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Todos os "pelos" [cerdas] da lagarta-cachorrinho queimam a pele?

- Atualizado no dia 3 de março de 2025 -

          Popularmente conhecida como lagarta-cachorrinho ou taturana-ursinho, a estranha lagarta na Fig.1 não deve ser tocada, devido à presença de toxinas nas cerdas do seu corpo que causam forte sensação de queimação, dor e inchaço na pele. Essa lagarta pertence à espécie Podalia orsilochus e à família Megalopygidae, esta a qual engloba várias lagartas urticantes e de importância médica. No geral, lagartas do gênero Podalia e Megalopyge são popularmente conhecidas como "taturana-gatinho" ou "taturana-cachorrinho", e são os principais clados de interesse médico nesse contexto. Porém, nem todas as cerdas ("pelos") no corpo desses insetos queimam.

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            Megalopygidae (megalopigídeos) é uma família dentro da superfamília de lepidópteros Zygaenoidea com mais de 250 espécies descritas encontradas nas Américas (Norte, Sul e Central). Os megalopigídeos possuem longas cerdas não urticantes, com densidade variável, e estruturas urticantes, denominadas espinhos, daí os nomes populares de "lagartas cabeludas", "lagartas-de-fogo" ou "taturanas" (de origem tupi-guarani que significa "aquilo que arde como fogo"). Conforme a disposição das cerdas, estas lagartas podem ser divididas em dois grupos: as arctiidiformes, com cerdas curtas, robustas e eretas (ex.: Megalopyge urens) (Fig.2) e as "lagartas gatinho" (puss caterpillars, no inglês) com cerdas longas, macias, sedosas e coloridas, como a lagarta-cachorrinho.


Figura 2. Lagarta da espécie Megalopyge opercularisFoto: Paulina Cerruti/ecoregistros.org 


Figura 3. Mariposa [fase adulta] da espécie Megalopyge opercularis.

           A maioria das cerdas longas e sedosas, que se assemelham a pelos, são inofensivas e escondem os espinhos, que são estruturas ocas produtoras e inoculadoras de compostos químicos com ação urticante. Esses espinhos são preenchidos por uma solução urticante secretada por células situadas em glândulas de veneno na base dessas estruturas, denominadas células tricógenas. Quando a cerda penetra na pele e se quebra, a solução provoca ação irritante. Vários estudos sobre a importância médica dos megalopigídeos citam lesões cutâneas causadas pelo contato com espinhos irritantes de um número de espécies (erucismo). A maior parte dos acidentes por erucismo é provocada por lagartas desse grupo.


   ERUCISMO

          Erucismo é o termo usado para o envenenamento causado pelo contato dérmico com as cerdas urticantes de formas larvais de mariposas (ordem Lepidoptera). Erucismo é frequente em várias regiões do mundo, especialmente em zonas climáticas tropicais e temperadas, incluindo o Brasil. No nosso país, lagartas das famílias Megalopygidae, Saturniidae e Arctiidae são as principais causas de erucismo, com ~3700 casos reportados anualmente ao sistema SINAN do Ministério da Saúde. Parte dos casos são relacionados ao envenenamento causado por lagartas do gênero Lonomia (lonomismo), principalmente no sul do Brasil. O lonomismo pode evoluir com coagulopatia severa e hemorragia sistêmica grave. Relevante mencionar que, em testes sobre pele de ratos, as toxinas da espécie P. orsilochus causa proeminente necrose, infiltração inflamatória e hemorragia no local de aplicação, e o antídoto contra o veneno da espécie Lonomia obliqua (!) reconhece razoavelmente bem as toxinas da lagarta-cachorrinho (Ref.3).

