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Por que ficamos corados?


- Atualizado no dia 17 de abril de 2022 -

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           Todos aqui provavelmente já estiveram em uma situação de constrangimento em público, ou foram pegos no flagra em algum tipo de transgressão social. E uma das primeiras reações que temos nesse tipo de situação é ficar com o rosto bem corado ou ruborizado. Independente da cor de pele, etnia ou cultura, uma alteração da pele será visivelmente manifestada, devido à vasodilatação sanguínea disparada pelo esse estímulo psicológico. Mas será que ficar com o "rosto vermelho" possui alguma função evolutiva na nossa espécie?

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         Corar o rosto em certas situações de atenção social não-desejada é uma das características mais marcantes dos humanos modernos (Homo sapiens), e foi inclusive explorada por Charles Darwin no final do século XIX. Essa é uma manifestação fisiológica tão normal que raramente paramos para pensar no porquê disso acontecer. Para tentarmos entender o que estaria por trás desse fenômeno, primeiro precisamos nos lembrar que a área atingida pela vermelhidão é a face descoberta da cabeça, ou seja, o rosto, o qual é o centro da atenção social. É ali onde todos os olhos são dirigidos em maior foco durante um contato social, seja em uma conversa ou em um primeiro encontro. Em segundo lugar, corar é um sinal social de alta confiabilidade (sinalização honesta): parece ser impossível fingir ou suprimir o ato, ou seja, é uma reação involuntária quando disparada por um estímulo psicológico específico, sendo o processo controlado pelas enervações simpáticas do sistema nervoso autônomo.

         Nesse mesmo caminho, precisamos também lembrar que o ato de corar ocorre em um espectro de circunstâncias sociais, sendo disparado após um mau comportamento ou até mesmo após uma parabenização, frequentemente existindo uma auto-sensação de vergonha, culpa ou de constrangimento junto - mas também podendo estar envolvido prazer ou orgulho. Mas todas essas situações irão requerer a presença de um público (1) como testemunha, ou seja, o ato de corar não ocorre simplesmente pelo ganho de um elogio ou pelo mau comportamento descoberto. A pessoa corada se percebe como o foco das atenções. Parece óbvio pensar, então, que corar o rosto possui a finalidade de mandar um sinal social para as pessoas ( ou 'pessoa') associadas a um público atento. Mas qual sinal seria esse? 

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(1) Esse público (uma ou mais pessoas) pode também ser algo simulado na mente do indivíduo. Assim, você pode corar simplesmente por pensar que está em frente de alguém.
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    CORAR: EFEITO POSITIVO

          Experimentos já mostraram que quando uma pessoa acha que vai desapontar outra por causa de um mau comportamento, o ato de corar parece fazer com que os espectadores julguem a pessoa corada de forma mais positiva, melhorando o julgamento dos outros sobre a transgressão cometida. Em outras palavras, ficar com o rosto vermelhinho nesse tipo de situação aumenta sua simpatia e pode fazer as pessoas te julgando levarem sua transgressão menos a sério. Isso pode estar também sendo somado a outras expressões de vergonha (evitar contato visual, supressão do sorriso, toques da mão no rosto, etc.) para amplificar a percepção de simpatia por terceiros, ajudando a evitar conflitos e a salvar laços sociais.

           Por trás desse benefício do rubor facial, estaria a ideia de que a vermelhidão involuntária do rosto significa uma não intenção e arrependimento na execução da ação sendo julgada e que as pessoas precisam perdoá-lo por isso. Você falar que está arrependido são apenas palavras. Mas quando seu rosto fica vermelho, isso demonstraria um real sinal (estado emocional) de arrependimento, por ser algo involuntário. Também já foi mostrado que o ato de corar passa uma imagem de confiança da sua pessoa para os outros, ajudando também a amenizar suas ações de transgressão com uma mensagem do tipo "não farei isso de novo, confiem em mim". Porém, caso não exista uma situação de transgressão relacionada ao ato de corar, não existem evidências científicas de que exista qualquer tipo de benefício social envolvido. 

            Portanto, corar serve como uma função social, no sentido de comunicar não-verbalmente para outras pessoas que nós sinceramente estamos envergonhados e arrependidos de uma transgressão social, e que nós valorizamos a avaliação social do grupo, o que pode amenizar e minimizar a desaprovação social. Tal expressão se torna importante no contexto da história evolucionária da nossa espécie, quando exclusão social pode significar a perda de recursos sociais (ex.: comida, proteção, potenciais parceiros sexuais) vitais para a sobrevivência e reprodução. Essa sinalização honesta pode também evitar que o indivíduo seja vítima de um ato de agressividade pelo grupo, aumentando suas chances de sobrevivência.

