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Qual é a diferença entre Chikungunya e Dengue?

Figura 1. Micrografia eletrônica de vírions CHIKV, com típica estrutura de outros alfavírus. O vírus exibe uma forma aproximadamente esférica com um diâmetro de 42 nm composto de um núcleo de 25-30 nm. Ref.1

- Atualizado no dia 16 de março de 2024 -

           Uma mulher de 39 anos de idade apresentou-se ao departamento de emergência de um hospital nos EUA com um histórico de 3 dias manifestando febre, vermelhidão na pele com prurido [coceira] e artralgias [dores articulares] difusas. A paciente reclamava de dor severa nas pequenas juntas das suas mãos, pulsos, quadris, joelhos e tornozelo. Outros sintomas acompanhantes incluíam mialgia generalizada, dor de cabeça, fotofobia e diarreia. Ela negou úlceras orais, serosite, perda de cabelo e manifestação de hematomas ou sangramentos. Históricos médico e familiar não revelaram nenhuma pista sugestiva de diagnóstico. Ela trabalhava como uma enfermeira e negou quaisquer lesões associadas com agulhas e comportamentos sexuais de alto risco. Ela era ex-fumante, mas não consumia álcool e outras drogas recreativas.

           Relevante, ela havia retornado há 1 semana de Santa Lúcia, um país insular no Caribe. Reportou ter recebido múltiplas picadas de insetos na região.

           Após essa última informação e mais algumas análises clínicas, forte suspeita foi levantada para infecção com vírus chikungunya (CHIKV) ou vírus da dengue (DENV). Devido à severa poliartralgia simétrica e ausência de coagulopatia, neutropenia e trombocitopenia - mais comuns com o vírus DENV -, um diagnóstico de Febre Chikungunya foi feito.

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          A paciente recebeu tratamento de suporte com hidratação intravenosa e analgésicos, resultando em rápida resolução da febre, rash, fotofobia, mialgia e diarreia. Apesar da administração de ibuprofeno e acetaminofen, a poliartralgia severa persistiu. No quarto dia de hospitalização, ela foi tratada com metilprednisolona 40 mg com subsequente melhora da sua dor. Ela  foi liberada do hospital no sexto dia com ibuprofeno, acetaminofeno e prednisona oral. Após liberação, teste para anticorpo IgM CHIKV-específico retornou positivo; a testagem para DENV retornou negativa.

          O relato de caso foi reportado em 2016 no periódico Journal of General Internal Medicine (Ref.2).


   CHIKUNGUNYA

          O vírus chikungunya ou chicungunha  (CHIKV) é enzoótico, primitivamente encontrado em regiões tropicais e subtropicais da África, no sul e sudeste da Ásia e em ilhas do Oceano Índico. O nome chikungunya significa, em língua Makonde, 'aquele que é contorcido', caracterizando a postura de seus pacientes causada pelas fortes dores articulares que apresentam. Existe potencial de evolução grave e até letal do quadro infeccioso em uma pequena parcela dos casos, concentrados em populações mais vulneráveis, como neonatais, idosos e indivíduos com múltiplas comorbidades. Miocardite (inflação do coração), hipertensão, condições pré-existentes e desenvolvimento de falha cardíaca estão significativamente correlacionados com mortes pela doença (Ref.3). Em neonatais, encefalopatia ou encefalite é comum nos casos mais severos.

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> Desde 2004, a disseminação do CHIKV tem sido associada com surtos explosivos na Índia e outras partes da Ásia, na Índia, no sul da Europa e, mais recentemente, na América Latina. A taxa de mortalidade associada ao CHIKV no Sudeste Asiático e no Brasil tem sido estimada entre 1 e 1,3 mortes para cada 1000 casos, similar àquela observada durante epidemias de dengue. Ref.18

> Desde 2015, mais de 900 mortes foram reportadas no Brasil ligadas ao Chikungunya. No Ceará, a taxa de mortalidade acumulada de 2015 até 2023 é de 1,3 para cada 1000 casos (comparado com a taxa acumulada de 0,8/1000 casos no Brasil). Ref.18

> O vírus é capaz de se disseminar através do sangue, alcançando múltiplos órgãos e atravessar a barreira sangue-cérebro (a qual protege o sistema nervoso central), causando a disrupção da sua integridade e sérios danos neurológicos. O vírus também pode causar severa alteração nos processos de coagulação, danos hemodinâmicos nos órgãos, falha cardíaca e resposta inflamatória excessiva. As mortes geralmente envolvem comprometimento de múltiplos órgãos (cérebro, coração, fígado, rins) e desregulação imune. Ref.18

