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Relato de caso: Um gêmeo preto e o outro branco (albino)

 
          Uma mulher de 22 anos, grávida pela primeira vez, de pele bem escura e origem Africana, deu a luz a dois gêmeos dicoriônicos diamnióticos (ou seja, cada gêmeo tinha seu próprio saco coriônico e saco amniótico, cenário representando todas as gravidezes dizigóticas e ~20% das gravidezes monozigóticas). A gravidez ocorreu sem eventos anômalos até que foi admitida na 40° semana de gestação com pré-eclâmpsia. Um parto por cesárea acabou sendo realizado por causa de um quadro de distocia (ocorrência de anormalidades de tamanho ou posição fetal, resultando em dificuldade no parto natural), e dois bebês do sexo feminino foram retirados.

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          Exame físico mostrou grande diferença entre os dois bebês (Figura 1). Enquanto um bebê possuía uma pele marrom clara, cabelo enrolado e preto, e olhos castanhos, o segundo bebê tinha uma pele muito branca, cabelo ruivo enrolado e olhos azuis. A primeira suspeita foi de superfecundação heteropaternal (!), ou seja, dois distintos pais para cada gêmeo. Histórico médico adicional revelou que a mãe e o alegado pai biológico dos gêmeos tinham origem Congolesa, e ambos tinham um fenótipo similar (pele escura, cabelo encaracolado, olhos castanhos). 

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          A mãe firmemente afirmou que não teve outro parceiro sexual durante o período de concepção. Histórico familiar da mãe revelou que ambos seus pais tinham origem Congolesa, e que sua mãe, tia e avó nasceram com uma pele branca e cabelo encaracolado ruivo. Sua mãe e avó tinham olhos verdes e a tia olhos azuis. Nesse sentido, albinismo se tornou o mais provável diagnóstico.

           Exame oftalmológico da criança de pele branca com 1 mês de idade confirmou uma íris azul; nenhum pigmento foi observado no fundo e a papila era acinzentada. Esses achados corresponderam ao quadro clínico de albinismo oculocutâneo. Aos 7 meses de idade, a cor da íris mudou de azul para verde. Acuidade visual foi testada aos 9 meses de idade e não mostrou nenhuma anormalidade.

           Análise de DNA a partir de amostra de sangue da criança revelou uma deleção de um éxon 7 no gene P, levando a um diagnóstico de albinismo oculocutâneo do tipo 2 (OCA2), algo já evidenciado pelo fenótipo visualmente acessível. Como a mãe e nem o pai possuíam o fenótipo albino, cada um deles contribuiu com um alelo mutante para a manifestação do albinismo em um dos gêmeos. O caso foi reportado e descrito no periódico Journal of Perinatology (Ref.1).


   ALBINISMO

          Albinismo (do Latim albus, significando 'branco') é uma desordem autossômica recessiva que é causada por um defeito na síntese de melanina, onde há redução ou ausência congênita desse pigmento. Na síntese de melanina, a enzima tirosinase atua de forma crucial, porque conduz o primeiro passo do caminho biossintético da melanina. A melanina é sintetizada por melanócitos, células dendríticas localizadas na junção da derme com a epiderme da pele, através de reações enzimáticas que convertem a tirosina em melanina através da enzima tirosinase. Durante o desenvolvimento embrionário, as células precursoras de melanina (melanoblastos) migram para o topo neural da pele, os folículos capilares e a úvea dos olhos. Assim, são diretamente responsáveis pela característica de cor (!). 

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           Embora a síntese de pigmentos ocorra dentro dos melanócitos, a maioria dos pigmentos da pele é encontrada em vesículas cheias de melanina, conhecidas como melanossomos, localizadas dentro de células chamadas de queratinócitos. O pH dentro dos melanossomos é de fundamental importância para regular a atividade da tirosinase, sendo controlado pela proteína-P. Em um ambiente mais ácido, ocorre redução da atividade da tirosinase, resultando em uma pele mais clara.