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  CORAR: EFEITO NEGATIVO

           Durante a experiência de emoções levando ao ato de corar, um aumento no volume de sangue fluindo através de vasos superficiais no rosto, pescoço e parte superior do peito, fomentando pelo aumento da atividade do sistema nervoso simpático, avermelha e aumenta a temperatura da pele (!). Junto com pistas internas e externas, sensações de aquecimento subindo para o rosto alertam o indivíduo para um iminente coramento. Particularmente em pessoas socialmente ansiosas, essas pistas sinalizam perigo e iniciam um desejo de escapar.

           Nesse ponto, quando o ato de corar passa a ser frequente e disparado por quase todo tipo de contato social, além de não termos mais benefícios, problemas psicológicos podem estar sendo evidenciados. Nesse caso, o ato pode ser causa ou consequência de ansiedade social ou de timidez excessivos, e diversos especialistas passam a considerar isso como pertencente ao espectro do SAD (Transtorno de Ansiedade Social, da sigla em inglês), dependendo do grau do problema.

          De fato, medo de corar o rosto (eritrofobia) é reconhecido como uma parte integral do SAD inclusive pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5): "O indivíduo teme que ele ou ela irá agir ou parecer em um modo ou mostrar sintomas de ansiedade, tais como rubor facial, tremor, suor, tropeço de palavras, ou fitar os olhos, que será negativamente avaliado por outros." Essa fobia parece ser particularmente prevalente em sociedades coletivistas, como a Coreia do Sul e o Japão. Pessoas com essa fobia se preocupam de estar sendo vistas como incompetentes e não-queridas, e assumem enormes custos sociais associados ao rosto corado.

            Se você, por exemplo, cora quando vai a uma loja porque um vendedor lhe pergunta o que você está procurando, ou qualquer outra situação banal do tipo, isso pode passar um sinal negativo tanto para o espectador quanto para a pessoa que está corando. Antes adaptativo em certas situações específicas, tal sinalização passa a ser uma má adaptação social e alguns indivíduos superestimam tanto o efeito negativo da sua tendência em corar que passam a ter vergonha ou até fobia do ato. Em alguns extremos, o indivíduo pode até começar a evitar ter qualquer contato social para não disparar o coramento do rosto.

           Nos últimos anos, o meio acadêmico começou a prestar mais atenção a esse problema e já existem tratamentos psicológicos e até cirúrgicos visando amenizar a eritrofobia. Na ausência de tratamentos farmacológicos específicos para o ato de corar, alguns pacientes - buscando resultados mais rápidos - acabam optando pelas intervenções cirúrgicas (ex.: simpatectomia torácica), colocando a si mesmos em risco de complicações operatórias e efeitos colaterais irreversíveis. Tratamentos cognitivo-comportamentais (treinamento de habilidades sociais, psicoeducação, relaxamento aplicado, terapia cognitiva, etc.) tendem a ser uma melhor opção (Ref.14).

         Por outro lado, quando corar é algo infrequente no seu dia a dia, independente da situação, nota-se uma maior tendência do indivíduo em sentir uma sensação de prazer durante o ato, indicando que tal reação do corpo realmente parece ter sido feita para momentos específicos e um excesso indica que algo não está normal.

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(!) Esse processo também ocorre em resposta ao aquecimento do ambiente ou da temperatura interna do corpo. Durante estresse térmico, vasos sanguíneos faciais próximos da superfície da pele dilatam para melhorar a transferência de calor do sangue circulante para o ambiente ao redor (via convecção, radiação e evaporação de suor), portanto prevenindo perigosos aumentos da temperatura corporal interna. O rubor facial pode também ser uma resposta ao consumo alcoólico, especialmente em indivíduos com variantes genéticas que aumentam a produção de acetaldeído durante a metabolização do etanol (algo bastante comum entre pessoas do Leste Asiático); para mais informações, acesse: Por que os Japoneses ficam vermelhos após o consumo alcoólico?
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   MENSAGEM EMOCIONAL

         Um impactante estudo publicado em 2020 na Proceedings of the National Academy of Sciences (Ref.12) demonstrou uma conexão nunca antes documentada entre o sistema nervoso central e expressões emocionais no rosto associadas com diferentes cores manifestadas no rosto. A partir de várias fotos de rostos neutros - colorizadas posteriormente para acentuar expressões que indicariam 'feliz' e 'triste', ou mais complexas como 'raiva e triste' ou 'feliz e surpreso' -, mostradas para 20 participantes, os pesquisadores encontraram que os participantes conseguiam acertar até 75% das expressões corretas que queriam ser passadas pelas cores.


