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Tigres estão camuflados no meio da floresta?

           Evitar detecção visual pode fornecer significativa vantagem de sobrevivência tanto para presas quanto para predadores.

          Para a visão humana (observador tricromático) o padrão de coloração do tigre (Panthera tigris) parece muito inadequado para camuflagem em um ambiente de selva, em especial a forte cor vermelha-alaranjada em contraste com o ambiente verde e de sombra (escuro) das plantas ao redor.

             Porém, a maioria dos mamíferos não humanos - incluindo presas do tigre, como veados - possuem uma visão dicromática, e, para esses animais, a coloração laranja-avermelhada do tigre será percebida como verde; e as listras pretas do felino imitam os padrões escuros de sombra (Fig.1). Portanto, as típicas presas do tigre vão encontrar grande dificuldade em detectar esse perigoso felino no meio de biomas florestais no Sul Asiático.

Figura 1. Simulações de um tigre na mata para um observador dicromático (a) e um observador tricromático (b). Contra potenciais presas com visão dicromática, o padrão de cores dos tigres permite excelente camuflagem para emboscadas em florestas. Ref.1

           Visão dicromática é caracterizada por dois diferentes receptores de cor e ausência de um canal oponente vermelho-verde, enquanto tricromáticos possuem três receptores de cor e conseguem detectar colorações avermelhadas. Historicamente, existe argumentação na literatura acadêmica de que visão dicromática é melhor em quebrar sistemas de camuflagem, mas existe evidência experimental conflitante nesse ponto (Ref.2).

          Cervídeos possuem visão dicromática e, para esses animais, a maioria dos seus predadores, como tigres, parecem verdes. Além disso, produzir uma pelagem verde iria requerer uma significativa mudança na bioquímica de mamíferos (um grande salto evolucionário), já que esse grupo de animais depende dos pigmentos eumalanina e feomelanina para produzir cores preta e vermelho-amarelo, base para a limitada paleta de cores que vemos. E, de fato, o único mamífero conhecido com uma pelagem verde é a preguiça, cuja cor é resultante de algas verdes (Trichophilus sp.) que crescem nos pelos desses animais (3). Portanto, para animais que buscam se esconder no ambiente de observadores dicromáticos em meio a florestas e outros biomas com muita vegetação verde, existe pouca pressão seletiva para a produção de pele ou pelagem verde. Em contraste, apenas padrão de cor contra tricromáticos (ex.: primatas) não é suficiente para a camuflagem de mamíferos.

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>Regra de Gloger diz que mamíferos nos Trópicos são mais prováveis de exibir colorações escuras e, portanto, são suscetíveis ao desenvolvimento de melanismo (produção excessiva e concentrada de melanina no corpo) (Fig.2), com fatores como temperatura, umidade, cobertura florestal e densidade vegetativa sendo as variáveis mais influentes. Ref.8

 

Figura 2. Registros de gatos-nebulosos (Leopardus pardinoides) melanísticos durante atividade diurna em uma região dos Andes Tropicais no Equador. Muitos gatos-nebulosos parecem exibir o fenótipo do melanismo nessa região. Esse traço fenotípico potencialmente favorece camuflagem em meio às sombras da floresta geradas pela iluminação solar ou lunar. Ref.8

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> Melanina - produzida em melanócitos na epiderme - é responsável pelos tons escuros de cor, os quais podem variar dependendo dos caminhos mediados pela presença de compostos tióis (R-SH). Na ausência de tióis, eumelanina é produzida, enquanto a presença de cisteína resulta em síntese de feomelanina. Pigmentos de eumelanina resultam em tons preto, cinza e marrom, enquanto pigmentos amarelo à vermelho são devidos à feomelanina. No entanto, a expressão de cor depende da combinação de ambos os pigmentos de melanina. A falta ou defeito na enzima tirosinase previne síntese de melanina, portanto causando albinismo.