> O vírus CHIKV NÃO é menos letal do que o vírus da dengue, algo comumente e erroneamente alegado. Ref.18-19

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            O vírus chikungunya é transmitido por picada de insetos do gênero Aedes (Fig.2), e existem muitos casos também de transmissão vertical (mãe → feto) (Ref.5). Esse vírus tornou-se conhecido no início da década de 1950, isolado de um paciente febril no atual território da Tanzânia, África. Já em 1954, sua presença foi confirmada na Ásia, em um surto nas Filipinas e, posteriormente, em outros países, como Tailândia, Índia e Paquistão. Casos esporádicos e pequenos surtos foram registrados. Porém, o CHIKV reemergiu em 2005, passando a causar grandes surtos de doença humana na Ásia, África e ilhas do Oceano Índico. Essa reemergência deveu-se, provavelmente, a uma adaptação genética do vírus aos vetores da região. Atualmente, a doença tem sido identificada em mais de 110 países na Ásia, África, Europa e Américas.

Figura 2. Mosquitos adultos Aedes aegypti (A) e Aedes albopictus (B). Morfologicamente, ambos possuem uma coloração preta com listras brancas sobre as costas e pernas. No entanto, o A. albopictus é menor, com uma única e longitudinal faixa prateada dorsal, enquanto o A. aegypti possui um pardrão dorsal prateado na forma de lira no escutelo (!). Ambas as espécies [fêmeas] se alimentam [sangue] de um amplo espectro de hospedeiros vertebrados, mas o A. aegypti é mais atraído por humanos do que o A. albopictus e, portanto, é um vetor mais eficiente em áreas urbanas. Ambos transmitem vários arbovírus, incluindo os vírus da dengue, Zika, chikunngunya e febre amarela. Ref.6

(!) Para fotos ampliadas mostrando esse detalhe, acesse aqui.

Figura 3. Países e territórios onde casos de chikungunya - infecções locais, excluindo-se casos importados - têm sido reportados (até junho de 2018). Atualmente, 1,3 bilhão de pessoas vivem em áreas tropicais e subtropicais e estão sob risco de transmissão do vírus CHIKV. Ref.5

            O vírus pertence ao gênero Alphavírus e à família Togaviridae, exibe RNA como material genético e está associado a quatro distintas linhagens até o momento descritas. Após infecção humana via picada de mosquito infectado, vírions CHIKV podem invadir um vasto espectro de tipos celulares, incluindo células endoteliais, epiteliais, fibroblásticas e até de satélites musculares. Na África, os vírus mantêm-se em um ciclo de transmissão silvestre, entre macacos e pequenos mamíferos - como morcegos -, e em mosquitos do gênero Aedes. Na Ásia, o ciclo de transmissão é diferente e o vírus circula entre humanos e mosquitos, resultando em epidemias urbanas, com a participação das espécies Ae. aegypti e Ae. albopictus como principais vetores. Até 2021, nas Américas, 97% dos casos registrados (próximo de 140 mil casos) ocorreram no Brasil (Ref.7). Os primeiros casos registrados no Brasil ocorreram em 2014.

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> Como os mosquitos vetores do Chikungunya também transmitem os vírus da dengue (1) e da Zika (2), coinfecções com essas doenças são comumente reportadas. Coinfecções com DENV e CHIKV são comuns na Índia (Ref.8), e esses casos tendem a ser mais severos (Ref.9). Nesse mesmo sentido, durante epidemias de dengue é esperado que os casos de Chikungunya aumentem. Estima-se, antualmente, 400 milhões de casos de dengue, 693 mil casos de chikungunya e 500 mil casos de Zika (Ref.10).

Sugestão de leitura:

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           A infecção pelo CHIKV apresenta muitas semelhanças com dengue. O período de incubação varia de 1 a 12 dias - média de 4 dias -, seguido por febre alta repentina (>38,5°C), dores agudas e persistentes nas articulações, cefaleia, fotofobia, mialgia e rash [vermelhidão] cutâneo. Ocasionalmente, sistemas pulmonar, cardíaco, neurológico e gastrointestinal são afetados. Em cerca de 25% das pessoas atingidas, a infecção é assintomática.  A poliartralgia - dor envolvendo múltiplas articulações - caracteriza os casos sintomáticos, e pode prejudicar o rendimento profissional e a qualidade de sono dos infectados (Fig.4). Os sintomas e sinais agudos da infecção pelo CHIKV resolvem-se em cerca de 7 a 15 dias, embora as dores, rigidez e edema nas articulações possam durar meses e até anos, em 10 a 12% dos casos. Idade acima de 45 anos, presença de doença crônica concomitante (ex.: diabetes mellitus, hipertensão, dislipidemia e doença reumática prévia) e maior intensidade das dores na fase aguda contribuem para a persistência de longo prazo da poliartralgia. 

