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Fique alerta: a obesidade caminha junto com o câncer


- Atualizado no dia 1 de março de 2023 -

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         Infelizmente, a população, no geral, ainda vê a obesidade e o sobrepeso mais como um incômodo estético do que um fardo negativo para a saúde. Mas, como muitos devem saber, a obesidade traz o aumento de riscos para vários problemas para o corpo, com a diabetes e os danos cardiovasculares sendo os mais conhecidos. Porém, um outro efeito colateral maléfico da obesidade é ignorado pela maior parte da pessoas: um aumento no risco de desenvolvimento e taxa de mortalidade em vários tipos de câncer. A forte associação entre câncer e obesidade é algo já muito bem estabelecido na comunidade médica.

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   CÂNCER E OBESIDADE

          Um estudo publicado em 2016 pelo Cancer Research UK trouxe um dado agravante: 3 em cada 4 pessoas desconheciam a ligação entre obesidade e câncer no Reino Unido (Ref.1). E olha que estamos falando de um dos blocos mais desenvolvidos do mundo, onde a população possui, na média, um alto nível educacional, um excelente sistema de saúde e diversos ótimos veículos de divulgação científica. Agora imagine países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil.

         No Reino Unido, são cerca de 18,1 mil casos de câncer por ano ligados ao sobrepeso e à obesidade. Já um estudo epidemiológico colaborativo recente entre a USP e a Harvard (Ref.24) encontrou que em torno de 15,4 mil novos casos de câncer em 2012 foram causados pela obesidade e o sobrepeso aqui no Brasil. Isso corresponde a cerca de 3,8% dos 400 mil casos diagnosticados de câncer naquele ano. Nos EUA, 1 em cada 17 novos casos de câncer estão associados ao excesso de massa adiposa  (gordura) no corpo, variando de 3,9-6% dos casos entre homens e de 7,1-11,4% entre as mulheres, dependendo da região analisada (Ref.26). Devido ao risco independente de  cânceres de mama, ovário e útero, 10 mil dos 15,4 mil casos afetaram as mulheres. E devemos nós preocupar: segundo o Ministério da Saúde, entre 2006 e 2018 o número de obesos aqui no Brasil aumentou 67,8%, representando 19,8% da população em 2018. Mais da metade da população Brasileira (55,7%) estava com sobrepeso em 2018. O aumento de prevalência do excesso de gordura corporal foi de 40% entre as mulheres e de 21,7% entre os homens.

        São 13 os tipos de câncer diretamente ligados ao excesso de massa adiposa no corpo. Entre eles, o câncer de mama (pós-menopausa), endométrio (pós-menopausa), colorretal, rins e o adenocarcinoma do esôfago e da cardia são os tipos mais fortemente associados. É estimado que mais de 14% e 20% das mortes associadas a cânceres em homens e em mulheres, respectivamente, são causadas pela obesidade (Ref.41).


           E essa associação não fica apenas no risco de desenvolvimento inicial desses tumores, mas na taxa de mortalidade dos pacientes, ou seja, para quem já desenvolveu e enfrenta esses cânceres, a expectativa de vida pode diminuir caso exista um excesso de massa corporal adiposa. No caso do câncer colorretal (CRC), por exemplo, é estimado que 11% de todas as pessoas com esse tipo de tumor o desenvolveram por causa da obesidade, com esta aumentando os riscos para o CRC entre 30 e 70% para os homens.

*Dados de 2016 baseados na população Britânica

          No geral, temos o câncer colorretal, o câncer de mama e o de endométrio são os mais fortemente associados ao índice de massa corporal do indivíduo (em relação ao excesso de massa adiposa) como fator de risco. Como um fator de risco independente, obesidade na pós-menopausa representa um risco até 20% maior para o desenvolvimento de câncer de mama, e cada 5 unidades de aumento no Índice de Massa Corporal (IMC) está associado com um risco 12% maior de câncer de mama (Ref.43).