          Além do lonomismo, as manifestações clínicas de erucismo em humanos são predominantemente locais, incluindo dor de queimação, edema e eritema (machas vermelhas na pele). Dor local de variável intensidade - o mais comum sintoma de erucismo causado por megalopigídeos - começa logo após o contato dérmico com as cerdas urticantes e pode durar horas. Dor radiante severa ou excruciante, como reportado após contato com a lagarta Norte-Americana Megalopyge opercularis (Fig.4), tem sido descrita por alguns pacientes como similar a "ter carvão quente colocado sobre a pele", "ser acertado no braço com um taco de baseball", "quebrar um osso" ou "cólica renal devido a pedras renais". 


Figura 4. Lagarta da espécie Megalopyge opercularis. Essa é a espécie mais amplamente distribuída nos EUA. Outra espécie do gênero comum no país, e também de interesse médico, é a Megalopyge crispata. Alguns descrevem a dor causada pelo envenenamento por lagartas desse grupo como "a pior dor do mundo". A dor pode radiar para outras partes do corpo e durar horas a dias. Ref.11

Figura 5. Referências: Branco et al., 2018 e Peichoto et al., 2019.

          Várias proteínas, enzimas e outras substâncias já foram identificadas nas toxinas liberadas pelas cerdas urticantes dos megalopigídeos. Mas os componentes tóxicos que causam intensa dor são representadas por proteínas chamadas de megalisinas, recrutadas como toxinas a partir de genes que foram transferidos horizontalmente por bactérias, um evento que pode ter ocorrido há aproximadamente 175 milhões de anos em antigos ancestrais dessas mariposas (Ref.13). Isso aponta distinta evolução tóxica dos megalopigídeos em relação a outros grupos próximos de mariposas. De fato, as toxinas do gênero Megalopyge são bem distintas daquelas do gênero Lonomia (família Saturniidae) e de táxons da família Limacodidae, esta última exibindo relação próxima com megalopigídeos. As megalisinas ativam de forma potente neurônios de mamíferos através de permeabilização da membrana, com aumento da concentração de íons cálcio (Ca2+) e engatilhando intensa sensação de dor (Ref.13). Esse último fato aponta evolução convergente de ação do veneno entre megalopigídeos e limacodídeos, embora nesses últimos a permeabilização toxina-induzida seja causada por pequenos peptídeos (<10 kDa) em contraste com as dimensões das megalisinas (>20 kDa). E pelo menos nas lagartas Megalopyge spp. (Fig.6), as toxinas  também promovem em limitada extensão efeitos anticoagulantes e inseticidas.

Figura 6. (A) Último estágio larval da mariposa Megalopyge opercularis. (B) Último estágio larval da mariposa Megalopyge crispata. (C) Agrupamento de espinhos urticantes ou venenosos (vs) entre as cerdas plumosas (ph); barra de escala = 100 µm. Os espinhos são mais curtos e grossos (até 30 μm de diâmetro) do que as cerdas inofensivas (~8 μm de diâmetro). O reservatório de veneno dentro dos espinhos é contínuo com uma câmara similar a um bulbo na base. (D) A pele no local de contato com os "pelos" dessas lagartas desenvolve pontos brancos que se tornam vermelhos, eventualmente formando um padrão escuro de grelha que espelha a distribuição de espinhos venenosos sob as longas e finas cerdas sobre a superfície da lagarta. Ref.13

           Para alívio de dores muito intensas, anestesia local com analgésicos em ambiente hospitalar é procedimento ideal a ser seguido. Irrigação (limpeza de ferimentos usando jatos de solução fisiológica) e remoção das cerdas urticantes com fita adesiva também podem reduzir a dor e é uma prática caseira recomendada após o acidente.

