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Por que choramos?


- Atualizado no dia 23 de setembro de 2022 -

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         Até onde sabemos, os humanos são os únicos animais que conseguem chorar emocionalmente (!). Sim, enquanto nos outros animais existe a capacidade de lacrimejar depois de uma irritação nos olhos ou como parte de outra reação fisiológica, nós, humanos, também liberamos lágrimas em resposta a mudanças emocionais. Lacrimejar com o propósito de limpeza e lubrificação dos olhos é totalmente compreensível e uma função bem estabelecida. Mas por que choramos quando estamos tristes ou alegres? A resposta é tão interessante quanto a pergunta: não sabemos! Porém, temos pistas e hipóteses.

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(!) ATUALIZAÇÃO: Existe agora evidência que cães (Canis familiaris) podem derramar lágrimas em resposta a estados emotivos, uma habilidade provavelmente associada ao processo evolutivo de domesticação desses animais. Para mais informações, acesse: Estudo sugere que cães também produzem lágrimas emocionais
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   CHORO E LÁGRIMAS

          As glândulas lacrimais – supridas pela artéria lacrimal (ramificação da artéria oftálmica que entra na superfície posteromedial do lobo orbital), e drenadas pela veia lacrimal (derivadas da veia oftálmica) – produzem os componentes aquosos do filme pré-ocular de lágrimas, estas as quais são essenciais para a saúde ocular e ótima visão. Existem três tipos de lágrimas: lágrimas basais que lubrificam a córnea; lágrimas de reflexo que ajudam a expulsar partículas externas que acidentalmente caem no olho; e lágrimas emocionais (choro) que são produzidas em resposta a fortes emoções.


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> Como mostrado no esquema acima, é interessante observar que as lágrimas em excesso fluem por canais que se ligam ao nariz (dutos lacrimais), o que explica o porquê do nosso nariz ficar escorrendo quando choramos muito. Além disso, geralmente liberamos lágrimas quando bocejamos, com isso ocorrendo porque o ato de abrir bastante a boca faz com os músculos da face próximo aos olhos pressionem a glândula lacrimal, induzindo o lacrimejo.
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          Nesse sentido, o ato de chorar é um fenômeno secretomotor caracterizado pelo derramamento de lágrimas das nossas glândula lacrimais, o qual é acionado por uma conexão neural entre essas glândulas e regiões no cérebro envolvidas com a emoção. Portanto, é um processo independente da irritação ocular - por reflexo - ou basal - lágrimas geradas para manter sua córnea (a parte transparente dos seus olhos) lubrificada, nutrida e protegida. Frequentemente, o ato é acompanhado por alterações na contração involuntária dos músculos de expressão facial, mudança na sonoridade da voz, tremor nos lábios, escorrimento no nariz, espasmos na laringe e soluços (por causa da desregulação da ação respiratória). Curiosamente, a composição dessas 'lágrimas emocionais' é diferente de outros tipos de lágrimas, podendo possuir uma quantidade significativamente maior dos hormônios prolactina, hormônio adrenocorticotópico e Leu-enkefalina, além de conter mais potássio, manganês e proteínas diversas.


   QUEM CHORA MAIS?
       
          Entre os sexos, a mulher, corroborando a crença popular, chora bem mais do que os homens. Isso pode ser devido somente a fatores culturais ('homem não chora') ou mesmo nas diferenças hormonais de ambos, principalmente devido à testosterona. Esse hormônio andrógeno (presente em maior quantidade no corpo masculino) pode ter papel em inibir o choro e a prolactina (encontrada em maior quantidade na mulher) pode ter papel em promovê-lo. Estudos mostram que elas chegam a chorar cerca de 5,3 vezes por mês, na média, enquanto os homens apenas o fazem 1,3 vezes no mesmo período. 

          A duração de cada choro também muda bastante, com as mulheres chorando entre 5 e 6 minutos e, os homens, entre 2 e 3 minutos. Apesar disso, os bebês não mostram diferenças de intensidade/frequência de choro quando comparado apenas o sexo. Fatores culturais também parecem influenciar de forma significativa, onde em países mais liberais e com maior liberdade de expressão, como nos EUA, Chile e Suécia, o ato de chorar é mais frequente.

