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Molnupiravir: O que sabemos sobre o antiviral da Merck contra a COVID-19?

- Atualizado no dia 17 de dezembro de 2021 - 

           Segundo anúncio dado inicialmente pela gigante farmacêutica Merck (Ref.1), o antiviral oral Molnupiravir foi capaz de reduzir pela metade o risco de hospitalização e de prevenir morte pela COVID-19 quando administrado no período inicial de sintomas da doença. O anúncio foi feito com base nos resultados preliminares de um estudo de alta qualidade englobando 775 pacientes não-hospitalizados infectados pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Porém, após análise do total de participantes, a eficácia continuou significativa mas foi reduzida para 30%. É um promissor fármaco para se somar às campanhas de vacinação e às medidas não-farmacológicas de controle epidêmico, mas, à primeira vista, dramaticamente inferior ao antiviral da Pfizer (!).

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   MOLNUPIRAVIR

          Os coronavírus usam uma enzima RNA polimerase RNA-dependente (RdRp) para a replicação e a transcrição do seu genoma RNA (!). A enzima RdRp é um importante alvo para o desenvolvimento de medicamentos antivirais contra os coronavírus, e está presente tanto no SARS-CoV-1 quanto no SARS-CoV-2. Medicamentos antivirais frequentemente visam polimerases virais e funcionam como análogos de nucleosídeos que terminam o alongamento da cadeia de RNA durante a síntese dessa macromolécula.

(!) Para mais informações, acesseAfinal, o novo coronavírus foi criado em um laboratório da China?

          No entanto, tais antivirais cadeia-terminantes são geralmente inefetivos contra o SARS-CoV-2 porque os coronavírus carregam uma atividade proofreading ("corretor de erros") que pode remover nucleotídeos erroneamente incorporados no final 3' do RNA nascente. Por outro lado, temos hoje já um bem estabelecido antiviral (Remdesivir) sendo usado para o tratamento de pacientes com a COVID-19 que consegue driblar o proofreading. Tal capacidade se deve ao fato da incorporação promovida pelo remdesivir não terminar o alongamento, apenas barra o RdRp após a adição de mais três nucleotídeos. Porém, a real efetividade do Remdesivir contra a COVID-19 ainda é motivo de disputa (!) e esse antiviral necessita de administração intravenosa (intra-hospitalar), algo que dificulta um tratamento inicial mais efetivo dos pacientes.

(!) Para mais informações, acesseRemdesivir possui incerta eficácia clínica no tratamento da COVID-19

           Nesse sentido, outro promissor antiviral contra a COVID-19 é o molnupiravir (ou EIDD-2801), o qual visa o RdRp do SARS-CoV-2 e consegue também driblar o proofreading. O molnupiravir interfere com a replicação de vários vírus, incluindo o SARS-CoV-2, ao inibir a replicação desse último no tecido pulmonar humano, bloqueando sua transmissão em furões (mamíferos suscetíveis ao vírus) e reduzindo a presença do seu RNA em pacientes com COVID-19. E, diferente do Remdesivir, o Molnupiravir é administrado oralmente, através de uma pílula. Além disso, em estudos clínicos e laboratoriais, esse antiviral têm falhado em induzir evolução de resistência viral (novas variantes ou cepas não conseguem vencê-lo), sugerindo uma alta barreira genética para a evasão farmacológica.

            Dados acumulados até o momento (Ref.2-4) fortemente sugerem que o molvupiravir age como um agente mutagênico que causa um 'erro catastrófico' durante a replicação viral. No caso, o antiviral, na sua forma ativa (MTP), promove a incorporação de um nucleotídeo (letra genética) A (adenina) ao invés de um G (guanina) na cadeia nascente de RNA sendo sintetizado. A letra A incorporada (em um RNA molde) leva à incorporação extra da letra U (uracila) na próxima rodada de síntese de RNA, resultando na substituição geral da esperada letra C (citosina) pela letra U. No final, temos um grande acúmulo de mutações C-->U nos genomas dos coronavírus expostos ao molnupiravir, impedindo a criação de novas partículas virais funcionais ou viáveis nas células infectadas.

