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Perda de cromossomos Y nos homens fomenta várias doenças, aponta estudo

            O cromossomo Y, o cromossomo sexual específico do sexo masculino, possui apenas algumas dezenas de genes e há décadas é sabido que o avanço da idade testemunha uma crescente perda do Y em células diversas do corpo. Tipicamente, indivíduos idosos possuem uma significativa prevalência de células com o cariótipo 45X. Essa perda, porém, tem sido historicamente considerada como um fenômeno sem relevantes implicações médicas e relacionado com o envelhecimento normal do corpo masculino. No entanto, nos últimos anos, análises observacionais e genômicas vêm associando essa perda cromossômica com um amplo espectro de doenças humanas, incluindo câncer - e fomentada por múltiplos fatores, como o fumo de cigarro. Agora, um robusto estudo publicado na Science (Ref.1) trouxe convincente evidência reforçando esse último cenário, potencialmente ajudando a explicar o porquê das mulheres viverem, em média, significativamente mais do que os homens. 

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   CROMOSSOMO Y

           O cromossomo Y humano é o cromossomo de determinação sexual tipicamente encontrado apenas nos indivíduos do sexo masculino. Submetido a uma dramática degeneração genética, ao longo dos últimos 300 milhões de anos, o autossomo ancestral (cromossomo não-sexual) que evoluiu para dar origem ao cromossomo Y perdeu quase todos os seus genes codificantes de proteínas (inicialmente ~1500 genes), ficando com apenas ~78 genes codificantes (cerca de 10% do número total presente no cromossomo X) (!). 

           Estudos genéticos e teóricos baseados em uma taxa linear de decaimento genético já chegaram a sugerir que os genes funcionais do cromossomo Y seriam perdidos no genoma humano dentro de 15 milhões de anos. Apesar dessa projeção, os genes persistentes no cromossomo Y têm permanecido estáveis entre os mamíferos. Devido à sua estrutura, conteúdo, estabilidade e padrão de hereditariedade dramaticamente distintos em relação aos outros cromossomos do genoma, a porção macho-específica do Y (MSY) escapa do processo de recombinação genética durante o crossover meiótico, permitindo o acúmulo de sequências repetidas e frequentes rearranjos cromossômicos via recombinação intra-cromossômica. Esse amplo escape da recombinação com o cromossomo X (seu par sexual) reduz a eficiência da seleção natural sobre o cromossomo Y, resultando no acúmulo detrimentoso de mutações e, a longo prazo, uma ampla degeneração genética.

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> CURIOSIDADE: Um estudo publicado em 2021 periódico PLOS Genetics (Ref.3) encontrou evidência de que o cromossomo Y do peixe da espécie Poecilia reticulata - popularmente conhecido como lebiste ou barrigudinho - foi recentemente perdido durante o percurso evolucionário dessa espécie (devido ao dramático processo degenerativo), com um cromossomo X duplicado tomando seu lugar e evoluindo funcionalidades de determinação sexual masculina através de novas mutações. Isso explicaria o mistério de porque o cromossomo Y dessa espécie é apenas minimamente diferenciado do seu par X, conservando grande parte dos genes, enquanto o Y de espécies próximo-relacionadas (ex.: Micropoecilia picta) é altamente degenerado. 

(!)  Recentemente, 41 novos genes codificantes foram identificados no cromossomo Y. Para mais informações: Cientistas reportaram o sequenciamento completo do cromossomo Y

> Genes no cromossomo Y têm sido apontados também como fator causal da dramática diferença de prevalência para o autismo entre indivíduos do sexo feminino e do sexo masculino. Sugestão de leitura: Quais os fatores que aumentam o risco de autismo?

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           Apesar de historicamente o cromossomo Y ter sido ligado exclusivamente às determinações de características sexuais masculinas e à espermatogênese (produção de espermatozoides), evidências acumuladas nas últimas décadas fortemente indicam que esse cromossomo está envolvido em vários processos biológicos e possui importantes funções sistêmicas de regulação de genes, impactando de forma significativa nos fenótipos celulares e no desenvolvimento de doenças. 


   MOSAICISMO DO CROMOSSOMO Y

          Desde o desenvolvimento embrionário (1), à medida que as células se dividem ao longo da vida do indivíduo, mutações devido a fatores endógenos ou exógenos vão se acumulando a cada nova geração de células no organismo. Em outras palavras, o genoma inicial (na célula-ovo) sofre significativa modificação com o avanço dos anos. A maior parte dessas mutações (2) implicam em efeitos neutros ou deletérios. Ocasionalmente, mutações fornecem uma vantagem seletiva; células carregando essas mutações são, então, submetidas a seleção positiva e eventualmente alcançam uma subpopulação estável, detectável e distinta caracterizada por uma forma alterada do genoma, um fenômeno conhecido como mosaicismo somático. 