          Mas ainda existe notável associação entre obesidade e câncer nos rins e o adenocarconoma do esôfago e da cardia, além de outros como aqueles que afetam a tireoide, próstata (maiores índices de tumores agressivos) e o ovário. Existem suspeitas também quanto o papel do excesso de gordura corporal nos cânceres de pescoço e cabeça (não causados pelo vírus HPV), e no pênis (1). Mais recentemente, evidência emergiu associando obesidade na infância com um aumento no risco de câncer de bexiga nos adultos (Ref.36).

        No caso dos cânceres renais, aquele associado à obesidade e ao sobrepeso é o carcinoma celular renal (CCR). Antes existia uma dúvida se o excesso de massa adiposa também aumentava os riscos de CCR na adolescência, ou se era apenas entre os adultos, mas um recente estudo publicado no International Journal of Cancer (Ref.28), analisando 238788 homens Suecos por 37 anos (idade inicial média de 18,5 anos) mostrou que adolescentes obesos ou com sobrepeso possuíam um risco 6% maior de desenvolver esse tipo de câncer durante a fase adulta, independentemente se mantiveram um peso saudável nessa quando adultos. Ou seja, esses aumento de risco na adolescência se soma com os riscos da obesidade/sobrepeso na fase adulta. Cerca de 90% dos casos de tumor maligno nos rins são CCRs, os quais estão associados a 140 mil mortes e a 338 mil novos casos todos os anos ao redor do mundo, e com uma taxa de incidência crescente.

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ATUALIZAÇÃO (02/03/18)Um estudo publicado no The Lancet (Ref.22) estima que 5-6% de todos os casos de cânceres em 2012 estavam ligados diretamente ao efeito combinado da diabetes com o sobrepeso/obesidade como fatores independentes de risco. Isso corresponde a cerca de 792600 novos casos de cânceres, onde 187600 eram de câncer do fígado e 121700 de câncer do endométrio. Lembrando que a obesidade e o sobrepeso em grande parte dos casos estão acompanhados da diabetes, com essa última incluída no mecanismo de 'caos metabólico' discutido neste artigo.

ATUALIZAÇÃO (10/05/19)Um estudo publicado no Journal of Diabetes (Ref.29), analisando 410191 adultos com diabetes tipo 2 em Xangai, na China, reforçou a associação entre diabetes e câncer. Os pesquisadores encontraram que a diabetes tipo 2 estava ligada com um elevado risco de 11 tipos de câncer nos homens e de 13 tipos de câncer nas mulheres (um maior risco médio de 34% nos homens e de 62% nas mulheres). Entre os homens, a diabetes estava mais fortemente ligada com o câncer de próstata (86% maior risco). Nas mulheres, o maior risco foi para o câncer nasofaringeal (200% maior risco). No geral, a diabetes mostrou estar ligada aos cânceres de pele, da tireoide, renal, hepático, pancreático, pulmonar, colorretal, estomacal, de esôfago, de útero, de mama, cervical e com o linfoma e a leucemia.

ATUALIZAÇÃO (06/02/19): Um estudo observacional publicado no periódico The Lancet (Ref.27) mostrou que os casos de 6 cânceres associados à obesidade (colorretal, corpo uterino, pancreático, vesícula biliar, renal e mieloma múltiplo) aumentaram substancialmente nos EUA entre indivíduos entre 25 e 49 anos. A alta taxa de aumento acompanha o crescimento no número de crianças, adolescentes e adultos com sobrepeso ou obesos no país. Já cânceres associados ao cigarro e à AIDS, e a outros 7 fatores de risco, diminuíram significativamente nas novas gerações. Especialistas estão preocupados que a epidemia de obesidade dos últimos 40 anos possa reverter boa parte dos avanços alcançados na luta de prevenção ao câncer. Para o estudo, os pesquisadores analisaram dados de incidência em 25 estados Norte-Americanos, englobando 67% da população, de 30 dos mais comuns tipos de câncer, incluindo 12 associados à obesidade. Entre jovens adultos de 25 a 29 anos, houve um aumento de 6,2% nos casos de câncer renal do ano de 1995 até 2014. Para os cânceres não associados com a obesidade, com exceção de dois (leucemia e câncer gástrico não-cardíaco), as taxas de incidência decresceram ou aumentaram de forma não significativa.