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   NOVO ESTUDO

          No novo estudo de Fase 3 - duplo-cego, placebo-controlado e randomizado - cujos resultados preliminares foram divulgados hoje pela Merck, 775 pacientes não hospitalizados foram divididos em dois grupos: um grupo (385 pacientes) recebendo o antiviral dentro de 5 dias de desenvolvimento de sintomas e o outro grupo (377 pacientes) recebendo placebo sob as mesmas condições. Cada participante selecionado para o estudo tinha pelo menos um fator de risco para o desenvolvimento de COVID-19 severa (!). O fármaco e o placebo foram administrados ao longo de 5 dias.

(!) Leitura recomendadaQuais são as condições médicas de risco para uma COVID-19 mais severa?

           A análise dos 775 pacientes no estudo encontrou que 7,3% daqueles tomando molnupiravir foram hospitalizados (28/385), comparado com 14,1% daqueles recebendo placebo (pílula sem princípio ativo) (53/377). Ao longo de 29 dias de hospitalização, não houve mortes no grupo recebendo molnupiravir, enquanto oito mortes foram registradas no grupo recebendo placebo. Além disso, nos pacientes com sequências virais analisadas (40% do total), o fármaco se mostrou eficaz contra múltiplas variantes de preocupação (Delta, Gama, Mu).

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ATUALIZAÇÃO (17/12/21): O estudo foi publicado pós-revisão por pares no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.8). Considerando a análise do total de participantes incluídos (1433), a eficácia antes sugerida de ~50% contra hospitalização ou morte nos resultados preliminares caiu para ~30%: total de mortes ou hospitalização de 48 em 709 no grupo molnupiravir (6,8%) e de 68 em 699 no grupo placebo (9,7%). A taxa de eventos adversos reportados foi similar em ambos os grupos (~30%), e mais comuns naqueles que receberam placebo. 

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           A farmacêutica Merck, responsável pelo estudo, planejava incluir 1550 pacientes para dar continuidade aos testes clínicos, mas um comitê de monitoramento resolveu parar a administração de mais placebo, quando se tornou claro que o medicamento era efetivo. 

            Os resultados do estudo corroboraram um estudo clínico prévio randomizado e placebo-controlado conduzido em 11 locais dos EUA e publicado no periódico Topics in Antiviral Medicine (Ref.5). Nesse estudo, foram englobados 78 participantes infectados pelo SARS-CoV-2 e dentro de uma média de 4,6 dias após início dos sintomas. Do total, 52 receberam o antiviral e 26 receberam placebo. Após 5 dias, 24% dos participantes no grupo de placebo ainda eram positivos para o SARS-CoV-2, e nenhum estava positivo no grupo tratado com molnupiravir. 

          A Merck planeja agora entrar com um pedido de uso de emergência do antiviral para o governo Norte-Americano, este o qual já garantiu que vai comprar 1,7 milhões de doses do molnupiravir a US$700 o curso completo de 5 dias (Ref.6). Apesar de mais barato do que os anticorpos monoclonais - também efetivos e já em uso contra a COVID-19 -, especialistas criticam o ainda alto valor do fármaco, considerando que o antiviral representa uma intervenção terapêutica que potencialmente poderá salvar muitas vidas e aliviar substancialmente a pressão nos centros hospitalares.

          É válido lembrar que os dados preliminares do estudo da Merck ainda não foram revisados por pares e nem mesmo publicados como preprint para a comunidade científica internacional avaliá-los. Outro ponto importante é que para pacientes já hospitalizados e com um quadro clínico significativamente avançado, o molnupiravir não parece ter um efeito terapêutico relevante.

