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Por que nosso cérebro vê rostos e expressões faciais em todo lugar?


- Atualizado no dia 19 de março de 2023 -

           É bem comum as pessoas identificarem padrões visuais percebidos como faces e expressões faciais em vários contextos, ambientes e objetos. Expressões faciais emergem em brinquedos, veículos, pedras, nuvens, troncos de árvore, na calçada, em manchas na janela, no prato de comida, sombras diversas e mesmo na Lua. Até o momento, cientistas não tinham conseguido explicar exatamente o que o cérebro está fazendo quando processa sinais visuais aleatórios e os interpretam como a representação de uma face humana e sua respectiva expressão facial. Em um estudo publicado em 2021 no periódico Proceedings of the Royal Society B (Ref.1), neurocientistas da Universidade de Sydney, Austrália, revelaram que os processos cognitivos no nosso cérebro que identificam e analisam reais faces humanas são os mesmos que identificaram faces ilusórias, implicando também que o fenômeno ilusório é adaptativo.

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          Expressões faciais são um dos mais poderosos e universais métodos que temos para a comunicação social. Nossa habilidade de reconhecer expressões faciais em outras pessoas e entender as emoções que elas significam envolvem tanto componentes afetivos quanto componentes perceptuais que ainda não são totalmente entendidos pela neurologia. Rostos/faces capturam nossa atenção automaticamente, e faces emocionais têm sido mostradas de ter prioridade sobre faces neutras em numerosas tarefas comportamentais. Consistente com a priorização de faces pelo sistema visual, o reconhecimento de expressão facial é pensada de ser suportada por regiões especializadas no cérebro que respondem a pistas faciais dinâmicas.

          Como estímulo visual, as expressões faciais são incrivelmente ricas, originadas de vários intricados movimentos musculares que externalizam nossos estados emocionais internos. Existe evidência de vários estudos científicos que diferentes características visuais são muito relevantes para o reconhecimento de diferentes emoções (ex.: sobrancelhas para 'triste', e a boca para 'feliz'). No caso da sobrancelha, sua importância nesse processo é espelhada no fato dos humanos modernos (Homo sapiens) possuírem uma testa plana e vertical - permitindo um amplo e mais visível espectro de configurações para as sobrancelhas em comparação com humanos arcaicos (ex.: Neandertais) (1).

(1) Leitura recomendada: Por que temos uma testa plana e vertical?

          Nesse caminho, mesmo na ausência de partes que compõem o rosto humano, expressões faciais e seus significados emocionais ainda podem ser transmitidos caso certos elementos estejam presentes. Isso resulta, por exemplo, no fenômeno da pareidolia facial, caracterizada pela pronta percepção de traços faciais ilusórios em objetos inanimados. Pareidolia facial é um erro espontâneo da detecção facial que nós compartilhamos com outros primatas. De forma curiosa, a pareidolia representa a ocorrência de uma expressão facial na ausência de qualquer movimento muscular ou características faciais humanas, além de ser visualmente muito mais diversa do que a face humana. Consequentemente, não é claro se o fenômeno se origina do mesmo mecanismo que processa reais faces humanas.

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PAREIDOLIA: O termo pareidolia (do grego para - junto a - e eidolon - imagem, forma, forma) é um fenômeno psicológico caracterizado pela errônea percepção de estímulos vagos, frequentemente imagens e sons, como portadores de significância. Exemplos incluem interpretações de nuvens como faces ou animais, e percepção de mensagens ocultas em músicas tocadas para trás. Pareidolia pode explicar certas visões de figuras religiosas (santos, Deus, etc.) em sombras e objetos diversos frequentemente reportadas por indivíduos crentes. Apesar de acharmos 'normal' a pareidolia facial, humanos não experienciam esse processo cognitivo com tanta intensidade para outros fenômenos neurológicos. 

