Men: Loneliness and Misogyny in the Online Movement of “Involuntary Celibates” (Incels). Topoi 42, 1229–1241. https://doi.org/10.1007/s11245-023-09921-6
  29. Sparks et al. (2024). One is the loneliest number: Involuntary celibacy (incel), mental health, and loneliness. Current Psychology 43, 392–406. https://doi.org/10.1007/s12144-023-04275-z
  30. Papandreou et al. (2024). Rot, rage and blame: A qualitative IPA exploration of identity development and experiences of self-identified incels. [Preprint]. https://doi.org/10.13140/RG.2.2.28112.93442
  31. Gheorghe & Clement (2023). Weaponized Autism: Making Sense of Violent Internalized Ableism in Online Incel Communities. Deviant Behavior. https://doi.org/10.1080/01639625.2023.2268253
  32. Tirkkonen & Vespermann (2023). Incels, autism, and hopelessness: affective incorporation of online interaction as a challenge for phenomenological psychopathology. Frontiers in Psychology, Volume 14. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2023.1235929 
  33. https://www.bbc.com/news/articles/cwyje823er4o