ATUALIZAÇÃO (03/11/19): Segundo dados do Cancer Research UK (Ref.34), as mortes por câncer hepático aumentaram em torno de 50% na última década no Reino Unido. De 3200 em 2007 para 5700 em 2017, acompanhando um aumento de 60% dos casos diagnosticados (e provavelmente o aumento na taxa de obesidade). Esse é um dos cânceres mais difíceis de serem tratados e a taxa de sobrevivência é baixa (6-37% ao longo de 5 anos dependendo da idade e do sexo). E dois dos principais fatores de risco são o sobrepeso/obesidade (23% dos casos) e o fumo (20% dos casos). A prevalência é maior acima dos 60 anos, mas pode atingir indivíduos de qualquer idade. Cerda de metade dos casos são preveníveis.

ATUALIZAÇÃO (05/11/22): Obesidade e sobrepeso podem quase dobrar o risco para câncer no útero, particularmente endometrial   
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     MECANISMOS

           Mas qual seria a relação entre excesso de tecido adiposo no corpo e desenvolvimento ou prognóstico de cânceres? Os pesquisadores ainda não possuem uma resposta clara para isso, e pode ser que os fatores de risco associados mudem significativamente de um tipo de câncer para outro. Além disso, o tipo de distribuição de gordura pelo corpo, o sexo e a etnia podem também influenciar. Mas algo é importante a ser considerado: o tecido adiposo no corpo não é apenas "gordura". As células do tecido adiposo - particularmente células adiposas abdominais e no pescoço (!) - são biologicamente muito ativas, produzindo hormônios e biomoléculas diversas que afetam todo o corpo. 


          Existem três principais propostas teóricas que tentam explicar a associação entre excesso de tecido adiposo e câncer, as quais podem ser complementares entre si ou não:

1. Níveis de estrógenos: Como já mencionado em um artigo anterior (2), as células adiposas (de gordura) não apenas servem para acumular calorias no corpo na forma de gordura. Na verdade, elas são verdadeiros órgãos para o corpo, liberando diversos hormônios e participando de vários processos metabólicos, direta e indiretamente. Em especial, é bem conhecido que as células adiposas promovem uma produção extra de estrógenos no corpo, por possuírem boas quantidades da enzima aromatase, esta a qual transforma os andrógenos  como a testosterona) em estrógenos (como o estradiol).

           Esse aumento de estrógenos leva a um maior risco de desenvolvimento de câncer no útero (incluindo o endométrio) e nas mamas, já que esses hormônios promovem uma maior divisão e proliferação das células nesses tecidos, algo que estimula o desenvolvimento ou o agravamento de tumores. Por isso um dos principais tratamentos em mulheres com câncer de mama é o uso de medicamentos anti-aromáticos, para impedir a produção de mais estrógenos. Raros cânceres de mama em homens também são explicado pelo motivo acima.

           A obesidade também é um sério fator de risco para altos níveis de colesterol no sangue, com consequente maior nível da molécula 27-hidroxicolesterol (27HC), um dos metabólitos do colesterol produzidos no fígado. O metabólito 27HC interfere com os receptores de estrógeno no corpo, somado com potenciais ações pró-tumorais no tecido adiposo, e têm sido proposto de ser uma das principais ligações entre câncer e obesidade (Ref.41).


2. Caos Metabólico: Como dito anteriormente, as células adiposas no corpo influenciam diversos processos metabólicos no organismo, os quais podem não ser nada bem vindos. No caso do câncer, um dos principais vilões associados é a insulina. Com a obesidade, o corpo tende a criar uma maior resistência a esse hormônio, especialmente devido ao aumento do número de ácidos graxos liberados pelas células adiposas no sangue. Com isso, o pâncreas é forçado a trabalhar mais para produzir mais insulina no sentido de tentar sensibilizar melhor as células do corpo.

