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Homens [sexo masculino] podem produzir leite?

Figura 1. Complexo aréola-mamilo de um humano do sexo masculino.

 
          Humanos modernos e outros mamíferos fêmeas possuem mamas e tecido mamário associados ao complexo aréola-mamilo com função primariamente nutritiva, visando amamentação dos filhotes recém-nascidos até certo estágio de desenvolvimento infantil. Porém, mamíferos machos tipicamente também exibem tecido mamário [rudimentar] e o complexo aréola-mamilo cuja função primária observada nas fêmeas inexiste. É comumente sugerido na literatura acadêmica que "mamilos masculinos" são um típico exemplo de vestígio do desenvolvimento embrionário, o qual persiste mesmo disfuncional porque não causa prejuízos, é muito complexo e/ou envolve um custo energético muito grande para erradicá-lo ao longo do percurso evolutivo. Por outro lado, uma função secundária bem estabelecida do complexo aréola-mamilo envolve seu papel como mediador e, potencialmente, sinalizador de excitamento sexual, mais importante no sexo feminino mas aparentemente também relevante no sexo masculino (1).

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(1) Leitura recomendadaQual a função da ereção dos mamilos?

          Curiosamente, humanos e outros mamíferos machos são capazes de produzir leite em raros eventos patológicos ou não-patológicos quem levam a um desbalanço hormonal. O termo para esse fenômeno é galactorreia, caracterizada pela produção de leite a partir de tecido mamário que não possui relação com gravidez ou lactação. Galactorreia é muito mais comum em fêmeas (2), mas pode raramente ocorrer em machos. Vários hormônios incluindo prolactina, estrógenos e hormônio estimulante da tireoide (TSH) podem afetar a produção de leite; em particular, a prolactina é responsável pela síntese e secreção de leite. Por exemplo, tumores afetando a glândula tireoide podem induzir a produção de grande quantidade de prolactina, estimulando por sua vez a produção de leite no tecido mamário masculino. Para melhor ilustrar, recentemente foi reportado no periódico Journal of the Endocrine Society (Ref.2) um homem de 53 anos de idade diagnosticado com prolactinoma - um tumor comum na pituitária (ou hipófise) - e exibindo notável ginecomastia (3) e produção de leite ao apertar sua região mamilar.

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(2) Nos humanos, prevalência de hiperprolactinemia (níveis anormalmente elevados de prolactina) - potencialmente levando à galactorreia - pode ser tão alta quanto 9-17% em mulheres com desordens reprodutivas (ex.: síndrome do ovário policístico) (Ref.3). Excesso de estrógenos pode causar hiperprolactinemia ao inibir a dopamina hipotalâmica assim como ao estimular diretamente os lactotrofos (células da hipófise que produzem prolactina). Estimulação dos mamilos, falha renal, lesões na parede pulmonar e certos medicamentos podem também causar hiperprolactinemia. Galactorreia em homens com hiperprolactinemia é muito menos comum devido à menor suscetibilidade do tecido mamário masculino aos efeitos lactogênicos do excesso de prolactina (Ref.4).

Figura 2. O tecido glandular mamário está presente em ambos os sexos, mas é bem desenvolvido nas fêmeas e rudimentar nos machos. É constituído de dutos ramificados e lóbulos terminais secretórios. Ginecomastia é um aumento na quantidade de tecido glandular mamário nos indivíduos do sexo masculino, causado por desbalanço dos hormônios estrógenos e testosterona. Aumento dos níveis de prolactina podem induzir produção de leite no tecido glandular mamário associado à ginecomastia.

(3) Leitura recomendadaQual é a relação entre câncer de mama masculino e ginecomastia?

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           Em mamíferos em geral, a  galactorreia pode também estar associada com deficiências nutricionais (4), ingestão excessiva de fitoestrógenos por herbívoros e até mesmo exposição a pesticidas. E, mais interessante, existem duas espécies de morcego - Pteropus capistrastus, na Papua Nova-Guiné, e  Dyacopterus spadecius, na Malásia (Fig.3) - onde glândulas mamárias funcionais e produção de leite parecem ser relativamente comuns entre os machos, apesar da produção representar apenas 1,5% do volume de leite produzido pelas fêmeas sob lactação (Ref.5). É incerto se essa limitada produção de leite nos machos desses morcegos é algum caso de galactorreia - resultante da dieta ou de patologias (apesar dos morcegos "lactantes" parecerem saudáveis) - ou se o 'leite masculino' é usado para amamentar os filhotes.  

Figura 3. Morcego macho da espécie Dyacopterus spadecius.