Figura 4. Mapa com regiões no corpo onde dor é mais comumente reportada entre infectados sintomáticos com Chikungunya. as articulações mais acometidas pelas dores são os joelhos, tornozelos, punhos e dedos. Ref.11

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> A principal diferença entre a dengue e a chikungunya é a dor nas articulações, muito mais intensa na chikungunya, afetando principalmente pés e mãos, geralmente tornozelos e pulsos. Ao contrário do que acontece com a dengue, não existe uma forma hemorrágica da doença e a artrite pode continuar ativa por muito tempo. Ref.12

> Devido à dificuldade de diagnóstico diferencial entre febre chikungunya e dengue na fase aguda, os medicamentos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), como a aspirina (ácido acetilsalicílico), devem ser evitados nas duas primeiras semanas da doença, pelo risco de sangramento. Ainda, uma vez que o uso de salicilatos em quadros virais agudos pode levar à síndrome de Reye (!), esses também devem ser evitados nessa fase. Ref.11

(!) Para mais informações: Aspirina é realmente segura para um uso diário?

> Clinicamente, a febre chikungunya apresenta três fases. A fase aguda, em que os pacientes sintomáticos relatam um início abrupto da doença, caracterizada por febre alta, fadiga, edema, náuseas, vômitos, dor de cabeça, dores nas costas e poliartralgias. Esses sintomas perduram de 4 a 7 dias e podem persistir por até três meses, caracterizando a fase subaguda da doença, após esse período, inicia-se a fase crônica e as artralgias destacam-se como o principal sintoma nesta fase, apresentando duração frequente e longa, podendo perdurar por semanas, meses e, às vezes, por anos - mas com aparente redução dos sintomas ao longo do tempo.

> Podem existir também manifestações orais durante infecção aguda pelo CHIKV, incluindo lesões bucais; dor, queimação e sangramento na gengiva; incapacidade de deglutir e mastigar; halitose; e dor na abertura da boca. Na maior parte dos casos, lesões são dolorosas causando frequentemente dificuldade de alimentação. Os principais locais acometidos parecem ser a língua, gengivas e lábios. As lesões da mucosa apresentam-se como úlceras arredondadas com margens circunscritas e halo-eritematoso ou regiões edemato-eritematosas na gengiva marginal. Os pacientes com chikungungya que apresentam lesão bucal exibem mais frequentemente sintomas sistêmicos de rash, prurido, mialgia, edema e dor retroocular (atrás dos olhos). O vírus na saliva parece induzir resposta pró-inflamatória na cavidade oral. Ref.16-17

> Recomendações da Sociedade Brasileira de Reumatologia para o tratamento da febre chikungunya em cada fase (aguda, subaguda e crônica) por nível de complexidade de atendimento: acesse aqui.

> Aproximadamente 50% dos pacientes com Chikungunya se recuperam em poucas semanas, mas os outros 50% desenvolvem reumatismo infamatório crônico com dor crônica persistente, fadiga e diferentes graus de incapacidade durante anos. A poliartralgia crônica generalizada e incapacitante pode durar de meses a anos após a infecção. Taxa de hospitalização com a doença é tipicamente baixa, variando entre 0,5% e 8,7% dos casos. Ref.13

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            Teste laboratorial tradicional para o vírus da chikungunya é o serológico, o qual busca determinar a presença de imunoglobulina M (IgM) e imunoglobulina G (IgG) por enzimas específicas. Níveis de anticorpos são geralmente mais altos 3 a 5 semanas após os sintomas iniciais. Outro método para testagem é a reação em cadeia da polimerase da transcrição reversa (RT-PCR), o qual busca detectar o RNA viral do CHIKV durante a fase aguda de infecção dentro dos primeiros dias antes da significativa produção de anticorpos (Ref.14).


           Ainda não há vacinas preventivas e tratamento etiológico [específico; ex.: antiviral] disponível, sendo o vetor o único elo vulnerável na cadeia de transmissão da doença. Em outras palavras, é crítico controlar as populações de mosquitos vetores e usar medidas de proteção pessoal contra esses insetos em áreas endêmicas, visando reduzir o risco de infecção.