          Além desse processo de exaustão pancreática poder levar a um quadro de diabetes tipo 2, uma maior quantidade de insulina circulando na corrente sanguínea leva a uma maior produção de fatores de crescimento e menor produção de SHBG (Globulina Ligadora de Hormônios Sexuais). Os fatores de crescimento induzem a um maior crescimento e proliferação das células, estimulando o surgimento de tumores. Já o SHBG leva a uma maior quantidade de estrógenos livres no sangue e, portanto, biologicamente mais disponíveis, algo que se junta à primeira teoria. Aliás, existe evidência de um número de genes regulados pela obesidade - através dos seus efeitos sobre os níveis de insulina - que estão fortemente associados com o câncer de tireoide (Ref.38).

           Somando-se, um estudo publicado na Nature (Ref.30) concluiu que altos níveis de glicose circulando no corpo interferem negativamente na fosforilação mediada pela AMPK (cinase AMP-mediada) na serina 99, o que resulta na desestabilização do supressor de tumor TET2 seguido por uma desregulação tanto do DNA 5-hidroximetiloma quanto da função supressiva do TET2 in vitro e in vivo. Esse achado conecta diretamente a diabetes com o câncer, revelando um provável mecanismo epigenético de ligação.

          De fato, uma revisão sistemática e meta-análise recente encontrou que a diabetes é um fator de risco para a maioria dos cânceres, especialmente entre as mulheres. Para saber mais, acesse: Diabetes aumenta substancialmente o risco da maioria dos cânceres, especialmente em mulheres.
     
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ATUALIZAÇÃO (27/11/22): Lipídios associados com a obesidade tornam células cancerígenas mais agressivas e prováveis de formarem reais tumores malignos. Para mais informações: Novo mecanismo metabólico ajuda a explicar por que o sobrepeso e a obesidade promovem cânceres
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3. Processos inflamatórios: Quando a pessoa começa a ganhar mais massa de gordura no corpo, aumentando o número de células adiposas, existe também um aumento no número de células imunes chamadas de macrófagos. O número de macrófagos e células adiposas pode chegar a uma relação de 4 para cada 10, respectivamente. Isso provavelmente ocorre porque o corpo já se prepara para um maior número dessas células de gordura morrendo, acarretando em uma maior necessidade de faxineiros celulares para sua remoção (os macrófagos possuem o papel de limpeza celular, tirando células mortas do caminho, por exemplo).

           Só que durante essa grande faxina, os macrófagos também liberam um vasto número de substâncias chamadas de citocinas, as quais ajudam a sinalizar outras células a virem também em auxílio de limpeza, em um típico processo inflamatório. Quanto mais obesa a pessoa, mais macrófagos e mais células mortas para limpar, liberando ainda mais citocinas. Isso acaba levando a um quadro crônico de inflamação no corpo. Diversas doenças estão ligadas a uma situação de contínuo excesso inflamatório no corpo, incluindo o câncer. O processo inflamatório é bom para o corpo em momentos específicos porque induz à recuperação de alguma irritação, ataque de agentes externos (machucados parasitas, etc.), entre outros, mas um contínuo processo inflamatório não é nada desejável.

           Entre outros efeitos adversos, a inflamação leva a uma maior divisão e proliferação celular (ora, cortou o dedo, por exemplo, é necessário crescer os tecidos de volta para a cura do machucado), sinalização essa que leva também a possíveis células tumorais a se dividirem em significativo grau para causar um câncer, caso exista uma inflamação crônica. 


4. Disrupção do sistema imune: Além de macrófagos, a obesidade está associada com alterações na funcionalidade de várias outras células imunes, como linfócitos B e T, mastócitos e células exterminadoras naturais (linfócitos citotóxicos essenciais para o funcionamento do sistema imune inato). As células exterminadoras naturais, em particular, possuem um importante papel no combate a infecções virais/bacterianas/parasitárias e células tumorais, e o excesso na secreção de adipocinas (ex.: leptina) através do crescimento excessivo de tecido adiposo levam a disfunções no funcionamento dessas células imunes e, consequentemente, uma menor capacidade de eliminar células tumorais (Ref.40).

