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Quitosana realmente emagrece?



            A quitosana é um dos mais vendidos suplementos alimentares nos EUA e no Brasil, e sua produção anual no mundo chega a ser comparável com aquela da celulose. Esse composto é um polissacarídeo derivado da quitina, esta a qual é outro polissacarídeo estrutural que constitui a parede celular dos fungos e o exoesqueleto dos artrópodes, como insetos e crustáceos. Apesar de estar associada a diversas alegações ligadas a benefícios na saúde humana, funcionando também como fibra alimentar, sua principal propaganda de venda baseia-se na promessa de emagrecimento rápido e o controle de colesterol no sangue. Porém, esse tipo de promoção da quitosana está longe de ser honesta, pelo menos em termos de evidência científica de suporte.

Os camarões são a principal fonte de quitosana comercial, extraída da "casca" (exoesqueleto).

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             Em tese, quando consumidas na forma de pó ou cápsulas, a quitosana forma uma espécie de gel junto com a água dos alimentos posteriormente ingeridos (é indicado a ingestão de água adicional para melhor efeito). Esse 'gel' possui a capacidade de se ligar com gorduras (ácidos graxos livres/triglicerídeos) e colesterol, através de ligações químicas extramoleculares ainda não muito bem elucidadas, mas possivelmente através de ligações de hidrogênio e/ou cargas positivas sobre as aminas das quitosanas com as negativas dos liponutrientes. Outra ação sinérgica seria em impedir a ação de enzimas digestivas (lipases) em cima desses lipídios. Independentemente dos mecanismos de aprisionamento ou inibição metabólica, a quitosana impediria que parte da gordura e colesterol ingeridos na alimentação fossem absorvidos pelo corpo, levando-os para serem eliminados nas fezes. Bem, isso parece ótimo para o emagrecimento e para a redução do colesterol sanguíneo, certo? Não, por dois grandes motivos.

             Primeiro, o colesterol ingerido pela alimentação não necessariamente altera de forma perceptível as taxas de colesterol sanguíneo. Essa era uma antiga confusão que fez os ovos se tornarem grandes vilões por muitos anos (a gema possui muito colesterol), mas a fama negativa logo foi retirada com pesquisas posteriores. Ou seja, mesmo as quitosanas diminuindo a absorção de colesterol, isso não faria muita diferença para as taxas desse esteroide no sangue. O USDA Dietary Guidelines Advisory Committee, este ano, por exemplo, retirou o consumo de colesterol alimentar da lista de perigos para a saúde, já que o mesmo não altera as taxas de colesterol ou outros marcadores prejudiciais no sangue, como o LDL (Ref.16).

(1) Leitura recomendadaAfinal, devo me preocupar com o colesterol do ovo?

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              Segundo, e o mais assustador, é que a ação da quitosana de prender gordura e colesterol nem sequer é devidamente comprovada! Tudo o que eu expliquei no segundo parágrafo desse artigo é pura especulação científica e foi algo mais do que extrapolado pela indústria de suplementos. Diversos estudos iniciados a partir dos anos 90 não mostraram efeito significativo algum de aprisionamento e eliminação de gordura nas fezes devido à influência da quitosana no trato intestinal. Existem produtos baseados nesse composto que prometem uma absorção em torno de 10 vezes do peso da quitosana em gordura, mas tudo uma pura mentira! Vários artigos de revisão, meta-análises e testes clínicos de alta qualidade com voluntários não conseguiram achar resultados significativos de perda de peso em pacientes obesos e normais com o uso da quitosana. Um artigo de revisão de 2005 (Ref.1), deixa isso mais do que claro.

             E mesmo em poucos estudos que mostram algum papel efetivo da quitosana, a quantidade de gordura retirada pelo consumo seguro do produto é muito baixa para fazer uma diferença significativa no balanço energético do corpo. Dois estudos recentes (Ref.6-7), um de 2016 e outro de 2015, mostraram perdas adiposas extras em torno de 1,7 kg depois de vários meses de uso, mesmo com os pacientes sob uma dieta com restrição calórica e praticando atividades físicas. Ou seja, uma perda mínima que pode nem ter sido devido à ação da quitosana. E são dois estudos isolados em um mar de evidências científicas que não dão garantia alguma à quitosana na perda de peso.

            Somando-se a isso, temos outro grande entrave: as pessoas não se alimentam apenas de gorduras. A maior parte das refeições da população são constituídas de carboidratos, junto com uma menor parcela de aminoácidos das proteínas. Além de você não retirar muita gordura com a quitosana, todos os outros substratos energéticos são absorvidos livremente pelo seu corpo. Não adianta tomar quitosana para emagrecer se não houver uma reeducação alimentar envolvida. Na verdade, mesmo se você estivesse em uma dieta controlada e praticando atividades físicas, o emagrecimento devido à quitosana seria mínimo. Em anos recentes, para o uso em dietas que visam a perda de massa adiposa, as quitosanas estão sendo avaliadas em relação à sua propriedade de fibra alimentar solúvel visando o controle da saciedade.

