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Afinal, pandas são carnívoros, onívoros ou herbívoros?

- Atualizado no dia 4 de março de 2024 -

          Pandas-gigantes, ou simplesmente pandas, são mamíferos de médio porte da ordem Carnivora, mas que apresentam uma dieta bem incoerente em relação ao esperado para esse clado: se alimentam exclusivamente de bambu. Embora ainda conservem um número de características de carnívoros, esses animais evoluíram diversos traços anatômicos, morfológicos e metabólicos típicos para uma dieta herbívora. Nesse contexto, existem estudos nos últimos anos que entram em conflito sobre a real natureza da dieta desses animais, com alguns autores argumentando que ela ainda é essencialmente carnívora em termos de aproveitamento macronutricional e outros defendendo que não apenas a dieta dos pandas, mas de todos os ursos modernos, é onívora e marcada com um baixo teor proteico. Nesse último cenário, especialistas têm inclusive acusado os zoológicos de estarem reduzindo drasticamente o tempo e a qualidade de vida dos ursos em cativeiro ao alimentá-los com uma dieta carnívora, rica em proteínas. 

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   PANDAS-GIGANTES

           O Panda-Gigante (Ailuropoda melanoleuca) é considerado um tesouro nacional na China e é uma espécie icônica para a causa conservacionista. Com uma longevidade típica de 14-20 anos no seu habitat natural e de até 38 anos em cativeiro, esse urso ainda hoje enfrenta séria ameaça de extinção. Do século XVI até o século XIX, essa espécie era amplamente distribuída na China Ocidental. Hoje, os pandas estão restritos a 30-40 populações em seis regiões montanhosas isoladas na margem leste do Planalto Tibetano, com uma população total estimada entre 1800 e 2060 indivíduos no meio selvagem. Visando proteger esses animais, centenas de pandas têm sido criados em cativeiro em centros de conservação e zoológicos na China. 


Figura 1. Na foto, um panda-gigante fêmea com seus dois filhotes gêmeos recém-nascidos (12 dias de idade). Nascimentos de pandas gêmeos são frequentes, mas a mãe geralmente escolhe apenas um para criar (o mais forte), algo que não ocorreu nesse caso. A massa corporal do filhote recém-nascido de panda é ~900 vezes menor do que aquela da sua mãe. Pandas adultos costumam ter de 85 a 120 kg.

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CURIOSIDADE: Existe convincente acúmulo de evidências apontando que o padrão preto-e-branco característico dos pandas-gigantes possui função de camuflagem, tornando-os crípticos no ambiente. Para mais informações: Por que as zebras e os pandas possuem padrões pretos e brancos tão únicos?

> E nem todos os pandas são preto-e-branco! Alguns são marrom-e-branco devido, aparentemente, a uma alteração homozigótica no gene Bace2, este o qual está associado com a pigmentação no corpo desses animais. Especificamente, uma deleção de 25 pares de bases no éxon do gene Bace2Ref.16

Figura 2. Qizai, o único panda marrom-e-panda mantido em cativeiro.

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               Os pandas-gigantes são notáveis por pertencerem a um clado de animais carnívoros e, ao mesmo tempo, exibirem extrema especialização herbívora visando uma alimentação baseada quase que exclusivamente em bambus (plantas altamente fibrosas da subfamília Bambusoideae). Entre as adaptações para essa dieta vegetariana, podemos citar:

- Polegar falso, o qual permite que o panda agarre e manipule o bambu de forma mais precisa e eficiente; 

- Crânio, musculatura mandibular e dentição adaptados para dietas fibrosas, incluindo arcos zigomáticos extremamente expandidos e dentes largos e achatados com elaborados padrões de coroa (Fig.3);

- Perda de variantes funcionais do gene T1R1 codificando para receptores do gosto umami (associado a carnes) e significativa seleção positiva para os genes TAS2R49 e TAS2R3 (receptores de gosto amargo, importantes no hábito alimentar herbívoro); (1)

- Microbiota intestinal e genes associados com digestão [enzimas bacterianas] de celulose e hemicelulose, alto nível de metabolismo de amido e sacarose, e biossíntese de vitamina B12, taurina, ácido araquidônico e vitamina A (micronutrientes que não ocorrem nas plantas, incluindo bambus).