           Sintomas atípicos e sérios também são reportados após contato com essas lagartas. Em 2011, no periódico Journal of Tropical Pathology (Ref.5), foi descrito o caso de um menino de 11 anos de idade, morador de Uberlândia, Minas Gerais, que desenvolveu edema, eritema, dor intensa na mão e no segundo quirodáctilo esquerdo e sonolência, após pegar em uma lagarta da espécie Megalopyge lanata (Fig.4) que havia caído nas suas costas. Hospitalizado, o paciente evoluiu com taquicardia e taquipneia, náuseas, dor local e hiperemia da mão esquerda, eventualmente desenvolvendo bradicardia sinusal acentuada no pronto socorro pediátrico. Em um estudo publicado em 2022 (Ref.9), descrevendo quatro casos de erucismo causado por M. lanata, pesquisadores reportaram manifestações sistêmicas nos pacientes que incluíam taquipneia, taquicardia, palidez cutâneo-mucosa e diaforese generalizada, palpitações, náuseas e vômitos. Acidentes com Megalopyge spp. também podem causar dificuldade respiratória e dor no peito (Ref.10).


Fig.6. Megalopyge lanata é uma espécie que ocorre exclusivamente na América Latina. No Brasil, é registrada nos estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Bahia, Distrito Federal, Goiás e Minas Gerais. É uma praga que afeta inúmeras espécies de vegetais como cafeeiro, abacateiro, pessegueiro, algodoeiro, goiabeira, jabuticabeira e plantas cítricas. Suas lagartas, quando completamente desenvolvidas, medem de 60 a 70 mm de comprimento e 14 a 18  mm  de  largura  máxima.

          Mudanças de cor [na pele] no local de contato com as cerdas urticantes podem durar meses em alguns casos de erucismo. Relato de caso nesse sentido foi reportado recentemente para um acidente envolvendo a espécie Norape ovina (Ref.6).


   (!LAGARTA MAIS PERIGOSA

          O Instituto Butantan é o único produtor no mundo do antídoto/soro contra o veneno da L. obliqua - também conhecida como "taturana oblíqua" -, que pode ser obtido gratuitamente no Brasil por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Acidentes com essa lagarta são potencialmente muito perigosos. No Brasil, entre 2007 e 2017, foram mais de 42 mil acidentes envolvendo a L. obliqua, sendo 248 casos graves e cinco mortes (Ref.7). No período compreendido entre 2019 e 2022, foi documentado um total de 3173 casos de acidente por Lonomia no território brasileiro (Ref.12).



          No momento do contato com as cerdas da taturana oblíqua, o veneno causa uma lesão na pele semelhante à queimadura, com dor, inchaço e bolhas na região. O indivíduo pode apresentar dor de cabeça, ansiedade, náusea, vômito e, menos frequentemente, dor abdominal, hipotermia e pressão baixa. Dependendo da extensão da lesão e da quantidade de veneno inoculada, algumas pessoas podem manifestar sintomas mais graves, como alteração na coagulação e hemorragia nas gengivas, urina (hematúria) ou outras partes do corpo. Complicações mais graves, como hemorragia  intracerebral e  insuficiência renal aguda, também podem ocorrer.

          A principal complicação é a insuficiência renal aguda (falha nos rins), que pode ocorrer em até 12% dos casos e é mais frequente em indivíduos com mais de 45 anos com quadro de sangramento intenso. Inicialmente os pacientes graves eram tratados com antifibrinolíticos – classe de fármacos utilizada para impedir a perda excessiva de sangue – associados com plasma fresco congelado. No entanto, em vez de reverter os sintomas, essa abordagem piorava o quadro. 

          Atualmente, o tratamento é baseado na administração do soro antilonômico, que é obtido a partir do plasma de cavalos imunizados com o extrato de cerdas de Lonomia obliqua. Os anticorpos produzidos são capazes de neutralizar o veneno em circulação no sangue, normalizando os parâmetros de coagulação e evitando complicações graves. Para obter um resultado mais eficiente, é necessário que o material seja administrado até 12 horas após o contato com as cerdas da lagarta. Cada mL do soro neutraliza no mínimo 0,35 mg de veneno de L. obliqua, no total de no mínimo 3,5 mg de veneno por frasco-ampola com 10 mL (Ref.8).