           Em particular, o choro dos bebês nas primeiras semanas de vida é uma sinalização puramente vocal, só mais tarde sendo acoplada com a produção de lágrimas. O choro é bem característico em filhotes de aves e de mamíferos, e está associado a pedidos de atenção para que os pais atendam a necessidades fisiológicas diversas. Nos bebês humanos - assim como para outros animais - quatro hipóteses são propostas para o choro e as quais não são necessariamente exclusivas:

- um chamado alertando separação cujas funções visam reduzir o risco de abandono e perda de contato físico com a mãe;

- um indicador de vigor e boa saúde da criança, consequentemente reduzindo o risco de infanticídio durante condições ecológicas adversas;

- uma forma de chantagear ou manipular os pais para o atendimento de necessidades diversas o mais rapidamente possível; um choro alto e contínuo aumenta o risco de predação ou de perigosa perda de energia, aumentando o nível de investimento ideal para sustentar o bebê;

- e, finalmente, na hipótese da "super-criança", uma sinalização poderosa e vigorosa na forma de frequente e contínuo choro pode minimizar os custos de competição com irmãos ao fazer os pais adiarem o nascimento de um próximo bebê.

          A primeira hipótese é favorecida por causa de um interessante fato. É bem estabelecido, especialmente em sociedades não-industrializadas, que os bebês humanos dificilmente, ou nunca, choram quando são carregados em faixas amarradas à mãe e mantêm contínuo contato físico com o corpo materno (Ref.33). Isso sugere que o choro nos bebês possui como principal função manter a proximidade entre mãe e filhote (!).


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   HIPÓTESES EVOLUTIVAS

           Como mencionado no início, não existe uma conclusão científica do porquê nós choramos, apenas tentativas de explicar o fenômeno. Mas é importante reforçar que no caso dos bebês, chorar pode ter significado tanto emocional quanto para solicitar o atendimento de necessidades fisiológicas ou de contato materno  (já que não conseguem falar ainda). Portanto, as discussões acadêmicas focam no choro emocional, particularmente de crianças mais velhas, adolescentes e adultos.

            Aliás, o próprio Charles Darwin discutiu sobre as lágrimas em 1872 no seu trabalho The Expression of Emotions in Man and Animals. Enquanto que para ele as lágrimas tinham um claro papel na proteção geral dos olhos, o cientista não conseguiu achar um propósito para as lágrimas emocionais e concluiu que elas só poderiam ter sido um efeito colateral durante o nosso processo evolutivo, ou seja, uma característica sem valia que surgiu como subproduto de outro traço mais importante no nosso corpo. Enquanto esse cenário é razoavelmente plausível, evidências acumuladas nas últimas décadas suportam outras explicações alternativas favorecendo as lágrimas emocionais como um produto evolucionário de seleção positiva, ou seja, com fins adaptativos. Aliás, a aparente exclusividade das lágrimas emocionais em humanos modernos (Homo sapiens) também sugere uma função adaptativa específica à linhagem dos homininis. 

1. Exaustor emotivo: Todo o processo envolvido no ato de chorar pode ser uma ferramenta do corpo em extravasar fortes emoções. Isso explicaria o motivo de chorarmos quando estamos tristes, em agonia, nervosos ou muito alegres. Em um dos mecanismos de válvula de escape, podemos até mesmo nos lembrar que as lágrimas de choro carregam um perfil bioquímico diferente de outras lágrimas. Isso poderia ser uma forma de eliminar o excesso de hormônios ligados ao estresse do corpo, especialmente o hormônio adrenocorticotrópico, acalmando o indivíduo, ou relacionar substâncias que agem como anestésicos. Mudanças respiratórias também poderiam ser outro mecanismo. Além disso, muitas pessoas se lembram mais do benefício de chorarem quando tentam se acalmar (relacionam fortemente o 'alívio' com o 'choro') em relação a outros métodos, o que reforça essa hipótese.

          Em outras palavras, as lágrimas se manifestariam como uma catarse emocional, buscando acalmar o indivíduo.  Apesar de ser uma hipótese bastante difundida e popular, não existe sólida evidência científica para suportá-la. Pelo contrário, estudos nos últimos anos trazem resultados que colocam em dúvida a real relação entre o ato de chorar e o bem-estar do indivíduo, especialmente quando analisados indivíduos que não conseguem (ou têm dificuldade) em chorar e/ou liberar lágrimas, como os portadores da Síndrome de Sjögren, onde existe um progressivo dano inflamatório e atrofia da glândula lacrimal (!).