Leitura recomendada:


            Estudos epidemiológicos de grande porte têm reportado que mutações mosaicas são prevalentes em células somáticas de humanos saudáveis, variando desde mutações pontuais até a perda ou ganho de cromossomos (condição conhecida como aneuploidia). Nesse último caso, mosaicismo de cromossomos sexuais é mais comum do que mosaicismo de autossomos, sendo mais frequentemente observada a perda mosaica do cromossomo Y. A perda do Y é a mudança mais comum que ocorre em células brancas circulantes de homens idosos, e foi primeiro descrita em 1963 em culturas de leucócitos sanguíneos periféricos (Ref.4). Ausência do Y é detectável em pelo menos 10% das células brancas periféricas em cerca de 10-40% dos homens com 60-80 anos de idade; uma taxa populacional de 50% é reportada para homens com mais de 90 anos de idade (Ref.5). Em alguns homens mais velhos, mais de 80% das células brancas podem ser deficientes no cromossomo Y. Essa condição é conhecida como 'perda hematopoiética mosaica do cromossomo Y' (mLOY).

           A perda mosaica do cromossomo Y aumenta de forma exponencial com a idade, e, eventualmente, todos os homens desenvolvem essa aberração cromossômica caso vivam tempo suficiente. Porém, outros fatores de risco estão também associados com o fenômeno: 

- Suscetibilidade genética - com assinatura altamente poligênica - é provavelmente o segundo maior fator de risco, com vários genes (variantes) já identificados (ex.: TCL1A) associados com um maior risco de perda do Y em células diversas, incluindo locais genômicos implicados na regulação do ciclo celular, instabilidade genômica e suscetibilidade ao câncer (Ref.2, 6). Aliás, diferentes populações exibem significativas diferenças de risco para a perda do Y (ex.: homens de ancestralidade Africana são menos afetados pelo fenômeno do que homens de ancestralidade Europeia) (Ref.2). 

- Aberrações estruturais no cromossomo Y também já mostraram induzir perda desse cromossomo durante divisões celulares. 

- Outros importantes fatores de risco incluem estressantes ambientais e endógenos, particularmente o consumo alcoólico, poluição atmosférica, obesidade e fumo (ex.: cigarro).

           Enquanto que os fatores de risco para a perda do cromossomo Y são amplamente estabelecidos, os mecanismos moleculares responsáveis por essa perda são ainda pouco esclarecidos. Considerando o notável envolvimento de variantes genéticas ligadas a genes do ciclo celular, é proposto que a mais provável origem do fenômeno é mitótica. Durante a divisão celular, os cromossomos são duplicados e então segregados igualmente em cada célula-filha. A segregação cromossômica é orientada pelos centrômeros e fuso mitótico. Erros durante essa fase crítica da segregação (ex.: anexação inadequada dos microtúbulos do fuso) podem levar ao desenvolvimento de um micronúcleo isolado aprisionando cromossomos. Esse aprisionamento confere tempo suficiente para os cromossomos micronucleados serem degradados por autofagia ou serem expulsos da célula. E, de fato, já foi mostrado que cromossomo Y é preferencialmente micronucleado e de uma forma idade-dependente (Ref.2).

           Independentemente dos fatores de risco e mecanismos moleculares, por muito tempo essa perda de cromossomos Y têm sido associada apenas com um fenômeno normal associado com a idade, sem implicações deletérias para a saúde. Existem dois principais motivos para esse pensamento: primeiro, nenhum dos genes localizados no cromossomo Y são essenciais para a viabilidade celular e, segundo, indivíduos do sexo feminino (XX) vivem normalmente sem o cromossomo Y. 

            Contrariando a expectativa, estudos epidemiológicos robustos nos últimos anos têm consistentemente mostrado que a perda mosaica do cromossomo Y está associada com um aumento no risco para mortalidade por todas as causas e a um amplo espectro de doenças comuns nos indivíduos do sexo masculino, como cânceres hematológicos e não-hematológicos, doença de Alzheimer, doenças autoimunes, eventos cardiovasculares, degeneração macular idade-dependente e diabetes tipo 2 (Ref.6-8) (!). Para citar um exemplo, a perda do Y é um evento frequente no adenocarcinoma de Barrett e associado com progressão mais severa desse tipo de câncer (Ref.9); e talvez mais relevante, essa doença afeta 9x mais os homens do que as mulheres.

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(!) Isso pode inclusive ajudar a explicar o porquê das mulheres (sexo feminino) viverem, na média, significativamente mais do que os homens. Fica a sugestão de leitura sobre o assunto: Por que as mulheres vivem mais do que os homens?

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           E enquanto temos fortemente estabelecido, em geral, uma associação observacional (sem comprovação de causalidade) entre doenças e perda do cromossomo Y, um estudo recentemente publicado como preprint (sem revisão por pares) na plataforma medRxiv (Ref.10), através de randomização Mendeliana, alegou ter confirmado o papel causal da perda do Y na etiopatogênese do Mal de Alzheimer nos indivíduos do sexo masculino. Ou seja, a perda do cromossomo Y não parece ser apenas uma assinatura de outros fatores causais associados a instabilidades genômicas, mas, sim, parece estar exercendo efeitos fisiológicos diretos.