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          Visando explorar a natureza neurológica da pareidolia, pesquisadores no novo estudo recrutaram um total de 17 estudantes universitários (5 do sexo masculino e 12 do sexo feminino), os quais participaram de dois diferentes experimentos. No primeiro, os participantes foram apresentados a sequências de faces para serem avaliadas quanto à expressão em uma escala variando de 'raivoso' a 'feliz'. Os pesquisadores encontraram que as imagens de pareidolia eram reconhecidas dentro de um quarto de segundo (250 milissegundos) pelo cérebro e avaliadas de forma confiável para expressão facial, seja para um mesmo observador seja entre observadores, mesmo variando dramaticamente nas características visuais. Os pesquisadores também encontraram que um estabelecido viés no julgamento de faces humanas persistiu com a análise de faces inanimadas ilusórias - onde o julgamento de uma nova face é influenciado pelo julgamento de faces prévias.


          No segundo experimento, os pesquisadores testaram esse último resultado ao misturar e intercalar faces humanas reais com faces de pareidolia. A nova análise corroborou o resultado do primeiro experimento, com efeitos seriais maiores quando faces ilusórias precediam faces humanas do que o reverso (algo talvez causado pelo maior impacto e estranheza causados pela exposição de uma face em um objeto). No contexto geral, isso significa que tanto faces ilusórias quanto faces reais são percebidas como mais similar em expressão (felicidade ou raiva) à imagem previamente exposta, fortemente sugerindo que faces reais e ilusórias compartilham mecanismos similares de adaptação e continuidade temporal. 

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          Os resultados de ambos os experimentos suportam, portanto, um mecanismo compartilhado para a expressão facial entre faces humanas e faces ilusórias e sugere que a expressão humana não é estritamente ligada às características faciais humanas (ex.: cor e aspecto da pele, contornos externos redondos, estrutura craniana). Pelo contrário, parece existir um grande grau de tolerância no sistema para traços visuais que definem a expressão facial, os quais são efetivos mesmo na ausência de estruturas musculares associadas com a expressão em faces reais.

          Macacos Rhesus (primatas muito distantes dos humanos em termos filogenéticos) também experienciam pareidolia facial, sugerindo que a percepção de faces ilusórias é uma característica universal no sistema de detecção facial dos primatas. Faces humanas e ilusórias aceleram a busca visual por um alvo, engajam atenção visual via direção do olhar, são rapidamente percebidas e compartilham mecanismos neurais comuns. 

          Do ponto de vista evolutivo, isso sugere que assim como a detecção facial, nossa habilidade de detectar expressões é otimizada para favorecer respostas rápidas a informações faciais sinalizando valência emocional e que os benefícios de uma detecção veloz e sensitiva supera os custos de ocasionais falsos-positivos (pareidolia). Esse amplo ajuste é provavelmente adaptativo no contexto de comunicação social, já que expressões ilusórias em objetos inanimados não compartilham a mesma probabilidade de sérias consequências que podem seguir uma pista emocional relevante sinalizada por outro agente social. 

          Por exemplo, se alguém está se aproximando de você com um expressão facial de raiva, detectar o mais rapidamente possível essa expressão sinalizada - mesmo com uma ampla margem de erro - pode ser essencial para garantir sua sobrevivência frente a um potencial ataque iminente. Problemas de reconhecimento e discriminação facial - como na  prosopagnosia (!) - provavelmente representaram fortes fatores de pressão seletiva na nossa espécie.


   (!) PROSOPAGNOSIA

          Normalmente, um indivíduo pode reconhecer e lembrar de mais de 5 mil rostos ao longo da sua vida. Prosopagnosia (popularmente chamada de "cegueira facial") é uma rara condição definida como a inabilidade específica de identificar visualmente rostos e/ou reconhecer rostos familiares, como membros da família. A palavra prosopagnosia vem do Grego prosopon (rosto) e agnosia (falta de conhecimento). Existem variados graus de severidade e características na prosopagnosia, incluindo inabilidade:

- de reconhecer rostos;

- de discriminar rostos;

- de identificar diferentes ou o próprio rosto;

- de discernir diferenças entre rostos e objetos ao redor.

          Nesse sentido, essa condição é dividida em dois principais subgrupos: prosopagnosia adquirida, a qual é dividida em aperceptiva e associativa, e a prosopagnosia de desenvolvimento (ou congênita). Na forma aperceptiva, apesar do recebimento normal do estímulo visual, uma percepção visual do rosto não ocorre (déficit de processamento visual), e parece envolver as regiões cerebrais do giro mediano fusiforme e giro inferior ocipital na área occipitotemporal. Na forma associativa, a percepção visual é formada, mas não existe reconhecimento baseado em conteúdo emocional ou traço de memória (falha no reconhecimento de rostos familiares), e envolve a região do giro para-hipocampal na área temporal anterior. A prosopagnosia adquirida se manifesta geralmente após patologias ou danos na estrutura cerebral, como infartos isquêmicos e durante cirurgias no cérebro (Ref.8-9).