          O principal tipo de albinismo é o oculocutâneo (OCA), caracterizado pela ausência total ou parcial de melanina, e afetando todo o corpo. Existem sete diferentes tipos de OCA até o momento descritos (OCA1 - OCA7), mas os mais relevantes são os tipos 1 e 2. O bloqueio da síntese de melanina pode ser completo no tipo OCA 1 (albinismo oculocutâneo tirosinase-negativo) e os olhos, cabelos e pele não desenvolvem nenhum pigmento. O OCA 1 é dividido em 1A e 1B, e esses dois subtipos resultam de uma mutação no gene tirosinase (gene TYR) no cromossomo 11. No subtipo 1A, mais agressivo, o gene TYR, produz uma enzima tirosina completamente inativa, e portanto nenhuma melanina é formada em qualquer melanócito. No tipo 1B, o gene produz uma enzima tirosinase parcialmente ativa, resultando em uma síntese reduzida de melanina. 

          O OCA 2 (albinismo oculocutâneo positivo) é o tipo de albinismo mais comum, e resulta de uma mutação no gene P presente no cromossomo 15. Essa mutação faz com que a tirosinase seja retida em compartimentos perinucleares resultando em uma redução na síntese de melanina. No OCA 2, uma quantidade variável de melanina é formada, podendo haver nos indivíduos afetados escurecimento dos cabelos e desenvolvimento de pigmento na íris com a idade.

          Nesse sentido, os albinos tirosinase-positivos produzem certa quantidade de melanina não porque têm o gene da tirosinase afetado, e sim devido ao funcionamento incorreto da enzima (proteína-P) que regula o pH melanossômico. Ou seja, a enzima é ativa, entretanto não tem um meio adequado para funcionar, enquanto os negativos não produzem nenhuma melanina devido ao total comprometimento da tirosinase. Isso explica o cabelo ruivo e os olhos azuis/esverdeados da criança do relato de caso acima descrito.

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           Os albinos são praticamente incapazes de transformar a tirosina em melanina. Consequentemente, têm a pele muito clara, cabelos brancos ou claros e seus olhos são frequentemente vermelhos, pois a luz refletida atravessa os vasos sanguíneos dos olhos, ou, ainda, azul-esverdeados, se houver formação de algum pigmento na íris. Possuem fotofobia, astigmatismo, miopia, além de outros distúrbios visuais devido à hipopigmentação e translucidez da íris. A retina acaba sendo danificada por deficiente filtração de radiação ultravioleta pela íris, levando a uma reduzida acuidade visual.

          A exposição da pele pouco pigmentada ou sem pigmentação à radiação solar leva a queimaduras, manchas pigmentadas e câncer de pele. As mais prevalentes desordens nos albinos são os carcinomas de células basais e de células escamosas. De fato, a mais alta prevalência de carcinomas de células escamosas é consistentemente mostrada na população albina. 

          Para a prevenção de danos visuais e na pele de albinos, é recomendado o uso de roupas compridas, óculos escuros com fator de proteção UV e protetores solares.

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CURIOSIDADE: A prevalência global de albinismo é de 1 para cada 17 mil a 1 para 20 mil, e aproximadamente 1 em cada 70 indivíduos carregam uma alelo mutante associado ao OCA (Ref.3). O OCA2 é relativamente muito comum na África Subsaariana, e um dos motivos apontados é a frequente e culturalmente tolerada ocorrência de casamentos consanguíneos. Prevalências nessa região chegam a valores de 1 para cada 1000 habitantes. Infelizmente, ignorância e superstições alimentam forte preconceito e prejuízo contra os albinos em vários países Africanos, levando inclusive a um comércio macabro de partes corporais de albinos alegadas de trazerem sorte. Para mais informações, acesse: Albinos na África: terror e medo

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REFERÊNCIAS

  1. Claas, M., Timmermans, A. & Bruinse, H. Case report: a black and white twin. J Perinatol 30, 434–436 (2010). https://doi.org/10.1038/jp.2009.156 
  2. Rocha et al. (2007). Diagnóstico laboratorial do albinismo oculocutâneo. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial, 43 (1)https://doi.org/10.1590/S1676-24442007000100006
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK519018/