Figura 3.. Características morfológicas adaptativas dos pandas-gigantes. (A) Polegar falso (ou pseudo-polegar), indicado pela seta; (B) crânio com estrutura óssea mais densa e compacta do que aquela observada em outros ursos; (C) mandíbula robusta e bem desenvolvida; (D) dentes com superfícies que permitem eficiente mastigação das estruturas duras e grossas do bambu. Wei et al., 2015

(1) Para mais informações:  


          Talvez o traço adaptativo dos pandas mais interessante seja o falso polegar que evoluiu nas patas dianteiras desses animais (Fig.4), caracterizado por uma hipertrofia do osso sesamoide (Fig.5), o qual possui papel crítico na manipulação de bambu, facilitando a alimentação.


Figura 4. Panda-gigante segurando e mastigando um grosso caule seco de bambu. No destaque da foto, um osso sesamoide radial semitransparente é colocado em sua posição aproximada dentro da almofada carnosa. Wang et al., 2022


Figura 5. Comparação do sesamoide radial e do volume de pegada entre um ursoide basal do Oligoceno Inferior (condição primitiva) (A), o Ailuropoda melanoleuca (B) e uma mão humana (C) (ilustrações da mão esquerda). Em (D), postura plantígrada da mão no A. melanoleuca durante locomoção terrestre. Em (D), superfície ventral externa da mão do A. melanoleuca mostrando uma almofada plantar carnosa que corresponde ao sesamoide radial (linhas vermelhas pontilhadas). Wang et al., 2022

           Por outro lado, os pandas-gigantes ainda conservam um número de traços típicos de carnívoros, em especial um trato gastrointestinal curto. De fato, apesar da dieta desses animais consistir de 99% de bambu, o panda-gigante ainda retém a habilidade de se alimentar de carne, como observado frequentemente em cativeiro e muito ocasionalmente no meio selvagem.

          A história evolucionária dos pandas-gigantes pode ser traçada até 7-8 milhões de anos atrás, no Mioceno Tardio e o mais antigo ancestral panda conhecido pertence à espécie Ailurarctos lufengensis, associado a fósseis encontrados na Província de Yunnan, China. Mais tarde, a espécie A. microta apareceu no Pleistoceno Inferior e tinha o menor tamanho corporal de todos os pandas conhecidos, mas durante o Pleistoceno Médio, a linhagem evolutiva deu origem ao maior panda conhecido, A. melanoleuca baconi. O atual panda-gigante, A. melanoleuca, emergiu no Holoceno. 

             É tradicionalmente sugerido - com base em limitada evidência paleontológica e molecular - que pandas-gigantes se especializaram na dieta de bambu no Pleistoceno, há cerca de 2 milhões de anos. Um estudo publicado em 2019 no periódico Current Biology (Ref.2) sugeriu que essa especialização foi muito mais recente, em meados do Holoceno (~11,65 mil anos atrás até o presente), com ancestrais modernos ainda possuindo uma dieta onívora mais complexa. Porém, um estudo mais recente, publicado na Nature (Ref.3), trouxe convincente evidência sugerindo que a especialização na dieta de bambu ocorreu há 6-7 milhões de anos, já no gênero Ailurarctos. No estudo, os pesquisadores reportaram e descreveram o mais antigo sesamoide radial fossilizado (Fig.7), o qual já representava um "polegar" opositor funcional.