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           O controle das artralgias crônicas provenientes da chikungunya consiste em tratamento farmacológico e fisioterapêutico. O tratamento farmacológico na fase crônica consiste no uso dos analgésicos, opioides, anti-inflamatórios não esteroides e corticosteróides. É importante mencionar que alguns pacientes podem evoluir para um quadro de artrite erosiva progressiva, com padrão de artrite reumatoide ou psoriática e, para esses casos, a medicação pode ser modificada de acordo a necessidade e a condição clínica apresentada pelo paciente.

          O tratamento fisioterapêutico deve estar presente nas três fases da doença e tem sido eficaz no controle das artralgias e melhora funcional dos pacientes acometidos pela chikungunya.

           

REFERÊNCIAS

  1. Powers & Logue (2007). Changing patterns of chikungunya virus: re-emergence of a zoonotic arbovirus. Journal of General Virology 88, 2363–2377.
  2. Peper et al. (2016).  et al. That Which Bends Up: A Case Report and Literature Review of Chikungunya Virus. Journal of General Internal Medicine 31, 576–581. https://doi.org/10.1007/s11606-015-3459-3 
  3. Traverse et al. (2021). Cardiomyopathy and Death Following Chikungunya Infection: An Increasingly Common Outcome. Tropical Medicine and Infectious Disease 6(3), 108. https://doi.org/10.3390/tropicalmed6030108
  4. Condições para a transmissão da febre do vírus chikungunya. 2014. Epidemiologia e Serviços de Saúde, 23(4). https://doi.org/10.5123/S1679-49742014000400020
  5. Ferreira et al. (2021) Vertical transmission of chikungunya virus: A systematic review. PLoS ONE 16(4): e0249166. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0249166
  6. Lwande et al. (2020). Globe-Trotting Aedes aegypti and Aedes albopictus: Risk Factors for Arbovirus Pandemics. Vector-Borne and Zoonotic Diseases, Vol. 20, No. 2. https://doi.org/10.1089/vbz.2019.2486
  7. Santos et al. (2023). Análise espacial da incidência da febre de Chikungunya e dos fatores socioeconômicos, demográficos e de infestação vetorial associados, em municípios de Pernambuco, Brasil, 2015–2021. Revista Brasileira de Epidemiologia, 26. https://doi.org/10.1590/1980-549720230018.2
  8. Vikhe et al. (2023). Dengue and Chikungunya Co-InfectionAssociated Multi-Organ Dysfunction Syndrome: A Case Report. Cureus 15(12): e50196. https://doi.org/10.7759/cureus.50196
  9. Kharwadkar & Herath (2024). Clinical manifestations of dengue, Zika and chikungunya in the Pacific Islands: A systematic review and meta-analysis. Reviews in Medical Virology, Volume 34, Issue 2, e2521. https://doi.org/10.1002/rmv.2521
  10. Islam et al. (2024). Global Prevalence of Zika and Chikungunya Coinfection: A Systematic Review and Meta-Analysis. Diseases 12(2), 31. https://doi.org/10.3390/diseases12020031
  11. Lemos et al. (2021). Prevalência, articulações acometidas e intensidade das artralgias em indivíduos na fase crônica da febre Chikungunya. BrJP, 4(2). https://doi.org/10.5935/2595-0118.20210032
  12. https://bvsms.saude.gov.br/febre-de-chikungunya/
  13. Cavalcante et al. (2022). Artralgia crônica por Chikungunya reduz funcionalidade, qualidade de vida e performance ocupacional: estudo descritivo transversal. BrJP, 5(3). https://doi.org/10.5935/2595-0118.20220047-pt
  14. Reilly et al. (2020). Postmortem Chikungunya Diagnosis. The American Journal of Forensic Medicine and Pathology, 41(1), 48–51. https://doi.org/10.1097/PAF.0000000000000519
  15. https://www.who.int/health-topics/chikungunya
  16. https://possaude.ufba.br/pt-br/caracterizacao-das-lesoes-orais-e-da-resposta-imunologica-local-durante-infeccao-aguda-por
  17. Oliveira et al. (2020). Manifestações orais de arboviroses com ênfase em dengue, zika e chikungunya: revisão de literatura. Archives of Health Investigation 10(2), 323–328. https://doi.org/10.21270/archi.v10i2.4677
  18. Souza et al. (2024). Pathophysiology of chikungunya virus infection associated with fatal outcomes. Cell Host & Microbe. https://doi.org/10.1016/j.chom.2024.02.011
  19. https://agencia.fapesp.br/multiple-organ-attack-and-immune-dysregulation-study-reveals-how-the-chikungunya-virus-leads-to-death/51084