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(!) É relevante mencionar que um estudo de 2012 (Ref.25) encontrou que 22% dos pacientes com essa síndrome possuíam alexitimia, ou seja, tinham dificuldade para descrever seus sentimentos (depois de um golpe emocional, por exemplo, eles podem ter sintomas relacionados, mas ficam confusos em identificar qual sentimento estava sendo manifestado). 
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            Um desses estudos (Ref.10) analisou um grupo de estudantes do sexo feminino e mostrou que apenas 30% deles reportaram que tiveram o humor melhorado após chorar, enquanto 60% não reportaram nenhuma mudança e 9% disseram que o humor piorou. E esse estudo analisou mulheres que tinham chorado no mesmo dia dos questionários (quando se pergunta de um evento mais antigo para uma pessoa, é frequente que esse último seja distorcido pela memória, um erro metodológico já apontado em outras pesquisas similares). Já outro estudo (Ref.17) mostrou que o choro parecia trazer alívios emocionais dependendo de quem estava com a pessoa. Se era algum conhecido acolhendo a pessoa, existia um alívio. Se fosse ao redor de desconhecidos não inclinados a dar suporte, ou mais de uma pessoa, o choro só piorava ou não causava nenhuma mudança de humor, especialmente se houvesse sentimento de vergonha ao chorar acompanhando o evento. Portanto, o alegado alívio trazido pelo ato de chorar é muito relativo e pode variar de pessoa para pessoa, ou mesmo nem existir.

2. Sinalização social: Essa hipótese entra no campo da evolução social humana, e é a mais aceita. Aqui, é fortemente sugerido que o choro pode servir de faróis para a percepção do indivíduo dentro da sociedade, em particular promovendo efeitos pró-sociais. A pessoa em choro passa a ideia de desespero, tristeza e procura por ajuda dos outros, fazendo com que mais indivíduos do grupo corra em seu amparo, e aumentando as chances dela de resolver o problema emocional enfrentado. Assim, não só danos físicos seriam remediados mais facilmente, mas os emocionais também, aumentando ainda mais as chances de sobrevivência do indivíduo. Esse cenário corrobora o forte fomento à evolução de traços pró-sociais que marcou a evolução dos humanos modernos, e evidências recentes sugerem inclusive que os humanos evoluíram no sentido de mostrar sinais de estresse com o objetivo de evocar suporte de outras pessoas, desde roer as unhas até lágrimas emocionais (Ref.).

         Além disso, frente a um inimigo, o choro pode servir como um sinal de fragilidade e inexistência de ameaça do "cidadão choroso" (mais amigável e menos agressivo), algo que poderia impedir um combate desnecessário. As lágrimas também podem servir para acalmar a agressividade em conflitos diversos, diminuindo as chances de consequências mais violentas ou quebras de laços sociais. Aliás, alguns pesquisadores sugerem que a concentração extra de proteínas nas lágrimas emocionais tornam esse líquido mais viscoso e fazem com que escorreram mais lentamente pelo rosto; isso, por sua vez, faz as lágrimas marcarem de forma mais pronunciada a pele, deixando-as mais visíveis e por um maior tempo, auxiliando a sinalização.

            Indo nesse caminho, a função das lágrimas derramadas seriam relacionadas com o desejo de pedir ajuda, mas obviamente também percebemos elas quando os indivíduos estão solicitando ajuda (quando vemos algo triste e queremos ajudar, por exemplo). Cientistas argumentam que quando o ser humano começou a evoluir a empatia e a simpatia, o choro veio também como um sinalizador dessas emoções, aumentando a conectividade entre as pessoas (tanto para aqueles que buscam quanto para aqueles que solicitam ajuda) e já aproveitando o seu papel  de "SOS".

            Alguns estudos (Ref.26) mostram que o simples fato de existir lágrimas no rosto de uma pessoa envia fortes sinais de desamparo, tristeza, menor agressividade, uma expressão mais amigável e maior sensação de conectividade com o indivíduo. Esses fatores se juntam para reforçar a mensagem de ajuda. Uma ferramenta que pode ter sido bastante útil para elevar em grande escala o comportamento pró-social do H. sapiens e permitir que a nossa espécie formasse sociedades ainda mais poderosas.

            Avaliando o papel das lágrimas emotivas de ativar intenções de suporte social, um robusto estudo englobando mais de 7 mil participantes em 41 países distribuídos em todos os continentes, e publicado em 2021 no periódico Journal of Experimental Social Psychology (Ref.30), reforçou a evidência de que as lágrimas em um indivíduo tornam as pessoas ao redor mais empaticamente preocupadas em relação a esse indivíduo. Um estudo também publicado em 2021, no periódico PLOS ONE (Ref.34), buscou avaliar a percepção de humanos (403 participantes) frente a faces de animais (cães, gatos, cavalos, chimpanzés e hamster) digitalmente manipuladas ou não no sentido de acrescentar lágrimas escorrendo dos olhos (como mostrado na imagem abaixo). A maioria dos participantes perceberam tristeza no rosto dos animais com lágrimas, sendo reportado também a percepção de uma aparência significativamente mais amigável, com maior intensidade emocional, e menos agressiva. Os resultados desse estudo reforçam o papel pró-social das lágrimas.    