Figura 6. (A) Ilustração do panda ancestral do gênero Ailurarctos, datado do Mioceno Tardio e encontrado na região de Shuitangba, Província de Yunnan, China. (B) O sesamoide radial do Ailurarctos era levemente e proporcionalmente maior do que o sesamoide radial dos pandas modernos, e não possuía a ponta encurvada na forma de "gancho" observada no panda-gigante. O gênero Ailurarctos, aliás, já tinha alcançado o nível de complexidade nos padrões dentários do Ailuropoda moderno, reforçando a ideia de que já tinham se especializado na dieta de bambu. Wang et al., 2022


Figura 7. (A) Sesamoide radial esquerdo de um Ailurarctos lufengensis (espécime ZT-2015-0056). (B) Com base em características dentais e ósseas, os pesquisadores propuseram que os pandas já haviam se tornado dependentes do consumo de bambu há pelo menos 6 milhões de anos. Wang et al., 2022

            Aliás, esse último estudo na Nature reforça a hipótese de que um ótimo balanço entre eficiente alimentação e eficiente locomoção terrestre impediu o falso polegar dos pandas de evoluir no sentido de um dedo opositor verdadeiro. Isso explicaria o porquê do falso polegar ter mantido quase inalterado seu tamanho proporcional ao longo de pelo menos 6 milhões de anos, apenas evoluindo eventualmente um gancho na ponta (parte distal) com provável função primária de otimizar a pegada do bambu. Como o panda anda com uma postura plantígrada (com a palma das mãos e pés aberta no chão), um dedo opositor alongado provavelmente traria sérios prejuízos na locomoção terrestre a longas distâncias, especialmente considerando seu grande porte corporal (sustentação do peso).


> IMPORTANTE: O Panda-Vermelho (Ailurus fulgens) é um mamífero arborícola de pequeno porte que, apesar do nome e dieta baseada primariamente em bambu (>90%), não possui relação próxima com os pandas-gigantes, pertencendo a uma família distinta (Ailuridae) - aliás, único representante hoje vivo desse clado. Em perigo de extinção devido à destruição antropogênica do seu habitat, é um animal notavelmente onívoro, ocasionalmente ingerindo ovos, pássaros, insetos e pequenos vertebrados, apesar de adaptações anatômicas (Ref.4), metabólicas e na microbiota intestinal (Ref.5) bem similares aos pandas-gigantes (evolução convergente), incluindo sesamoide radial funcionando como um polegar. Ambos, pandas-vermelhos e pandas-gigantes, pertencem à ordem Carnivora.


Figura 8. Na foto, um panda-vermelho (A. fulgens).

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   HÁBITOS ALIMENTARES E ECOLOGIA

          Pandas-gigantes trocaram a dieta onívora e altamente proteica dos seus ancestrais ursídeos por bambu, uma planta com alto teor de fibras e baixo conteúdo nutricional, mas com disponibilidade ao longo de todo o ano no Sul da China e no Sudeste Asiático. O bambu é constituído de 70-80% de celulose, hemicelulose e lignina, e de 20-30% de proteína, carboidrato solúvel e gordura. As folhas possuem um porcentual de proteína (massa seca) em torno de 19% e grande parte do restante constituído de hemicelulose e de celulose. As concentrações de macronutrientes no colmo (caule ou tronco) parecem variar significativamente dependendo do seu estágio de desenvolvimento: colmos jovens possuem mais proteína do que colmos maduros, estes os quais podem somar um total de até 80% de fibras. Os pandas gigantes digerem uma pequena porção do conteúdo total de macronutrientes: 75-90% da proteína, apenas 27% da hemicelulose e 8% da celulose.  

          Somando-se a isso, o trato digestivo curto dos pandas, herdado dos seus ancestrais carnívoros, é também pouco adequado para a extração de nutrientes - especialmente via fermentação bacteriana -, absorvendo menos de 20% da matéria seca digestível. Além disso, os dentes dos pandas possuem um nível de especialização significativamente inferior àquele da maioria dos mamíferos ungulados herbívoros, reduzindo a eficiência de mastigação das fibras do bambu e diminuindo a área superficial de atuação da microbiota intestinal.