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> Segundo os resultados de um estudo publicado em 2017 na Cell Metabolism (Ref.21), a obesidade leva à liberação de citocinas na corrente sanguínea que impactam o metabolismo de células cancerígenas nas mamas, tornando-as mais agressivas. Esse é mais um mecanismo pelo qual o excesso de massa adiposa no corpo leva ao desenvolvimento ou piora de um câncer. A enzima ACC1 participa em um papel central nesse processo, sendo um componente chave na síntese de ácidos graxos. Sua ação enzimática é prejudicada pelas citocinas leptina e TGF-beta, estas as quais possuem seus níveis aumentados no sangue de indivíduos com grande sobrepeso. Os pesquisadores envolvidos no estudo demonstraram que a inibição da ACC1 leva ao acúmulo do percursor de ácidos graxos acetil-CoA. Esse percursor, por sua vez, é transferido para certos genes interruptores, causando o aumento da capacidade metastática das células cancerígenas ao ativar um programa específico de genes.

> Processos inflamatórios são mediados principalmente pelo caminho de sinalização canônico NF-κB. Em um estudo publicado em 2021 no periódico Molecular Cancer (Ref.41), pesquisadores usaram a técnica de edição genética CRISPR-Cas9 para mostrar que as enzimas associadas ao NF-κB (IKK-beta e IKK-alfa) interagem de forma importante com a proteína c-Myc, presente em elevada quantidade em várias formas de câncer. Essa correlação foi reforçada através de experimentos em modelos de rato com câncer de próstata. A enzima IKK-alfa fosforila a proteína c-Myc de forma a estabilizá-la, levando ao aumento da sua atividade transcricional, maior proliferação celular e menor taxa de apoptose - consequentemente favorecendo o desenvolvimento tumoral. Desregulação da proteína c-Myc contribui para mais de 50% dos cânceres em humanos ao aumentar a proliferação e sobrevivência celular, a instabilidade genética, angiogênese e metástase.
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   OBESIDADE É UMA DOENÇA?

          Na Inglaterra, a obesidade já afeta quase um terço (29%) da população, e é esperado que essa taxa aumente para 35% até 2030. Nos EUA, a situação não melhora, com mais de 42% da população adulta já obesa, e com um estudo publicado no final de 2019 no periódico New England Journal of Medicine (Ref.35) estimando que até 2030, aproximadamente metade (48,9%) dos Norte-Americanos serão obesos e acima de 24% da população do país terá obesidade severa. E, segundo um estudo também recente publicado no periódico Annals of Internal Medicine (Ref.33), a prevalência de obesidade geral na China triplicou nas últimas décadas e aquela de obesidade abdominal aumentou em mais de 50%. De fato, uma epidemia global de obesidade já é reconhecida pelas agências de saúde. Mas é a hora de classificarmos o excesso de gordura corporal como uma doença?

          A obesidade, na qual um excesso de tecido adiposo se acumula no corpo a um ponto onde efeitos adversos a saúde podem emergir (cardiovasculares, cancerígenos e metabólicos), encontra, sim, a definição de doença de acordo com vários especialistas. Assim como a diabetes e a hipertensão, a obesidade também seria uma doença crônica. Isso foi aliás tema de debate recente em uma publicação no respeitado periódico British Medical Journal (Ref.31).

          Segundo esses especialistas, já foram identificados mais de 200 genes que influenciam na composição da massa corporal dos indivíduos, com a maioria sendo expressos no cérebro e no tecido adiposo. Nesse sentido, a distribuição de gordura pelo corpo é fortemente influenciada por fatores biológicos, não sendo necessariamente culpa do indivíduo o desenvolvimento de obesidade. Além disso, o aumento drástico no aumento de casos de obesidade está também associado a um ambiente alterado (disponibilidade e custo de alimentos, fatores sociais e ambiente físico).

          No entanto, a visão mais disseminada é que a obesidade é auto-infligida e que é total culpa do indivíduo sua obesidade, algo que influencia negativamente inclusive os profissionais de saúde lidando com pacientes que enfrentam o problema. Além disso, o status de doença diminuiria a discriminação e a estigma sofridas pelos indivíduos obesos.