   
            Adicionando mais evidências para corroborar a função de sinalização social, as lágrimas emocionais, especialmente em adultos, tendem a ser silenciosas, e basta uma pessoa ver alguém as derramando para entender que existe algum problema sério com o indivíduo. Isso em um passado remoto pode ter servido como um excelente meio para requisitar ajuda sem usar sinais sonoros que poderiam atrair algum predador ou humanos rivais nas proximidades. E a seleção da lágrima como mensageiro do estado emocional teria provavelmente ocorrido pelo fato desse fluído escorrer no rosto (área socialmente mais visível) e já estar relacionada com a sensação de dor (irritação ou inflamação nos olhos, algo provavelmente muito comum no passado).
         
           Em um estudo publicado em 2018 no periódico Human Nature (Ref.33), os pesquisadores propuseram que o choro lacrimejante único dos humanos primeiro evoluiu como um forte estímulo social literalmente relacionado à vida ou à morte porque elicitava suporte quando os indivíduo não eram capazes de tomar conta de si mesmos (bebês). O segundo passo na evolução das lágrimas seria a transformação delas em sinais canalizando informações confiáveis (sinalização honesta) não apenas sobre a condição física do indivíduo (crianças e adultos) mas também sobre o seu estado emocional, sinalizando estresse e promovendo comportamentos pró-sociais. E, dado que (i) lágrimas emocionais são exclusivas dos humanos e (ii) com função primária de promover suporte para outros seres humanos, é plausível que as lágrimas podem ter tido um grande impacto na evolução do gênero Homo. Entre várias linhas de evidências exploradas, os autores também citaram os "rituais de choro" como exemplos históricos das lágrimas como "pedido de socorro".

            Em vários registros históricos, existem exemplos de choros grupais com lágrimas para fins diversos. Por exemplo, antes de batalhas decisivas, pessoas se reuniam e choravam juntas em uma tentativa de compelir sucesso e sorte. Judas e seus seguidores alegadamente se prepararam para a guerra contra os Sírios realizando jejum, ajoelhamento e choro por três dias. Em várias culturas do antigo Oriente, existiam festivais especiais de choro para agradar os deuses da fertilidade. Ao redor do mundo (dos Astecas no México até a Espanha medieval e a Tunísia moderna), processões de choro ou outros rituais eram realizados para estimular divindades a produzir "lágrimas fertilizantes" (ex.: chuva). Choro também era uma importante parte de festivais de penitência, os quais eram frequentemente organizados após desastres como secas, perda de plantações, doenças, enxames de gafanhotos ou derrota em guerras. Em todos esses casos, as lágrimas ritualísticas podem ser consideradas um apelo de indivíduos relativamente impotentes por ajuda ou piedade de forças mais poderosas (ex.: deuses); um "último recurso" e também um resposta de submissão.
             

3. Visão prejudicada: Um outro mecanismo seria um possível freio de decisões erradas durante a raiva ou outros momentos de grande explosão emocional, onde o embaçamento da visão pelas lágrimas limitaria a movimentação e execução de atos não muito bem pensados (como entrar em uma briga que poderia ser evitada). Em outras palavras, um empecilho físico aumentando as chances de sobrevivência. Essa hipótese é pouco aceita e raramente citada nas discussões da literatura acadêmica explorando o choro emocional.

4. Relação entre descoberta do fogo e choro: Essa também é muito pouco aceita (mais um exercício de imaginação do que hipótese científica), e relaciona um condicionamento de irritação ocular com momentos emocionantes. Logo depois que os humanos descobriram o fogo, esses passaram a usá-lo para tudo, especialmente durante rituais de celebração e fúnebres. Como todos ali no evento, muito felizes ou muito tristes, ficavam imersos em fumaça, esta irritaria os olhos, acionando lágrimas em abundância. Com o tempo, o choro e momentos felizes ou tristes (entre outras emoções) teriam acabado ficando condicionados. Nesse sentido, chorar por emoção pode ter sido selecionado durante o percurso evolucionário da nossa espécie como uma sinalização que ajudava a reunir os indivíduos mesmo sem um contexto ritualístico ou de cerimônias, já que as lágrimas espelhavam fortes momentos emocionais. Tal elemento de coesão pode ter fortalecido os laços de união nos grupos e aumentado as chances de sobrevivência. Essa hipótese, portanto, defende também a função de sinalização pró-social discutida anteriormente, mas explorando uma origem mais "fantástica" da lágrima emocional.
 