          Para compensar o baixo conteúdo nutricional do bambu, os pandas comem enormes quantidades de bambu, até 45 kg por dia (dependendo da estação), e gasta ~15 horas/dia comendo. Devido à rápida passagem do bolo alimentar e digestivo pelo trato gastrointestinal (<12 horas) quando comparado com outros herbívoros, os pandas também defecam muito, até 100 vezes dia (1). Nos habitats modernos dos pandas, bambu (como os gêneros Fargesia e Sinarundinaria) é abundante, fornecendo alimento o ano todo, tipicamente mais do que os pandas podem consumir (exceto em períodos específicos, ex.: floração). Ajuda também o panda a ausência de competidores relevantes por bambu e de predadores naturais, permitindo que esses animais economizem muito o gasto calórico e o tempo durante a busca por alimentos e na alimentação, basicamente comendo e descansando o dia inteiro (descanso responde por 41% do dia desses animais). Frequentemente os pandas se movimentam apenas entre 300 e 500 metros por dia e comem tipicamente sentados e bem "folgados" (2).

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(1) CURIOSIDADE: Falando em matéria fecal, é interessante mencionar que pandas-gigantes vivendo em regiões frias da China adoram esfregar fezes frescas de cavalo no corpo inteiro. Esse comportamento parece ajudar esses animais a melhor suportarem ambientes com temperaturas muito baixas. Para mais informações e um vídeo mostrando esse estranho comportamento, acesse: Cientistas finalmente explicam porque os pandas adoram cocô de cavalo 

(2) Para quem estiver interessado, filmagem representando um dia típico dos pandas, no Zoológico de San Diego, em 2019: https://www.facebook.com/SanDiegoZoo/videos/562351354170625/

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           E embora não consigam acumular gordura corporal suficiente para hibernarem como outros ursos - processo compensado pela alta disponibilidade de alimento e clima relativamente quente em grande parte zona geográfica de habitação -, a microbiota intestinal dos pandas intensifica a produção de lipídios, permitindo que esses animais fiquem sempre "rechonchudos" e com suficiente reserva energética para eventos migratórios e reprodutivos. 

           No meio selvagem, a dieta dos pandas muda sazonalmente: se alimentam exclusivamente de folhas por 8 meses do ano (geralmente do final de agosto até abril), mas preferencialmente consomem  jovens colmos quando disponíveis (geralmente do final de abril até agosto). Durante o período de maior consumo de colmo, o ganho de massa corporal do panda é significativamente maior (~0,23 kg/dia) quando comparado com o período associado a um maior consumo de folhas (~0,06 kg/dia). Tanto as folhas quanto o colmo possuem baixo teor de gordura (<4%). Um estudo publicado recentemente no periódico Cell Reports (Ref.6) mostrou que durante o período de maior consumo de colmo, existe uma grande proliferação intestinal da bactéria Clostridium butyricum elevando substancialmente a produção de ácidos graxos de cadeia curta, incluindo butirato. Maior circulação de butirato, por sua vez, aumenta a ativação hepática do gene Per2 com subsequente aumento da biossíntese de fosfolipídeos. O resultado final, é um maior armazenamento de gordura corporal.

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   CARNÍVOROS OU ONÍVOROS?

          Embora à primeira vista a dieta dos pandas-gigantes possa parecer essencialmente herbívora, existe argumentação suportando que a atual natureza alimentar desses animais é onívora ou mesmo carnívora (3).

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(3) Lembrando que, entre mamíferos, dieta onívora engloba um amplo espectro de flexibilidade alimentar. Por exemplo, tecnicamente, tanto lobos quanto chimpanzés são onívoros, porém chimpanzés possuem uma dieta muito mais vegetariana do que aquela observada em lobos (classificados como carnívoros). Aliás, humanos modernos (Homo sapiens) podem ser também considerados carnívoros. Fica a sugestão de leitura: Humanos foram hipercarnívoros durante a maior parte da nossa linhagem evolutiva 