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(4) CURIOSIDADE: Galactorreia masculina foi observada na Segunda Guerra Mundial em prisioneiros de guerra em campos de concentração que foram libertados e bem alimentados (Ref.5). Durante o período de escasso suprimento nutricional nos campos de concentração, os prisioneiros sofreram atrofias hepáticas, testiculares e pituitárias. Quando passaram a se alimentar adequadamente, os testículos e a glândula pituitária dos libertos rapidamente reganharam suas funções normais e começaram a produzir estrógenos e andrógenos. No entanto, o fígado não acompanhava a rápida recuperação do estresse provocado pela fome e não conseguia metabolizar esses hormônios adequadamente. O desbalanço hormonal resultante acabava levando à produção masculina de leite.

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          O ponto é que os machos de mamíferos possuem o maquinário genético, celular, fisiológico e anatômico para a produção e liberação de leite, incluindo tecido mamário rudimentar e mamilos.

          Nesse contexto, emerge a enigmática questão: por que mamíferos machos não exibem lactação no sentido de ajudar diretamente no desenvolvimento da prole? Ao longo de >200 milhões de anos de evolução, nenhuma espécie de mamífero parece ter sofrido pressão seletiva no sentido de tornar os machos capazes de lactar e alimentar os filhotes. Apenas fêmeas carregam o fardo da custosa amamentação, mesmo machos conservando as "peças" necessárias para a produção e liberação de leite.

          Aliás, é bem incomum machos de mamíferos participarem diretamente do cuidado da prole, ocorrendo em menos de 10% das espécies conhecidas - incluindo humanos modernos (Homo sapiens). Tipicamente a fêmea gera, cuida e fornece nutrição através do aleitamento materno, tarefas altamente custosas que poderiam ser compartilhadas entre ambos os sexos. Historicamente, existe uma hipótese muito citada que tenta explicar essa tendência de exclusividade parental no lado materno:

- Exceto entre espécies socialmente monogâmicas, machos de mamíferos nunca têm certeza da paternidade, e fornecer custoso cuidado parental para filhotes que podem não carregar sua carga genética seria selecionado contra. Como monogamia genética estrita é muito rara, certeza de paternidade é frequentemente baixa e, portanto, é esperado que os machos "não se importem" com os filhotes. Além disso, como o desenvolvimento fetal na maior parte dos mamíferos é interno e frequentemente prolongado, é mais provável que o macho abandone antes os futuros filhotes por motivos diversos do que a fêmea - esta a qual estará obrigatoriamente ligada ao feto -, reduzindo ainda mais a pressão seletiva por cuidado parental no lado paterno.  

          Porém, ainda permanece o enigma: mesmo entre espécies cujos machos investem em cuidado parental, lactação masculina é sempre ausente como regra geral. Machos de mamíferos podem ajudar a buscar alimento para os filhotes, protegê-los contra predadores, ensiná-los a sobreviver, mas mesmo após um longo percurso evolutivo, não vemos hoje nenhum macho amamentando os filhotes.

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           Lactação requer níveis mínimos de certos hormônios (ex.: prolactina) que podem reduzir a produção de testosterona, causar infertilidade e feminizar o corpo masculino. Considerando alta competição entre machos no sentido de acesso às fêmeas (seleção sexual) e/ou de defesa territorial ou contra potenciais predadores (seleção natural), é sugerido que um perfil hormonal mais feminino - mesmo que temporário - seria fortemente selecionado contra. Somando-se a isso, seria necessário supressão androgênica em críticos estágios do desenvolvimento da glândula mamária para fornecer ideal produção de leite visando amamentação, o que talvez poderia reduzir o potencial de masculinização.

          Essa hipótese, porém, explicaria apenas um cenário de alta competitividade entre machos, e nem sempre isso ocorre. E enquanto níveis de prolactina necessários para a lactação comprometem a atividade masculina - incluindo perda de fertilidade nos machos -, esse status é reversível após restauração dos níveis normais de prolactina. Por que uma redução temporária na fertilidade masculina não seria selecionada em mamíferos monogâmicos?

          Nesse sentido, um recente estudo publicado ainda como preprint (sem revisão por pares) na plataforma bioRxiv (Ref.6) propôs uma interessante solução para o enigma. A real causa da ausência de aleitamento paterno estaria relacionada à nossa microbiota simbionte. Durante o aleitamento materno, importantes microrganismos simbiontes - essenciais para a nossa saúde - são transferidos verticalmente entre mãe e filhotes, especialmente bactérias que colonizarão o intestino. Nessa transferência podem  ser transmitidos microrganismos benéficos (5) e patogênicos. Raros e perigosos simbiontes patogênicos podem estar presentes em uma dada população. Se a transmissão de simbiontes é biparental, teremos uma maior chance de transferência de perigosos simbiontes e um boost reprodutivo para os simbiontes no geral; se a transferência é uniparental, as chances de transferência são menores e o crescimento microbiótico é limitado (Fig.4).