   E O CHORO DE FELICIDADE?   
       
           Bem, e aqui também entra uma pergunta relacionada à segunda hipótese (a mais aceita): e por que choramos quando estamos felizes? Lógico, esse tipo de choro é também bem comum, mas a história da sinalização social, por exemplo, prevê o choro em momentos de tristeza e desamparo, não é mesmo? Porém, precisamos nos lembrar que o hipotálamo no nosso cérebro não consegue diferenciar entre um estado muito alegre, muito triste ou muito estressado. Ele apenas sabe que está recebendo um forte sinal neural da amígdala - a qual registra nossas reações emocionais - e que precisa ativar o sistema nervoso autônomo (nosso sistema "involuntário" do corpo).

          O sistema nervoso autônomo é divido em simpático (o famoso 'lute-ou-fuja') e parassimpático (descanso-e-digestão). O parassimpático se conecta às glândulas lacrimais, resultando nas lágrimas. Por outro lado, momentos muito felizes podem nos deixar fragilizados, e o choro também viria como um sinal de ajuda, consolo e acolhimento para as pessoas ao redor. 


   LÁGRIMAS E OLFATO?

          Um estudo de 2011, publicado na Science (Ref.19) e bastante repercutido na época, fortemente sugeriu que as lágrimas possuem um outro efeito: funcionam como sinalizadores químicos para o olfato. Em específico, foi mostrado que quando os homens cheiram as lágrimas de emoções negativas (tristeza) de uma mulher, o desejo sexual masculino é reduzido! E isso tinha sido comprovado por monitoramento de ressonância magnética dos voluntários e análise da concentração de testosterona na saliva. Além disso, esse resultado foi parcialmente reforçado por um estudo Sul-Coreano em 2012 (Ref.20), este o qual analisou a concentração de testosterona no corpo dos homens após estes serem expostos ao cheiro das lágrimas de tristeza. O controle em ambos os estudos foi feito usando uma solução salina simples e lágrimas recém coletadas de mulheres.

          Porém, um estudo mais recente (Ref.21) replicou o trabalho em três estudos distintos, estes os quais, separados ou combinados em uma meta-análise, não conseguiram encontrar o efeito de baixa de libido com o cheiro das lágrimas femininas, e nenhum outro efeito olfativo (na agressividade, no comportamento pró-social e na conectividade). Houve uma discussão entre pesquisadores sobre a validade desses novos resultados, mas nada ficou resolvido (Ref.22-23). Portanto, se as lágrimas funcionam, ou não, como sinalizadores olfativos do tipo, a questão continua em aberto. E a maior dúvida dessa história: qual seria a finalidade de redução de libido masculina pelas tristes lágrimas de uma mulher? Seria para desviar totalmente a atenção do homem para os problemas da parceira, através de uma sinalização visual e olfativa? 


   AFETO PSEUDOBULBAR E LÁGRIMAS EMOCIONAIS

           A base neurobiológica das lágrimas emocionais ainda não é bem esclarecida, envolvendo componentes parassimpáticos e simpáticos do sistema nervoso. Os circuitos neurais envolvidos em diferentes componentes do choro emocional (incluindo atividade muscular, vocalização, produção de lágrimas, e experiência emocional) parecem estar primariamente ligados a estruturas que fazem parte da rede central autonômica do cérebro (Ref.35). Além disso, parece existir envolvimento de sistemas neuroquímicos, incluindo oxitocina, vasopressina e opioides endógenos, e hormônios como prolactina e testosterona podem ter influência adicional sobre o limite mínimo de gatilho para o choro. 

           Nesse mesmo contexto, temos uma condição patológica bem interessante chamada de afeto pseudobulbar, um transtorno psiquiátrico da regulação de afeto ou de expressão emocional, descrito tipicamente como explosões descontroladas de risos ou de choro. Aliás, o fenômeno foi descrito em 1872 pelo próprio Charles Darwin, e ficou mais conhecido em 2019 com o filme Coringa (!). 