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   PANDAS SÃO CARNÍVOROS

           Notavelmente, um estudo publicado em 2019 no periódico Current Biology (Ref.7) argumentou que os pandas-gigantes são carnívoros em termos de assimilação de macronutrientes, sugerindo que a especialização desses animais na dieta de bambu pode ter sido menos abrupta no processo evolutivo do que comumente pensado. Para essa conclusão, os pesquisadores analisaram os hábitos alimentares e perfil de absorção nutricional dos alimentos ingeridos pelos pandas. Segundo o estudo, as variações sazonais de preferência entre folhas e colmos apontam que o panda busca maximizar o consumo de proteínas e reduzir o consumo de fibras; aliás, a porcentagem de energia (calorias) fornecida por proteínas mostrou ser maior do que aquela fornecida pelos outros dois macronutrientes combinados (gordura + carboidratos). A análise estimou que a dieta do panda, em termos energéticos, é composta de 61% de proteína, 23% de carboidratos e 16% de gordura, sem inclusão das fibras. Quando a estimativa de hemicelulose e de celulose digeridas (+carboidratos) foram incluídas, isso rendeu uma distribuição mínima de 48% de proteína, 39% de carboidratos e 13% de gordura.

          Nesse sentido, os autores do estudo argumentaram que a distribuição energética de macronutrientes efetivamente assimilados pelos pandas-gigantes é similar àquela de hipercarnívoros (>70% da dieta oriunda de predação), mesmo a dieta em si sendo herbívora. Por exemplos, uma quantidade aproximada de 50% de energia metabolizável oriunda de proteínas é próxima daquela observada em gatos selvagens (Felis silvestris catus), 52%, e em lobos (Canis lupus), 54%. Somando à evidência, eles encontraram também que a composição nutricional do leite produzido pelos pandas é similar àquela de carnívoros (ou seja, bebês pandas também consomem uma "dieta carnívora"), apesar desse mesmo perfil nutricional ser encontrado também em certos herbívoros, como bovídeos e cervídeos.

           Os achados do estudo podem explicar porque ao longo de milhões de anos de possível especialização na dieta de bambu a linhagem dos pandas persistiu com um trato gastrointestinal, enzimas digestivas e microbiota geral similares àqueles de carnívoros.


   PANDAS SÃO ONÍVOROS

           Por outro lado, um estudo mais recente publicado no periódico Scientific Reports (Ref.8) não apenas rejeitou os resultados do último estudo como também trouxe evidências de que todos os ursos são onívoros e adaptados a uma dieta idealmente de baixo teor proteico. 

           Os ursídeos divergiram na linhagem carnívora há cerca de 47,5 milhões de anos. As oito atuais espécies de ursos ao redor do mundo consomem uma ampla variedade de dietas. Alguns ursos são especialistas com extensivas adaptações anatômicas e fisiológicas necessárias para explorar alimentos ou ambientes específicos, e aqui podemos citar os ursos-polares (Ursus maritimus), ursos-beiçudos (Melursus ursinus) e, obviamente, os pandas-gigantes. O restante dos ursos são generalistas.


Figura 9. Ilustrações retratando as atuais oito espécies de ursos. Arte: Reddit

          Segundo reportaram os pesquisadores, primeiro com base em estudos prévios, ursos-polares, retratados comumente como carnívoros marinhos, preferem consumir gordura em detrimento de um maior conteúdo proteico (~18% de contribuição proteica). De forma similar, ursos-pardos (Ursus arctos), retratados comumente como carnívoros terrestres, têm mostrado preferir o consumo de gorduras ou carboidratos solúveis, resultando também em um baixo teor proteico (~17%). Mesmo ursos-marrons selvagens com ilimitado acesso a uma dieta altamente proteica, incluindo salmões muito calóricos, procuram ativamente frutos com alto teor de carboidratos. Portanto, embora ursos-polares e ursos-marrons prontamente consumam carne, nenhum dos dois seriam carnívoros em termos de preferência alimentar.