          Mas é apontado também que nem todas as pessoas com obesidade irão desenvolver complicações de saúde, e que esse grupo minoritário poderia ficar de fora da classificação de 'doença'.

          Já outros especialistas não veem benefícios com essa nova classificação, sugerindo potenciais consequências negativas para os indivíduos e a sociedade. Eles dizem que a definição de doença se tomada literalmente é muito vaga, e que quase tudo poderia ser classificado dessa maneira. As pessoas obesas poderiam ficar desmotivadas a querer agir para emagrecer, porque passariam a entender a obesidade não mais como um fator de risco que pode ser mudado, mas algo que requer uma intervenção externa (medicamentos e cirurgias) para ser solucionado. Isso expõe o indivíduo a riscos nem sempre necessários, e apenas beneficiaria a indústria farmacêutica e os fornecedores de planos de saúde.

          Esses especialistas argumentam que a origem da obesidade, apesar dos fatores biológicos envolvidos, é na maioria das vezes determinada principalmente pelos fatores sociais, estes os quais podem ser mudados sem intervenção farmacológica ou cirúrgica, apenas com a escolha de um melhor estilo de vida e força de vontade.


   EXISTE OBESIDADE "SAUDÁVEL"?

          O tecido adiposo NÃO é apenas gordura. Além de funções de armazenamento energético e de isolamento térmico, esse tecido é um órgão endócrino altamente plástico e sinalizador, o qual secreta múltiplas moléculas bioativas - incluindo hormônios - com efeitos diversos no corpo. Excesso na produção dessas biomoléculas pode levar a um quadro de elevado status inflamatório e de mau funcionamento de órgãos diversos. Obesidade e sobrepeso podem induzir complicações severas, como diabetes Tipo II, hiperlipidemia, aterosclerose e doenças cardiovasculares, e pode agravar outras doenças inflamatórias crônicas e autoimunes. Aliás, obesidade é um dos principais fatores de risco para progressão severa da COVID-19.

           Nas últimas décadas, alguns estudos observacionais e de revisão têm sugerido existir um fator de proteção contra mortalidade até certo limite de excesso adiposo, algo referenciado como "Paradoxo da Obesidade" (!). Porém, estudos mais recentes têm questionado esse alegado paradoxo, citando múltiplos fatores de viés nas análises estatísticas, incluindo o conceito limitado de IMC, ganho apenas temporário de massa adiposa em indivíduos tipicamente sem excesso adiposo no corpo (mas classificados erroneamente como pessoas com sobrepeso para análises futuras) e a tendência de emagrecimento (intencional ou não) após o desenvolvimento de doenças severas em indivíduos com sobrepeso ou obesidade de longo prazo (reduzindo o risco de mortalidade).

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(!) Para mais informações: O que é o Paradoxo da Obesidade?

> O conceito de IMC (índice de massa corporal) leva em conta apenas a massa total e a altura do indivíduo, ignorando a composição corporal. Por exemplo, fisiculturistas possuem um alto IMC devido à grande massa muscular, mas obviamente não são obesos (pelo contrário, possuem taxas extremamente baixas de gordura corporal).
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          Um estudo publicado recentemente no periódico Population Studies (Ref.44) encontrou que o risco de morte é aumentado pelo sobrepeso ou obesidade em torno de 22% a 91%, um valor significativamente maior do que antes estimado. A análise estatística de quase 18 mil pessoas conduzida pelo estudo jogou luz também sobre as sérias limitações relativas ao uso do IMC para determinar o nível de excesso adiposo das pessoas e avaliar o aspecto de saúde de um paciente. Após levar em conta as limitações do conceito de IMC e de outros fatores de viés, o estudo estimou que ~1 a cada 6 mortes nos EUA estão relacionados com o sobrepeso ou obesidade. 

          "Estudos existentes provavelmente têm subestimado as consequências de mortalidade de viver em um país onde comida barata e não saudável se tornou cada vez mais acessível, e estilos de vida sedentários se tornaram a norma," disse em entrevista o autor do estudo, Dr. Ryan Masters, professor associado de Sociologia na Universidade do Colorado [Boulder] (Ref.45). "O estudo e outros estão começando a expor o verdadeiro resultado dessa crise de saúde pública."