          A prosopagnosia congênita é uma condição carregada ao longo de toda a vida do paciente e é caracterizada por uma baixa habilidade de identificar rostos apesar de um desenvolvimento social e intelectual normal. A prevalência dessa condição é comumente reportada ser 2-3% a nível populacional, mas já foi sugerido um valor de até 5% (Ref.10) (3), exibindo diferentes graus de severidade. Possui um componente genético (forte histórico familiar é geralmente presente) e pode se manifestar na forma aperceptiva, associativa ou ambas. O mecanismo de hereditariedade da condição não é totalmente esclarecido, mas é pensada ser autossômico dominante. Existe possivelmente um problema de conexão entre as regiões occipitotemporal e temporal anterior suportando a manifestação da prosopagnosia congênita.

          Indivíduos com prosopagnosia congênita tipicamente possuem pouco ou nenhum problema em categorizar um rosto como um rosto, mas são frequentemente incapazes de reconhecer a identidade da pessoa à qual o rosto pertence. Alguns indivíduos também possuem dificuldades para comparar rostos de pessoas não-familiares, ou em discriminar expressões faciais (2), sexo e fenótipos étnicos. Para compensar, os indivíduos afetados tipicamente dependem de outras pistas não-faciais para o reconhecimento de pessoas, como a voz, cabelo, roupas, modo de se movimentar, contexto e maneirismo em geral. Como essas pistas não-faciais são limitadas, indivíduos com prosopagnosia congênita encontram muita dificuldade com interações sociais, e estão sob maior risco de desenvolverem isolamento social, depressão, ansiedade e outros transtorno de humor. Peculiarmente, pacientes também costumam ter problemas de assistir a séries e a filmes por não conseguirem visualmente acompanhar as personagens.

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(2) Um estudo recente publicado no periódico Cortex (Ref.14) estimou que até 1 em cada 33 pessoas (3,08%) atende ao critério de diagnóstico para prosopagnosia; 1 em cada 108 teria prosopagnosia severa e 1 em cada 47 teria prosopagnosia leve.

(3) Existe evidência de que indivíduos com prosopagnosia, no geral, exibem sutil deficiência no reconhecimento de expressões faciais (Ref.11).

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           Analisando uma amostra de 115 indivíduos com prosopagnosia congênita, um estudo publicado no periódico Brain Science (Ref.12) encontrou que mais da metade dos participantes reportaram pelo menos uma das seguintes condições: afantasia (4), TDAH (5), discalculia, dislexia, problemas de memória, agnosia de objetos, e sinestesia); ~20% do total reportou afantasia.


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 Para mais informações:


            Vários são os testes neuropsicológicos de diagnóstico, como o Teste de Memória Facial de Cambridge, o Teste de Percepção Facial de Cambridge e e o Teste de Faces Famosas (FFT, na sigla em inglês, onde rostos de celebridades precisam ser identificados). Outros métodos de diagnóstico mais eficientes ou extensivos têm sido propostos (Ref.8). Em relação à prosopagnosia adquirida, existe possibilidade de reversão da condição em certas situações (ex.: recuperação de um quadro de infarto isquêmico), e  potencial tratamento para alguns casos (Ref.5-6). Um recente estudo reportou a reversão de um quadro de prosopagnosia adquirida do tipo associativa através de eletroencefalografia quantitativa (qEEG) acoplada com terapia laser-guiada transcraniana quantitativa (qGLT), e sem recorrência após 1 ano de acompanhamento (Ref.13).