          Na parte experimental, os pesquisadores conduziram experimentos bem controlados envolvendo pandas-gigantes e ursos-beiçudos em diferentes zoológicos dos EUA, fornecendo a esses animais farta quantidade de alimentos de diferentes tipos para melhor esclarecer a preferência alimentar dessas espécies. Para os pandas, eles encontraram que esses animais consumiam uma média anual de 27% de proteínas e de 61% de carboidratos, contrariando os resultados do estudo de 2019 (!). Análise de dados oriundos de zoológicos na China também corroboraram essa dieta com alto teor de carboidrato e baixo teor proteico. Os pandas preferiam consumir colmos em geral (jovens e maduros) em detrimento das folhas de bambu ricas em proteínas.

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(!) Comentando sobre o estudo de 2019, os autores do novo estudo (Robbins et al., 2022) apontaram vários potenciais erros cometidos, como métodos inapropriados para quantificar o teor de carboidratos solúveis e de proteínas nos colmos e análises inadequadas comparando a composição entre matéria fecal e bambu ingerido.

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           Para os ursos-beiçudos, 6 indivíduos foram analisados, os quais foram ofertados com grande quantidade de abacate, inhame assado, soro de leite e maças. Como observado na Fig.10, os ursos-beiçudos escolheram comer quase que exclusivamente os abacates (~88% do total ofertado), complementando com parte de inhame assado (~12% do total) - e ignorando as maças. A análise final mostrou um consumo médio (macronutrientes) de 77% de gordura, 11% de carboidrato e 12% de proteína. Em outras palavras, isso significa que essa espécie prefere uma dieta com alto teor de gordura e baixo teor de carboidrato e de proteína, a qual pode espelhar o principal prato no meio selvagem (até 95% da energia consumida durante o inverno): cupins, formigas e as larvas e ovos desses insetos.


Figura 10. Alimentos oferecidos a um urso-beiçudo adulto (a) e os restos deixados no final de uma refeição (b). Note que o consumo focou quase exclusivamente na parte carnuda do abacate, com mínimo consumo do inhame assado. Nenhuma maça foi consumida por nenhum urso ao longo do período de 10 dias do estudo. O alimentador com soro de leite não aparece nas fotos. Robbins et al., 2022


          Na evolução dos ursídeos, ancestrais dos pandas-gigantes divergiram antes (12 a 19,5 milhões de anos atrás) que linhagens que levaram aos ursos-beiçudos e ursos-do-sol (4,4 milhões de anos atrás), e aos ursos-marrons e ursos-polares (3,4 milhões de anos atrás). Considerando uma dieta onívora preferencialmente com baixo teor de proteínas em pandas, ursos-beiçudos, ursos-marrons e ursos-polares, os pesquisadores concluíram que provavelmente todos os ursos modernos são onívoros adaptados a uma dieta de baixo nível proteico - incluindo os outros quatro ursos não analisados no estudo: ursos-negros-Asiáticos (Ursus thibetanus) ursos-malaios (Helarctos malayanus), ursos-negros (Ursus americanus) e ursos-de-óculos (Tremarctos ornatus) - todos os quais, de fato, frequentemente consomem frutos ricos em carboidratos e pobres em proteínas.

           A evolução dos ursos no sentido de adequarem o organismo a uma dieta com baixo teor proteico pode ter sido crítico para a expansão desses animais em novos nichos ecológicos ao redor do mundo sem alcance para outros carnívoros, especialmente hipercarnívoros. Os resultados do estudo apontam que os ursos podem modular a atividade enzimática catabólica do fígado sempre quando necessário para conservar reservas proteicas do corpo (ex.: preservar a massa muscular, como ocorre quando esses animais hibernam).

> Leitura recomendada: Qual a quantidade de proteína diária é necessária para maximizar a hipertrofia muscular?