> Predadores comuns de cervídeos incluem lobos (Canis spp.), coiotes (Canis latrans), ursos (Ursus spp.), grandes felinos (Panthera spp.), linces (Lynx spp.) e humanos modernos (Homo sapiens). Cervídeos possuem várias características visuais de herbívoros que são tipicamente presas, incluindo olhos posicionados lateralmente, pupilas alongadas, visão dicromática, zona de células retinais de alta densidade e tapete lúcido refletivo. Todos esses traços visuais são comprovados ou pensados adaptativos para a detecção de predadores. Ref.3

> Tigres são predadores de emboscada que permanecem escondidos e quietos em um local até que uma potencial presa se aproxime o suficiente para uma explosiva e rápida tentativa de captura. Se a perseguição dura mais de 30 metros, o tigre tipicamente desiste. Portanto, camuflagem no ambiente contra presas é altamente benéfica para esses predadores e esses animais parecem escolher primariamente áreas com alta densidade de árvores e arbustos para esse fim - e o mesmo parece ser verdade para leopardos (Panthera pardus) e outros grandes felídeos. Ref.4-7

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          Além de fatores ambientais e comportamentais diversos, o que constitui o melhor padrão de cores para camuflagem em animais depende muito do sistema visual das suas presas e/ou predadores.


   EVOLUÇÃO DA VISÃO DICROMÁTICA EM MAMÍFEROS

          A maioria dos mamíferos possui visão dicromática (Ref.9). A visão tricromática é um traço único dos primatas entre os mamíferos placentários, e é permitida pelos cones fotorreceptores sensíveis aos comprimentos de onda da luz curtos (azul), médios (verde) e longos (vermelho) na retina (Ref.10). Cones verde e vermelho estão presentes apenas em hominídeos (incluindo humanos), primatas do Velho Mundo (África e Ásia) e alguns primatas do Novo Mundo (América).

          Antigos mamíferos evoluíram de um ancestral tricromático, mas perderam esse traço em favor de uma visão dicromática com máxima sensibilidade em comprimentos de onda curtos e médios do espectro visual à medida que se tornaram noturnos (Ref.9).

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          É comumente aceito que vertebrados basais (primeiros vertebrados) possuíam uma visão tetracromática baseada nos quatro tipos de proteínas fotorreceptoras para cor: LWS, RH2, SWS2 e SWS1 (opsinas de cor) junto com a RH1 (rodopsina) para visão escotópica (adaptada para ambiente com baixa luminosidade). Geralmente e dependendo das modificações proteicas, a máxima absorção para a RH1 é de ~500 nm, enquanto nas opsinas é de 510-570 nm (LWS), 470-510 NM (RH2), 440-460 nm (SWS2) e 360-450 nm (SWS1). Essa diversidade permite que vertebrados com todos esses pigmentos proteicos percebam um amplo espectro de estímulos de luz, desde o vermelho (comprimento de onda mais longo no visível) até próximo ou dentro do ultravioleta (comprimentos de onda muito curto).

          Mamíferos vivíparos (infraclasse Theria: placentários e marsupiais) possuem apenas as opsinas LWS e SWS1, enquanto os mamíferos que botam ovo (monotremos) possuem apenas as proteínas LWS e SWS2. Ancestrais terianos e monotremados reduziram de forma independente o número de genes de opsinas para dois, abrindo o caminho para a emergência da visão dicromática. Antigos mamíferos há ~200 milhões de anos competiram com grandes répteis diurnos, como os dinossauros, durante o período Jurássico, adotando um estilo de vida noturno enquanto sacrificavam a efetividade da visão colorida em períodos de baixa luminosidade (Ref.11).

          Muitos primatas e, talvez, algumas poucas espécies de marsupiais reganharam o traço tricromático, aparentemente coincidindo com o advento da diurnalidade. A evolução da visão tricromática rotineira em primatas Africanos e Asiáticos pode ter sido favorecida pelos benefícios de coletar frutas vermelhas e laranjas maduras e folhas jovens comestíveis em meio ao pando de fundo constituído de inúmeras folhas verdes maduras. Nesse último ponto e reforçando a hipótese, é válido apontar que os macacos bugios (Alouatta sp.) evoluíram visão tricromática rotineira - com machos e fêmeas tipicamente sendo capazes de discernir na faixa do vermelho-verde e um traço padrão nesse grupo - e são primatas fortemente dependentes de jovens folhas vermelhas na dieta; em outros primatas nativos das Américas, cegueira para a faixa do vermelho-verde (ausência de visão tricromática) é comum em vários indivíduos - principalmente machos - por causa de polimorfismos para o gene responsável pela expressão da proteína LWS no cromossomo X (Ref.9).