> Com  26  espécies  no  gênero Lonomia, L.  obliqua e L.  achelous são  as  mais estudadas, devido à capacidade de induzir efeitos hemorrágicos em seres humanos. Acidentes com L. achelous são caracterizados por uma síndrome hemorrágica associada à atividade fibrinolítica do veneno.

> O envenenamento com Lonomia desencadeia a liberação de toxinas hemorrágicas, como as serino-proteases ativadoras de protrombina cálcio dependentes. Esse processo induz a depleção dos fatores de coagulação, a ativação secundária da fibrinólise e, consequentemente, uma síndrome hemorrágica, com formação de trombina e coágulos de fibrina, culminando em coagulopatias.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Diniz & Teston (2022). Diversidade e Sazonalidade de Megalopydidae (Lepidoptera, Zygaenoidea) na Floresta Nacional do Tapajós. Revista Biodiversidade, v. 21, n. 2.
  2. https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13104/5/2012_CintiaLepesqueurGon%C3%A7alves.pdf
  3. Peichoto et al. (2019). Understanding toxicological implications of accidents with caterpillars Megalopyge lanata and Podalia orsilochus (Lepidoptera: Megalopygidae). Comparative Biochemistry and Physiology Part C: Toxicology & Pharmacology, Volume 216, Pages 110-119. https://doi.org/10.1016/j.cbpc.2018.11.011
  4. Branco et al. (2018). Management of severe pain after dermal contact with caterpillars (erucism): a prospective case series. Clinical Toxicology, 1–5. https://doi.org/10.1080/15563650.2018.1520998
  5. Silva et al. (2012). ACIDENTE HUMANO POR Megalopyge lanata (LEPIDOPTERA: MEGALOPYGIDAE) EM ÁREA URBANA DO MUNICÍPIO DE UBERLÂNDIA, MG, BRASIL. Revista de Patologia Tropical / Journal of Tropical Pathology, Goiânia, v. 40, n. 4, p. 362–366. https://doi.org/10.5216/rpt.v40i4.16752
  6. Michienzi et al. (2022). The Sting of a White Flannel Moth Caterpillar (Norape ovina). Wilderness & Environmental Medicine, Volume 33, Issue 3, Pages 329-331. https://doi.org/10.1016/j.wem.2022.03.011
  7. Alvarez-Flores et al. (2021). Lonomia obliqua Envenoming and Innovative Research Toxins 13(12), 832. https://doi.org/10.3390/toxins13120832
  8. https://butantan.gov.br/assets/arquivos/soros-e-vacinas/soros/Soro%20antilon%C3%B4mico.pdf
  9. Leonardo et al. (2022). Erucismo causado por Megalopyge lanata (Stoll, 1780), (Lepidoptera: Megalopygidae) em la Isla de Coche, Estado Nueva Esparta, Venezuela. Saber, Universidad de Oriente, Venezuela, Vol.34(Suplemeto):S128-S139. https://doi.org/10.5281/zenodo.10732544
  10. Suarez et al. (2023). Caterpillar Envenomation (Lepidopterism) in a Panamanian Jungle: About a Case. Cureus, 15(12): e51247. https://doi.org/10.7759/cureus.51247
  11. Sancio et al. (2024). Geographical and temporal distribution of Megalopygidae in the United States and Puerto Rico. Toxicon: X, Volume 21, 100181. https://doi.org/10.1016/j.toxcx.2023.100181
  12. ARAÚJO et al. (2024). Hemorrhagic syndrome associated with acute kidney injury after an accident caused by Lonomia obliqua. Research, Society and Development, [S. l.], v. 13, n. 7, p. e1013746155, 2024. https://doi.org/10.33448/rsd-v13i7.46155
  13. Walker et al. (2023). Horizontal gene transfer underlies the painful stings of asp caterpillars (Lepidoptera: Megalopygidae). PNAS, 120 (29) e2305871120. https://doi.org/10.1073/pnas.2305871120