   DIETAS EM ZOOLÓGICOS

           Os resultados do estudo conduzido por Robbins et al. levantam um potencial e importante alerta para zoológicos e centros de conservação ao redor do mundo que comumente alimentam os ursos em cativeiro com uma dieta com alto teor proteico, uma prática baseada na noção de que esses animais são carnívoros com alta ou moderada demanda proteica. Aliás, ursos costumam ter uma longevidade dramaticamente reduzida em zoológicos, possível resultado de desbalanço nutricional. 

          Por exemplo, a idade média de morte de ursos-beiçudos adultos em zoológicos Norte-Americanos e Europeus é 16,7 e 18,1 anos, respectivamente. Devido ao fato de poucos viveram até os 30 anos de idade como outras espécies de ursos, é provável que a expectativa de vida de ursos-beiçudos em cativeiro é reduzida em até 20 anos. Mortes de adultos nesses zoológicos são primariamente devido a adenocarcinoma biliar (até 65% das mortes) seguida por várias doenças gastrointestinais, na vesícula biliar, renais e hepáticas. Esses problemas de saúde podem estar sendo plausivalmente causados por inflamações ou disfunções causadas por excesso (ex.: proteínas) e por deficiência (ex.: gordura) nutricionais.

          Em centros de resgate na Índia, onde dietas possuem tipicamente alto teor de carboidrato (84%) e baixos teores de proteína (11%) e gordura (5%), a causa primária de morte dos ursos-beiçudos é tuberculose, mas 64% do restante é devido a uma combinação de doenças hepáticas, na vesícula biliar e renais, provavelmente causadas por deficiência no aporte de gordura.

          Quando ursos-beiçudos consomem uma dieta rica em carboidratos ou proteínas mas pobre em gorduras, bile não é secretada rápido o suficiente para compensar a produção natural, causando potencialmente dilação do duto biliar e inflamação, e ultimamente câncer biliar. 

           Um estudo conduzido também por Robbins et al. e publicado em 2021 no periódico ZooBiology (Ref.9) encontrou resultados similares para ursos-polares e ursos-marrons em cativeiro, mostrando que esses animais preferem uma dieta com baixo teor proteico, o contrário ofertado em zoológicos. Ursos-polares em cativeiro são muito suscetíveis a falhas renais e câncer no fígado, tipicamente vivendo cerca de 10 anos menos do que ursos-polares selvagens. No estudo, mais de 600 ursos-selvagens foram também analisados, e os pesquisadores não encontraram evidência de qualquer doença renal ou hepática nesses animais. Ursos-marrons, embora retratados como ávidos predadores de salmões, gastam 6-10 horas/dia, ou ~50-90% dos esforços na busca por alimentos, coletando e comendo pequenas frutinhas ricas em carboidratos no seu habitat. Em ambientes controlados, quando consomem uma dieta composta de salmões e frutas ricas em açúcares, ursos-marrons exibem um ganho de massa 72% maior quando comparado com o consumo de dietas constituídas apenas de salmão.


Figura 11. Urso-polar em um zoológico mostrando preferência por blocos de banha de porco (alto teor de gordura) ao invés de blocos de carne de foca (alto teor de proteínas). 

          Esse último estudo corroborou também um estudo prévio publicado em 2021 no periódico Scientific Reports (Ref.10), onde pesquisadores encontraram que ursos-polares preferem uma dieta constituída de duas partes de gordura para cada 1 parte de proteína, espelhando o observado no meio selvagem, onde esses ursos caçam presas preferencialmente muito ricas em gordura corporal. Em zoológicos, esses animais são tipicamente alimentados com dietas contendo 2-3 partes de proteína para cada 1 parte de gordura, priorizando uma alimentação altamente proteica.

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           "Existe certamente essa estabelecida ideia que humanos com doutorado sabem muito mais do que ursos-beiçudos ou ursos-pardos", disse em entrevista Charles Robbins*, professor de Biologia da Vida Selvagem na Universidade do Estado de Washington, EUA, e autor principal de dois dos estudos acima mencionados (Ref.11). "Todos esses ursos começaram a evoluir há cerca de 50 milhões de anos, e, em termos de dieta, eles sabem mais sobre isso do que nós sabemos. Nós é quem deveríamos perguntar aos ursos: O que você quer comer? O que faz você se sentir bem?" 