Estrutura polimérica da quitosana, a qual, teoricamente, teria um papel relevante no aprisionamento de gordura e colesterol

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          No site da ANVISA, temos a seguinte especificação para o uso da quitosana como suplemento alimentar: “A quitosana auxilia na redução da absorção de gordura e colesterol. Seu consumo deve estar associado a uma alimentação equilibrada e hábitos de vida saudáveis” (Ref.12). Ou seja, eles estão precisando atualizar, rapidamente, a página. Não existe evidência científica suficiente para justificar o uso desse produto em regimes alimentares que visam o emagrecimento. E mesmo se a quitosana realmente reduzisse ambos os substratos, isso significaria emagrecer? Não, por isso essa informação nem consta no relatório da nossa agência de fiscalização. Se você pesquisar qualquer suplemento alimentar no site da ANVISA, a segunda frase estará sempre presente ('Seu consumo deve...'), para que as pessoas não sejam enganadas pensando que uma pílula mágica irá resolver seus problemas.

          No caso do emagrecimento, não existe comprovação científica de que qualquer suplemento alimentar seja realmente efetivo, tanto isolados quanto combinados, além da eficácia de simples redução calórica diária (2). Aumento do metabolismo, absorção de gorduras, diminuição da saciedade, entre outros, são apenas ações baseadas em fracas evidências e sem significativo efeito clínico. Para emagrecer, é preciso mudar completamente o estilo de vida, especialmente no quesito alimentação, buscando sempre uma dieta com menor nível calórico mas que satisfaça o seu apetite. Suplementos são apenas para suplementar, e nem sempre oferecem o que prometem, principalmente porque cada pessoa possui um corpo único.

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          Concluindo, a quitosana pode servir para várias outras coisas, incluindo na área de materiais (3), mas possui efetividade muito limitada ou sem comprovação no controle da massa corporal (excesso adiposo) e controle do colesterol sanguíneo. Além disso, o excesso de quitosana pode provocar desconforto abdominal, trânsito intestinal desregulado (ex.: prisão de ventre), alta produção de gases e modificação potencialmente deletéria da microbiota intestinal (4), especialmente no intestino grosso (levando mais gordura não metabolizada/absorvida para essa região). Sempre siga as orientações de um nutricionista e/ou médico antes de embarcar em dietas exóticas e consumo de suplementos ou medicamentos.

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(2) Leitura recomendadaCafé verde e as promessas de emagrecimento

(3) A quitosana é um material orgânico com notável potencial tecnológico. Diversas áreas científicas trabalham com esse polissacarídeo, incluindo a indústria de roupas, construção civil medicinal e de nanomateriais.

(4) Leitura recomendadaQuantas bactérias existem no nosso corpo?
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1467-789X.2005.00158.x/abstract
  2. downloads.hindawi.com/journals/jobes/2011/297315.pdf
  3. http://ajcn.nutrition.org/content/79/4/529.short
  4. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1038/oby.2003.97/full
  5. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/14651858.CD003892.pub3/abstract
  6. https://nutritionj.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12937-016-0122-8
  7. http://bmcobes.biomedcentral.com/articles/10.1186/s40608-015-0053-5
  8. http://europepmc.org/abstract/med/14965155
  9. http://www.fda.gov/Food/ComplianceEnforcement/WarningLetters/ucm188136.htm
  10. https://www.researchgate.net/profile/Edzard_Ernst/publication/12928559_Randomized_double-blind_trial_of_chitosan_for_body_weight_reduction/links/00b7d53439375f0c8c000000.pdf
  11. http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1038/oby.2001.47/full
  12. http://www.anvisa.gov.br/alimentos/comissoes/tecno_lista_alega.htm
  13. http://www.nature.com/ijo/journal/v28/n9/abs/0802693a.html
  14. http://ncp.sagepub.com/content/29/6/842.short#
  15. Chitosan: Issues and Future
  16. http://www.jcn.co.uk/files/downloads/articles/01-2014-chitosan-a-natural-solution-for-wound-healing.pdf
  17. http://health.gov/dietaryguidelines/2015-scientific-report/PDFs/Scientific-Report-of-the-2015-Dietary-Guidelines-Advisory-Committee.pdf
  18. http://www.nsti.org/procs/Nanotech2014v2/4/T5.305
  19. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1381514800000389
  20. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0079670006000530
  21. http://pubs.rsc.org/en/content/articlelanding/2014/ta/c4ta04518a
  22. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0014305712004181
  23. http://orbi.ulg.ac.be/handle/2268/194034