            Mecanismos moleculares e genéticos para a relação direta entre perda do Y e desenvolvimento de doenças estão ainda sendo explorados. Um estudo publicado em 2021 na Nature (Ref.11) trouxe evidência experimental que células imunes sem o cromossomo Y possuem reduzida expressão da imunoproteína CD99 na superfície celular em relação a células imunes sem essa aneuploidia. Também em 2021, um estudo publicado no periódico Cellular and Molecular Life Sciences (Ref.12), estudando leucócitos in vivo e in vitro, encontraram evidência de desregulação transcricional em ~500 genes autossômicos em células sem o cromossomo Y. Esses resultados, junto com evidências prévias e mais recentes, fortemente sugerem que mecanismos patológicos associados com a perda do cromossomo Y estão associados, pelo menos em parte, com função imune alterada em células imunes.

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   NOVO ESTUDO NA SCIENCE

           Liderado pelo biólogo molecular Kenneth Walsh, da Universidade de Virginia, EUA, o novo estudo foi o primeiro a testar diretamente os efeitos fisiológicos e celulares da perda do cromossomo Y em mamíferos.   

           No caso, os testes clínico foram conduzidos em ratos, onde, com o auxílio do editor genético CRISPR-Cas9 (3), o cromossomo Y foi deletado das células da medula óssea desses roedores. Essa edição genética levou à remoção do Y de 49% a 81% das células brancas circulantes (ex.: macrófagos). Os ratos modificados foram, então, comparados com um grupo de controle (ratos normais), ao longo de um período observacional de 2 anos. Os resultados mostraram que apenas 40% dos ratos modificados sobreviveram por 600 dias pós-edição - comparado com cerca de 60% dos ratos no grupo de controle - e eram mais suscetíveis a fibrose no coração e reduzida função cardíaca. De fato, macrófagos cardíacos sem o Y exibiram polarização no sentido de um fenótipo mais fibrótico.

(3) Leitura recomendadaCRISPR-Cas9: A popularização da edição genética!

          Por fim, analisando os dados genéticos de >15 mil participantes no UKBiobank (um grande banco de dados genéticos no Reino Unido, onde pelo menos 40% dos homens com idade acima de 70 anos são afetados significativamente pela perda do cromossomo Y), os pesquisadores encontraram que homens com perdas do Y em pelo menos 40% das células brancas eram 31% mais prováveis de morrerem de doenças do sistema circulatório (incluindo doenças cardíacas) do que aqueles com maior presença de Y.

          Somados, os resultados do estudo reforçam que a perda do cromossomo Y parece, de fato, implicar em efeitos fisiológicos diretos e deletérios no organismo masculino.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Sano et al. (2022). Hematopoietic loss of Y chromosome leads to cardiac fibrosis and heart failure mortality. Science, Vol. 377, No. 6603, pp. 292-297. https://doi.org/10.1126/science.abn3100 
  2. Guo et al. (2020). Mosaic loss of human Y chromosome: what, how and why. Human Genetics, 139(4), 421–446. https://doi.org/10.1007/s00439-020-02114-w 
  3. Charlesworth (2021). How did the guppy Y chromosome evolve? PLoS Genetics 17(8): e1009704. https://doi.org/10.1371/journal.pgen.1009704 
  4. Ouseph et al. (2022). Genomic alterations in patients with somatic loss of the Y chromosome as the sole cytogenetic finding in bone marrow cells. Haematologica, 1;106(2):555-564. https://doi.org/10.3324/haematol.2019.240689
  5. Mattisson et al. (2021). Leukocytes with chromosome Y loss have reduced abundance of the cell surface immunoprotein CD99. Scientific Reports 11, 15160. https://doi.org/10.1038/s41598-021-94588-5
  6. Thompson et al. (2019). Genetic predisposition to mosaic Y chromosome loss in blood. Nature 575, 652–657. https://doi.org/10.1038/s41586-019-1765-3
  7. Guo, X. (2021). Loss of Y chromosome at the interface between aging and Alzheimer’s disease. Cellular and Molecular Life Sciences 78, 7081–7084. https://doi.org/10.1007/s00018-021-03935-2
  8. Ouseph et al. (2021). Genomic alterations in patients with somatic loss of the Y chromosome as the sole cytogenetic finding in bone marrow cells. Haematologica, 106(2):555-564. https://doi.org/10.3324/haematol.2019.240689
  9. Loeser et al. (2020). Y Chromosome Loss Is a Frequent Event in Barrett’s Adenocarcinoma and Associated with Poor Outcome. Cancers, 12(7), 1743. https://doi.org/10.3390/cancers12071743
  10. García-González et al. (2022). Mendelian randomization confirms the role of Y-chromosome loss in Alzheimer’s Disease etiopathogenesis in males. [medRxiv] https://doi.org/10.1101/2022.07.20.22277657
  11. Mattisson et al. (2021). Leukocytes with chromosome Y loss have reduced abundance of the cell surface immunoprotein CD99. Scientific Reports 11, 15160. https://doi.org/10.1038/s41598-021-94588-5
  12. Dumanski et al. (2021). Immune cells lacking Y chromosome show dysregulation of autosomal gene expression. Cellular and Molecular Life Sciences 78, 4019–4033. https://doi.org/10.1007/s00018-021-03822-w