A Cultura Clóvis representou os primeiros humanos nas Américas?
A cultura Clóvis - nomeada em homenagem ao local onde as ferramentas de pedras associadas foram encontradas (Clóvis, Novo México), no início da década de 1930 - pertenceu a uma população de humanos modernos (Homo sapiens) que ocupou a América do Norte durante o final da última Era do Gelo. Um estudo publicado em 2021 no periódico Science Advances (Ref.1) - via análises de radiocarbono - encontrou que essas ferramentas foram produzidas durante um curto período de 300 anos (13050-12750 anos atrás), coincidindo com a emergência de múltiplos complexos arqueológicos regionais na América do Norte e a extinção da megafauna nesse continente.
Porém, ainda continua bastante disseminado entre o público que a cultura Clóvis representou os primeiros humanos que migraram da Ásia e se estabeleceram nas Américas - atravessando o Estreito de Bering há cerca de 15 mil anos -, evoluindo eventualmente para os atuais povos Nativos Americanos. Isso é errôneo, e evidências arqueológicas e genéticas diversas nas últimas décadas têm derrubado esse cenário, inclusive a narrativa de que o povoamento das Américas ocorreu exclusivamente via travessia do Estreito de Bering. Múltiplas evidências arqueológicas indicam, inclusive, que, a partir da porção congelada no Estreito de Bering (Beringia) durante a última Era do Gelo - permitindo a conexão entre a Rússia e o Alasca - humanos viajaram de barco pela costa do Pacífico há cerca de 16 mil anos, alcançando o Chile há pelo menos 14,5 mil anos (Ref.2).
Um estudo publicado em 2020 na Nature (Ref.3) revelou evidências arqueológicas (1900 ferramentas de pedras) de humanos habitando uma caverna do México - Caverna de Chiquihite, 2750 metros acima do nível do mar - há 25-30 mil anos, durante o Último Máximo Glacial e muito antes dos "15 mil anos atrás" propostos para a chegada dos primeiros humanos nas Américas. Portanto, os atuais povos nativos Americanos não parecem ser descendentes dos primeiros Americanos. É possível, aliás, que várias tentativas prévias de colonização fracassaram ao longo de vários milênios, antes de um estabelecimento de sucesso (Cultura Clóvis).
Em 2021, um estudo publicado na Science (Ref.4), analisando 60 pegadas humanas - produzidas por crianças e adolescentes - encontradas em sete camadas de sedimento no Parque Nacional White Sands, Novo México, EUA (imagem abaixo), concluiu que humanos já estavam presentes no continente Americano há pelo menos 21-23 mil anos, durante o Último Máximo Glacial. A datação foi feita via radiocarbono - em sementes embebidas nas camadas sedimentares -, e o período estimado coincide com um abrupto evento de aquecimento no Hemisfério Norte - Evento Dansgaard-Oeschger 2 - que culminou em uma drástica redução no nível de lagos e permitiu que humanos e megafauna andassem sobre as novas superfícies expostas, criando pegadas que se tornaram preservadas no registro geológico. Mais recentemente, outro estudo publicado na Science (Ref.8), e conduzido pelos mesmos autores do estudo de 2021, reforçou a datação prévia das pegadas com outras técnicas analíticas, incluindo luminescência opticamente estimulada (OSL)*, reafirmando que humanos estavam presentes na América do Norte entre 20 e 23 mil anos atrás.
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*Para mais informações sobre essa e outras técnicas de datação: Como calcular a idade dos fósseis e da Terra?
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Em 2022, arqueólogos reportaram pontas de pedra milhares de anos mais antigas do que quaisquer outras já encontradas nas Américas, em Idaho, EUA (Ref.5). No total, foram descritas 14 pontas completas e fragmentadas, com comprimentos de até ~5 cm. Através de datação com carbono-14, as pontas foram determinadas terem sido feitas há cerca de 16 mil anos, ~3 mil anos mais antigo do que as pontas associadas à cultura Clóvis. As características das pontas eram semelhantes àquelas de ferramentas do Paleolítico Superior Tardio da parte noroeste do Círculo de Fogo do Pacífico (ex.: povo Jomon, em Hokkaido, Japão), datadas de ~20 mil a 19 mil anos atrás. Isso sugere que algumas das primeiras tradições tecnológicas que chegaram nas Américas podem ter tido origem dessa região do Pacífico, e reforça as hipóteses tradicionais de conexão cultural e talvez genética (!) entre povos da Idade do Gelo do Noroeste Asiático e os primeiros povoamentos da América do Norte.
REFERÊNCIAS
- https://advances.sciencemag.org/content/6/43/eaaz0455
- https://www.science.org/content/article/most-archaeologists-think-first-americans-arrived-boat-now-they-re-beginning-prove-it
- https://www.nature.com/articles/s41586-020-2509-0
- https://www.science.org/doi/10.1126/science.abg7586
- Davis et al. (2022). Dating of a large tool assemblage at the Cooper’s Ferry site (Idaho, USA) to ~15,785 cal yr B.P. extends the age of stemmed points in the Americas. Science Advances, Vol. 8, Issue 51. https://doi.org/10.1126/sciadv.ade1248
- https://revistapesquisa.fapesp.br/colar-de-ossos-de-preguica-gigante-de-25-mil-anos-e-pista-de-interacao-com-humanos/
- Pacheco et al. (2023). Evidence of artefacts made of giant sloth bones in central Brazil around the last glacial maximum. Proceedings of the Royal Society B, Volume 290, Issue 2002. https://doi.org/10.1098/rspb.2023.0316
- Pigati et al. (2023). Independent age estimates resolve the controversy of ancient human footprints at White Sands. Science, Vol. 382, Issue 6666, pp. 73-75. https://www.science.org/doi/10.1126/science.adh5007