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(!) É importante mencionar que nesse filme (Joker, 2019) nunca é falado de forma explícita os problemas mentais enfrentados pelo personagem principal (Arthur Fleck). Segundo um estudo publicado em 2021 no periódico BJPsych Bulletin (Ref.36), a psicopatologia do Arthur/Coriga mistura uma combinação de sintomas sugerindo uma complexa mistura de certos traços de personalidade, especificamente psicopatia e narcisismo, suficiente para atender os critérios do DSM-5 para transtorno de personalidade narcisista. Além disso, o estudo corrobora que o personagem manifesta claros sintomas do afeto pseudobulbar devido provavelmente a uma severa lesão cerebral traumática; esse último diagnóstico é suportado por um estudo publicado no periódico Academic Psychiatry (Ref.44), também explorando o filme. Obviamente, essas inferências foram feitas com base no que foi apresentado no filme.
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          Também chamado de incontinência emocional, o afeto pseudobulbar tem sido reportado em múltiplas doenças neurológicas, como esclerose lateral amiotrófica, doença de Parkison, demência, derrame, tumor cerebral e síndrome de Susac (Ref.37). Danos cerebrais diretos (trauma cerebral) também representam um importante fator causal. 

           Os ataques de expressões emocionais exageradas e descontroladas do transtorno não são necessariamente congruentes com o humor, sentimentos ou contexto situacional do paciente. Clinicamente, os indivíduos afetados descrevem os ataques como um sentimento de perda de controle das emoções, com alguns afirmando que uma vez iniciado o episódio, torna-se difícil pará-lo de forma voluntária. 

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            Médicos podem encontrar dificuldade no diagnóstico da condição, ao confundir os sintomas como manifestações de um transtorno depressivo maior, transtorno depressivo persistente, ou de transtorno bipolar. A diferença fundamental entre transtorno de humor e o afeto pseudobulbar é a duração. Sintomas de depressão, incluindo humor reduzido, tipicamente duram de semanas a anos, enquanto o choro é consistente com o estado emocional no quadro depressivo. Outros sintomas de depressão, como fatiga, anorexia, insônia, anedonia e sentimentos de desesperança e de culpa, não são associados ao afeto pseudobulbar. De forma similar, a condição pode ser diferenciada de transtornos bipolares com base na relativa breve duração dos episódios de risos ou de choros (e sem distúrbios de humor entre os episódios), comparado com mudanças sustentadas de humor, cognição e comportamento observadas nos transtornos bipolares.

           A prevalência da condição é desconhecida, mas em pacientes com derrame, é uma manifestação comum, afetando cerca de 1 a cada 5 sobreviventes na fase aguda e pós-aguda, e 1 em cada 8 sobreviventes além de 6 meses pós-derrame (Ref.38). Em pacientes com doenças neurodegenerativas, a prevalência é ainda maior, especialmente entre pacientes com esclerose lateral amniótica (38,5%) (Ref.39). Em indivíduos com lesão cerebral traumática, é reportada uma incidência do afeto pseudobulbar variando de 5% até 48% (Ref.40). 

           O mecanismo patológico não é totalmente esclarecido. Acredita-se que o transtorno seja o resultado de lesões nos lobos frontais ou caminhos corticobulbares/cerebelares descendentes que regulam o controle motor e a coordenação de expressões emocionais.  

          Tratamento do afeto pseudobulbar é feito tipicamente com uma combinação de dextrometorfano (um fármaco antitússico) e de quinidina (um fármaco antiarrítmico), mas com efetividade limitada, especialmente a longo prazo, e irá variar dependendo da severidade da condição e do seu fator causal (Ref.40, 42).

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   CONCLUSÃO 

           A questão ainda continua em aberto nos debates acadêmicos, mas a hipótese de que a lágrima emocional é uma forma de sinalização social com objetivo de fomentar suporte social é a que mais possui evidência de suporte. Aliás, é proposto que as "lágrimas de crocodilo", onde algumas pessoas possuem a habilidade de facilmente fingir um choro emocional em qualquer circunstância (provavelmente evocando fortes experiências emotivas do passado), evoluiu com o propósito de manipular os observadores e garantir simpatia e suporte social extra, aumentando as chances de sobrevivência (Ref.32). Porém, isso não exclui o cenário onde as outras hipóteses propostas se somem à hipótese principal (múltiplos fatores de seleção positiva). No final, uma coisa é certa: não tenha vergonha ou receio em chorar emocionalmente, porque mal não faz e é algo intrínseco da natureza humana, provavelmente com importante valor adaptativo para a nossa espécie.

            

Artigo recomendado: A problemática questão do autismo


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
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