  

Figura 4. Coloração em mandris (Mandrillus sphinx) machos adultos: macho alfa na visão (A) frontal e (B) traseira; (C) macho subordinado. De fato, vários primatas são muito coloridos. Darwin inclusive explorou essa questão em detalhes na sua obra "A Descendência do Homem e Seleção em Relação ao Sexo" (1871) e em uma carta ao periódico Nature (1876). Existe a hipótese de que a grande diversidade de cores nos primatas é devido à evolução da visão tricromática nessa ordem. Por exemplo, algumas espécies de primatas (ex.: mandril) exibem notáveis e fortes colorações vermelhas nas regiões facial ou ânus-genital, com possíveis funções de dominância entre machos, sinalização de fertilidade, pró-receptividade ou gravidez em fêmeas, ou talvez servindo como um indicador de qualidade na escolha de parceiros. Porém, evidência científica mais recente aponta fraca associação entre visão tricomática e coloração vermelha nos primatas. Ref.12-13

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REFERÊNCIAS

  1. Troscianko et al. (2017). Relative advantages of dichromatic and trichromatic color vision in camouflage breaking. Behavioral Ecology, 28(2): 556-564. https://doi.org/10.1093%2Fbeheco%2Farw185
  2. Fennell et al. (2019). Optimizing colour for camouflage and visibility using deep learning: the effects of the environment and the observer's visual system. Journal of the Royal Society Interface, Volume 16, Issue 154. https://doi.org/10.1098/rsif.2019.0183
  3. Newman & D'Angelo (2024). A Review of Cervidae Visual Ecology. Animals 14(3), 420. https://doi.org/10.3390/ani14030420
  4. Godfrey et al. (1987). Zebra stripes and tiger stripes: the spatial frequency distribution of the pattern compared to that of the background is significant in display and crypsis. Biological Journal of the Linnean Society, 32(4), 427–433. https://doi.org/10.1111/j.1095-8312.1987.tb00442.x 
  5. Allen et al. (2010). Why the leopard got its spots: relating pattern development to ecology in felids. Biological Sciences, Volume 278, Issue 1710. https://doi.org/10.1098/rspb.2010.1734
  6. Smith & Ruxton (2020). Camouflage in predators. Biological Reviews, Volume 95, Issue 5, Pages 1325-1340. https://doi.org/10.1111/brv.12612
  7. Jain & Verma (2024). Genetic basis of coat colour variation in members of genus Panthera. Ecological Genetics and Genomics, Volume 33, 100300. https://doi.org/10.1016/j.egg.2024.100300
  8. Viteri-Basso et al. (2024). Shadows in the forest: Uncovering unusual colouration records in mammals from the Ecuadorian Tropical Andes. Biodiversity Data Journal, 12:e137463. https://doi.org/10.3897/BDJ.12.e137463 
  9. Caro & Mallarino (2020). Coloration in Mammals. Trends in Ecology & Evolution, Volume 35, Issue 4, P357-366. https://doi.org/10.1016/j.tree.2019.12.008
  10. Hadyniak et al. (2024). Retinoic acid signaling regulates spatiotemporal specification of human green and red cones. PLoS Biology 22(1): e3002464. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.3002464
  11. Sakamoto et al. (2024). Color vision evolution in egg-laying mammals: insights from visual photoreceptors and daily activities of Australian echidnas. Zoological Letters 10, 2. https://doi.org/10.1186/s40851-023-00224-7
  12. Setchell, J. M. (2016). Color in competition contexts in non-human animals. Handbook of Color Psychology, 546–567. https://doi.org/10.1017/CBO9781107337930.027
  13. Macdonald et al. (2024). Primate coloration and colour vision: a comparative approach, Biological Journal of the Linnean Society, Volume 141, Issue 3, Pages 435–455. https://doi.org/10.1093/biolinnean/blad089