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   EFEITOS ADVERSOS

          Os estudos clínicos e laboratoriais conduzidos até o momento têm sugerido ótimo perfil de segurança para o molnupiravir (Ref.7). No estudo da Merck, a incidência de qualquer evento adverso foi comparável no grupo recebendo molnupiravir e no grupo recebendo placebo (35% e 40%, respectivamente). De forma similar, a incidência de eventos adversos fármaco-induzidos foram também comparáveis (12% e 11%, respectivamente). Aliás, menos participantes descontinuaram o teste clínico por causa de algum evento adverso no grupo molnupiravir (1,3%) em relação ao grupo placebo (3,4%).

          Porém, ainda existe certa incerteza em relação a possíveis efeitos mutagênicos extra-virais. Na sua forma ativa (trifosfato, MTP), o molnupirivar é um substrato para o RNA polimerase mitocondrial, o qual também pode incorporar o MTP como um análogo U ou C. Estudos têm mostrado que ao longo de 14 dias de exposição ao fármaco, nenhuma disrupção em funções mitocondriais (mitocôndrias são organelas que produzem energia nas nossas células na forma de ATP) parece ser induzida pelo molnupiravir, e nenhuma mutagênese no RNA mitocondrial (mRNA) do hospedeiro têm sido observada. Por outro lado, é sugerido que exposição ao molnupiravir pode ser mutagênico ao DNA do hospedeiro durante o processo de replicação do DNA (Ref.2), algo que precisa estar sendo continuamente investigado à medida que mais pacientes forem tratados com o fármaco.

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   CONCLUSÃO

          O molnupiravir pode representar a primeira pílula oral realmente efetiva para o tratamento inicial (início dos sintomas) da COVID-19, com potencial de reduzir significativamente o número de hospitalizações e de mortes. Além disso, é muito prático de ser administrado, algo que pode ser feito de forma ambulatorial ou mesmo em casa. Porém, resultados conclusivos ainda não foram publicados e devidamente revisados, e o preço ainda alto do fármaco pode ser um empecilho para sua ampla aplicação, pelo menos por enquanto. Por fim, é importante lembrar que o molnupiravir NÃO substitui as vacinas, estas as quais são prioridade na luta contra a pandemia e muito mais efetivas em vários sentidos. Indivíduos que ainda não podem tomar a vacina ou imunossuprimidos que não respondem bem aos imunizantes, podem ser os mais beneficiados com o novo antiviral.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.merck.com/news/merck-and-ridgebacks-investigational-oral-antiviral-molnupiravir-reduced-the-risk-of-hospitalization-or-death-by-approximately-50-percent-compared-to-placebo-for-patients-with-mild-or-moderat/ 
  2. Kabinger et al. (2021). Mechanism of molnupiravir-induced SARS-CoV-2 mutagenesis. Nature Structural and Molecular Biology 28, 740–746. https://doi.org/10.1038/s41594-021-00651-0
  3. Malone & Campbell (2021). Molnupiravir: coding for catastrophe. Nature Structural and Molecular Biology 28, 706–708. https://doi.org/10.1038/s41594-021-00657-8 
  4. Calvin et al. (2021). Molnupiravir promotes SARS-CoV-2 mutagenesis via the RNA template. Journal of Biological Chemistry, Volume 297, Issue 1, 100770, ISSN 0021-9258. https://doi.org/10.1016/j.jbc.2021.100770 
  5. https://pesquisa.bvsalud.org/global-literature-on-novel-coronavirus-2019-ncov/resource/pt/covidwho-1250563
  6. https://www.science.org/content/article/unquestionably-game-changer-antiviral-pill-cuts-covid-19-hospitalization-risk
  7. Wendy et al. (2021). Human Safety, Tolerability, and Pharmacokinetics of Molnupiravir, a Novel Broad-Spectrum Oral Antiviral Agent with Activity against SARS-CoV-2. American Society for Microbiology. https://doi.org/10.1128/AAC.02428-20
  8. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2116044