   RELATO DE CASO

          Uma criança de 12 anos de idade, do sexo feminino, foi apresentada ao departamento de pediatria de um hospital por causa de problemas sociais e psicológicos e para aconselhamento educacional. A paciente tendia a ser solitária, ter poucos amigos e era muito estudiosa - com um Q.I. acima da média e primeira da classe em várias matérias. Curiosamente, ela reportou aos médicos que nunca foi capaz de reconhecer rostos, exceto aqueles mais familiares. Ela reconhecia as pessoas pelas suas roupas e maneirismos. Quando frequentou por um ano uma escola para crianças dotadas - onde o vestuário era livre -, ela aprendeu a reconhecer seus colegas de classe após um mês ou dois, enquanto que a tarefa era muito mais difícil na sua atual escola onde uniforme padrão era usado. Mesmo após várias visitas ao hospital, ela continuava não reconhecendo os médicos que a atendiam, e aprendeu a reconhecer a psicóloga por causa do seu vestido.

          Eventualmente, a mãe da paciente confessou que não era capaz de reconhecer rostos familiares. Ela sugeriu que, quando era criança, teve menos dificuldade no dia-a-dia do que a sua filha porque morava em uma pequena comunidade, e ia a uma escola onde nenhum uniforme padrão era usado. Ela lembrou acreditar que um amigo da família era duas pessoas diferentes até um dia ele colocar óculos na sua companhia. Ao longo do tempo, ela superou o problema de reconhecimento de rostos ao aprender a usar com maior destreza pistas não-faciais, como o tom de voz.

          O caso foi descrito e reportado em 1976 no periódico Cortex (Ref.7). 


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rspb.2021.0966 
  2. https://www.scielo.br/j/anp/a/k9SNhrMttnmJ3bgM5Z3fnns/
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK559324/
  4. Smith & Susilo (2021). Normal colour perception in developmental prosopagnosia. Scientific Reports 11, 13741. https://doi.org/10.1038/s41598-021-92840-6
  5. Hedaya & Lubar (2022). Reversal of Acquired Prosopagnosia Using Quantitative Electroencephalography-Guided Laser Therapy. Photobiomodulation, Photomedicine, and Laser SurgeryVol. 40, No. 3. https://doi.org/10.1089/photob.2021.0048
  6.  Kesserwani & Kesserwani (2020). Apperceptive Prosopagnosia Secondary to an Ischemic Infarct of the Lingual Gyrus: A Case Report and an Update on the Neuroanatomy, Neurophysiology, and Phenomenology of Prosopagnosia. Cureus 12(10): e11272. https://doi.org/10.7759/cureus.11272
  7. McConachie, Hele R. (1976). Developmental Prosopagnosia. A Single Case Report. Cortex 12, 76-82. https://doi.org/10.1016/S0010-9452(76)80033-0
  8. Schroeger et al. (2022). Atypical prosopagnosia following right hemispheric stroke: A 23-year follow-up study with M.T. Cognitive Neuropsychology, Volume 39, Issue 3-4. https://doi.org/10.1080/02643294.2022.2119838
  9. Debs et al. (2023). Non-dominant temporal lobe surgery: a case report of prosopagnosia following cavernous malformation resection. Acta Neurologica Belgica. https://doi.org/10.1007/s13760-023-02185-2
  10. Burns et al. (2022). A new approach to diagnosing and researching developmental prosopagnosia: Excluded cases are impaired too. Behavior Research Methods. https://doi.org/10.3758/s13428-022-02017-w
  11. Tsantani et al. (2022). New evidence of impaired expression recognition in developmental prosopagnosia. Cortex, Volume 154, Pages 15-26. https://doi.org/10.1016/j.cortex.2022.05.008
  12. Svart & Starrfelt (2022). Is It Just Face Blindness? Exploring Developmental Comorbidity in Individuals with Self-Reported Developmental Prosopagnosia. Brain Sciences 12(2), 230. https://doi.org/10.3390/brainsci12020230
  13. Hedaya & Lubar (2022). Reversal of Acquired Prosopagnosia Using Quantitative Electroencephalography-Guided Laser Therapy. Photobiomodulation, Photomedicine, and Laser Surgery, Vol. 40, No. 3. https://doi.org/10.1089/photob.2021.0048
  14. DeGutis et al. (2023). What is the prevalence of developmental prosopagnosia? An empirical assessment of different diagnostic cutoffs. Cortex, Volume 161, April 2023, Pages 51-64. https://doi.org/10.1016/j.cortex.2022.12.014