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  CONCLUSÃO

          A obesidade é responsável por um mínimo de 2,8 milhões de mortes ao redor do mundo, sendo a quinta maior causa de aumento nos riscos gerais de mortalidade entre a população. Em relação ao câncer, em 2012 a OMS estimou 14 milhões de novos casos, com outras 8,2 milhões de mortes relacionadas. É estimado,  por ano, algo próximo de 600 mil deles ocorrendo aqui no Brasil. Entre os novos casos de câncer a nível global, cerca de 500 mil deles podem estar ligados à obesidade. Portanto, uma mudança no estilo de vida, focando em uma melhor dieta e prática constante de exercícios físicos causa impacto não somente na sua estética, mas na sua longevidade e bem-estar. E isso sem contar os riscos aumentados de câncer ligados à uma alimentação suspeita...

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Câncer: O câncer é um amplo espectro de doenças relacionadas entre si, com todas elas possuindo uma característica comum: células no corpo que começam a se dividir sem parar e a se espalhar para outros tecidos ao redor. Essa invasão é altamente danosa, piorando ainda mais quando o tumor consegue viajar pela corrente sanguínea e atingir diversas outras áreas distantes do corpo. Causado por mudanças genéticas nas células, diversos são os fatores que podem iniciar o câncer ou alimentá-lo, como o fumo, excesso de raios ultravioletas, consumo alcoólico e a obesidade.
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(1) É válido lembrar também que existe uma certa associação inversamente proporcional entre alguns tipos de câncer e o índice de massa corporal (BMI) do indivíduo, como tumores no pescoço e cabeça causados pelo vírus HPV, e nos casos de câncer de mama nas mulheres que ainda não chegaram na menopausa. Mas como a obesidade leva ao desenvolvimento de diversos outros cânceres e vários outros problemas de saúde, esse é um dado quase irrelevante.

(2) Artigo Mencionado: Qual é a relação entre câncer de mama masculino e ginecomastia?


> Segundo relatório divulgado em 2018 pela Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Câncer (IARC, na sigla em inglês) (Ref.25), é estimado que 18,1 milhões de novos casos de câncer e 9,6 milhões de pessoas irão morrer com a doença este ano ao redor do mundo. Em 2012, foram 14,1 milhões de novos casos e 8,2 milhões de mortes. Um em cada 5 homens e uma em cada 6 mulheres desenvolverão câncer ao longo da vida, e um em cada 8 homens e uma em cada 11 mulheres irão morrer devido à doença. O aumento, apenas em parte, é devido ao crescimento da população mundial e à maior proporção de idosos. Um terço dos casos envolverá cânceres de pulmão, mama ou colorretal, estes os quais estão entre os cinco que mais matam (primeiro, quinto e segundo, respectivamente) - cânceres de fígado e estômago estão em terceiro e quarto lugares de maior mortalidade, respectivamente.


Artigo Recomendado: Bebidas alcoólicas e o câncer


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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://scienceblog.cancerresearchuk.org/2016/09/09/the-public-dont-know-obesity-causes-cancer-and-thats-really-worrying/
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  4. https://bmcurol.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12894-016-0161-7
  5. http://link.springer.com/article/10.1007/s10552-014-0490-3
  6. www.sciencedirect.com/science/article/pii/S014067360860269
  7. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1470204502008495
  8. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0095454309000293
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  11. http://europepmc.org/abstract/med/24170556
  12. http://annonc.oxfordjournals.org/content/early/2014/06/18/annonc.mdu042.short
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  16. http://link.springer.com/article/10.1007/s10549-012-2339-3
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  21. http://dx.doi.org/10.1016/j.cmet.2017.09.018
  22. http://www.thelancet.com/journals/landia/article/PIIS2213-8587(17)30366-2/fulltext
  23. http://scienceblog.cancerresearchuk.org/2018/03/23/new-calculations-confirm-lifestyle-changes-could-prevent-4-in-10-cancer-cases/
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