        Cerca de 70% das vezes, os participantes corroboraram que um rosto colorido para parecer feliz realmente passava a impressão de felicidade; cerca de 75% das vezes, acertavam quando os rostos eram tristes; e cerca de 65% das vezes quando os rostos eram raivosos. E isso sem quaisquer movimentações extras nos rostos para ajudar na identificação das emoções.

        Em uma próxima série de testes, os pesquisadores mostraram para os participantes fotos de rostos com expressões musculares bem definidas para 'feliz', 'triste' e outras emoções. Dessa vez, porém, eles misturaram as cores em algumas imagens. Por exemplo, eles algumas vezes pegavam um rosto obviamente feliz e colocavam uma coloração típica de uma pessoa raivosa. O resultado dos testes mostraram que os participantes notavam que algo estava estranho com as emoções passadas pelas fotos colorizadas.

       Usando algoritmos, os pesquisadores mostraram que programas computacionais acertavam corretamente as emoções no rosto das pessoas até 90% das vezes.

        Os resultados do estudo, portanto, demonstraram que mudanças no fluxo sanguíneo em diferentes partes do rosto - incluindo o rubor facial ou diferentes graus de ruborização facial - possui um forte papel de comunicação emocional.

          Esses achados foram parcialmente suportados por um estudo publicado em 2021 no periódico Motivation and Emotion (Ref.15), onde os pesquisadores também demonstraram que a mudança na coloração facial (mais pálido ou mais ruborizado) facilitava o reconhecimento da emoção passada por expressões faciais dinâmicas (mas não estáticas). Além disso, a coloração facial aumentou a percepção da intensidade emocional, contribuindo com viés em relação a como as expressões emocionais eram percebidas e lembradas. Outro estudo experimental publicado no mesmo ano, no periódico Emotions (Ref.17), também encontrou que a coloração facial ajuda a distinguir diferentes emoções, além de influenciar emoções percebidas dentro de pares emocionais de raiva-nojo, surpresa-medo e tristeza-felicidade.


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  CONCLUSÃO

         O ato de corar pode ser tanto uma característica de adaptação social quanto de má adaptação social. No geral, quando o ato é apenas associado com timidez e ansiedade, ele parece não oferecer benefício social e pode até passar uma imagem negativa sua para os outros em alguns casos. E quando é algo frequente, existe uma tendência do ato passar uma sensação desconfortável para a pessoa ruborizada, ou estar associado a uma fobia. Mas quando o ato vem depois de um mau comportamento (transgressão social), um rosto mais vermelho pode ajudar a amenizar uma situação de tensão social, ajudando a prevenir conflitos e enfraquecimento de laços sociais. Esse último cenário suporta a persistência desse fenótipo ao longo do processo evolutivo da nossa espécie. Diferentes graus de ruborização facial também parece possuir a função de realçar e facilitar o reconhecimento de diferentes expressões emocionais.


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CURIOSIDADE: Estudos também mostram que existe uma diferenciação entre os sexos no ato de corar o rosto. Evidências cinetíficas indicam que mulheres tendem a manifestar um rubor facial mais intenso e mais fácil de ser percebido.
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0118243
  2. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/cpsp.12102/full
  3. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1547412716300433
  4. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0924933816009135
  5. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/spc3.12009/full
  6. http://bjp.rcpsych.org/content/disabling-blushing-treatment-options
  7. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4734881/
  8. http://psycnet.apa.org/journals/emo/16/4/475/
  9. http://psycnet.apa.org/journals/emo/9/2/287/
  10. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S154741270800011X
  11. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/spc3.12040/full
  12. http://www.pnas.org/content/early/2018/03/16/1716084115
  13. https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/02699931.2019.1634004
  14. https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11920-020-01152-5
  15. Thorstenson et al. (2021). The influence of facial blushing and paling on emotion perception and memory. Motivation and Emotion 45, 818–830. https://doi.org/10.1007/s11031-021-09910-5
  16. Leary et al. (2022). Emotional responses to interpersonal rejection. Dialogues in Clinical Neuroscience, Volume 17, 2015 - Issue 4.  https://doi.org/10.31887/DCNS.2015.17.4/mleary 
  17. Thorstenson et al. (2021). The role of facial coloration in emotion disambiguation. Emotion. Advance online publication. https://doi.org/10.1037/emo0000900