           "Em zoológicos, como regra, a recomendação é que usos-polares, ursos-pardos e ursos-beiçudos sejam alimentados como se fossem carnívoros com dietas altamente proteicas. Quando você segue essa recomendação, você estará matando-os lentamente," complementou Robbins. 

          Evidência mais recente também aponta que mesmo a dieta divergindo dramaticamente entre os ursos (fonte e qualidade dos nutrientes), o gasto energético diário  massa-específico são similares e o consumo energético é normalizado entre as atuais oito espécies de ursídeos (Ref.17). Mesmo com ursos-polares consumindo primariamente fonte animal e o panda primariamente fonte vegetal, a taxa metabólica é similar entre essas duas espécies.

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CURIOSIDADE: A pelagem dos ursos-polares é adaptada para reduzir ao máximo a perda de calor para o ambiente e, ao mesmo tempo, aproveitar ao máximo a energia térmica da radiação solar para esquentar o corpo: os pelos são transparentes, e não brancos como aparentam, e a pele desse urso é escura/preta. Para para informações, acesse: O pelo do urso-polar não é branco e, sim, transparente!

*Charlie Robbins é fundador do WSU Bear Center, a única instituição nos EUA com uma população em cativeiro de ursos-cinzentos (U. a. horribilis, subespécie do urso-pardo), e vem estudando nutrição de ursos há décadas.

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Wei et al. (2015). Giant Pandas Are Not an Evolutionary cul-de-sac: Evidence from Multidisciplinary Research, Molecular Biology and Evolution, Volume 32, Issue 1, Pages 4–12. https://doi.org/10.1093/molbev/msu278
  2. Wei et al. (2019). Diet Evolution and Habitat Contraction of Giant Pandas via Stable Isotope Analysis. Current Biology, Volume 29, Issue 4, Pages 664-669.e2. https://doi.org/10.1016/j.cub.2018.12.051
  3. Wang et al. (2022). Earliest giant panda false thumb suggests conflicting demands for locomotion and feeding. Scientific Reports 12, 10538. https://doi.org/10.1038/s41598-022-13402-y
  4. Salesa et al. (2022). Chapter 2 - Evolution of the family Ailuridae: origins and Old-World fossil record. Red Panda (Second Edition). Biology and Conservation of the First Panda, Pages 15-29. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-823753-3.00007-7
  5. Huang et al. (2020). Diet drives convergent evolution of gut microbiomes in bamboo-eating species. Science China Life Sciences. https://doi.org/10.1007/s11427-020-1750-7
  6. Wei et al. (2022). Seasonal shift of the gut microbiome synchronizes host peripheral circadian rhythm for physiological adaptation to a low-fat diet in the giant panda. Cell Reports, Volume 38, Issue 3, 110203. https://doi.org/10.1016/j.celrep.2021.110203
  7. Wei et al. (2019). Giant Pandas Are Macronutritional Carnivores. Current Biology, Volume 29, Issue 10, Pages 1677-1682.e2. https://doi.org/10.1016/j.cub.2019.03.067
  8. Robbins et al. (2022). Ursids evolved early and continuously to be low-protein macronutrient omnivores. Scientific Reports 12, 15251. https://doi.org/10.1038/s41598-022-19742-z
  9. Robbings et al. (2021). New insights into dietary management of polar bears (Ursus maritimus) and brown bears (U. arctos). ZooBiology, Volume 41, Issue 2, Pages 166-175. https://doi.org/10.1002/zoo.21658
  10. Rode et al. (2021). Energetic and health effects of protein overconsumption constrain dietary adaptation in an apex predator. Scientific Reports 11, 15309. https://doi.org/10.1038/s41598-021-94917-8
  11. https://news.wsu.edu/press-release/2022/10/03/increasing-evidence-that-bears-are-not-carnivores/
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