Figura 4. Transmissão biparental em uma população de hospedeiros fornece um boost (vantagem) reprodutiva para simbiontes. Essa vantagem é máxima quando simbiontes (vermelho) são raros na população, e hospedeiros infectados se acasalam na maioria das vezes com indivíduos não infectados. O boost é prevenido através de transmissão uniparental, assumido aqui ser materna. Referência: Fagan et al., 2022

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(5) Por exemplo, bactérias do clado Bifidobacterium, as quais ocorrem no leite materno, são conhecidas de inibir o crescimento de bactérias patogênicas e ajudar na digestão do leite nos recém-nascidos.

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          No estudo, os pesquisadores usaram modelos matemáticos baseados em dinâmicas evolucionárias para mostrar que a transmissão uniparental de simbiontes acaba eliminando a longo prazo transmissão significativa e efetiva de raros simbiontes patogênicos que poderiam comprometer a sobrevivência dos recém-nascidos (Fig.5). Com a transmissão exclusivamente materna, a frequência de simbiontes verticalmente transmitidos não muda quando os hospedeiros se reproduzem. Essa transmissão exclusiva poderia ser paterna ou materna do ponto de vista puramente matemático, porém microbiota também é transferida para os filhotes durante o parto e, portanto, a microbiota da mãe estaria sempre presente; para evitar cruzamento de distintas microbiotas, a transmissão obrigatoriamente precisa ser do lado materno.

Figura 5. Um experimento numérico demonstrando como a transmissão vertical materna atua como um filtro de simbiontes. (a) Distribuição de frequência de uma comunidade de simbiontes S em uma população de hospedeiros; w < 1: S prejudicial e se w > 1: S benéfica. (b) Distribuição de frequência de w em simbiontes que invadem com sucesso sob transmissão biparental: invasão pode ocorrer se o simbionte é benéfico ou prejudicial ao hospedeiro. (c) Frequência correspondente de distribuição sob transmissão materna: aqui o filtro acaba excluindo simbiontes prejudiciais, apenas permitindo invasão de simbiontes benéficos para os hospedeiros. Referência: Fagan et al., 2022

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         Enquanto que a transmissão materna vertical protege os filhotes de simbiontes prejudiciais, essa estratégia também reduz a velocidade de colonização efetiva e capacidade adaptativa da microbiota benéfica transmitida e privilegiada. Nesse contexto, essa desvantagem provavelmente é compensada pelo filtro contra simbiontes deletérios emergentes. 

          Os pesquisadores também demonstraram, matematicamente, que a transmissão materna exclusiva também previne a fixação de simbiontes deletérios horizontalmente transmitidos (ex.: contaminação direta da nova geração a partir do ambiente ou de indivíduos infectados); aliás, a transmissão horizontal de simbiontes patogênicos mostrou ajudar a proteger o modo de transmissão vertical materna. Soma-se a isso o fato de inexistir evidência de patógenos virais, bacterianos ou fúngicos primariamente transmitidos através da amamentação materna - apesar de numerosos vírus que podem ser transmitidos através do aleitamento, como o HIV.

          Os resultados do modelo evolutivo proposto (filtro de simbiontes) potencialmente explicam porque a expressão de prolactina é suprimida nos machos de mamíferos a níveis baixos o suficiente para impedir lactação. Isso pode se somar ou não aos fatores propostos por hipóteses prévias. Talvez as únicas exceções ao modelo proposto sejam morcegos, caso os machos das duas espécies previamente mencionadas participem da amamentação dos filhotes. Porém, é sabido que a microbiota dos morcegos, como resultado da evolução única de voo, é bem distinta daquela encontrada em outros mamíferos, algo que pode interferir nas pressões seletivas associadas às transmissões de simbiontes.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK547666/ 
  2. Selman-Geara et al. (2022). PMON121 GALACTORRHEA, MACROPROLACTINOMA IN A 53-YEAR-OLD MALE, Journal of the Endocrine Society, Volume 6, Issue Supplement_1, Pages A535–A536. https://doi.org/10.1210/jendso/bvac150.1114
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK537115/  
  4. Akirov & Rudman (2023). The Role of Aromatase Inhibitors in Male Prolactinoma. Journal of Clinical Medicine, 12(4), 1437. https://doi.org/10.3390/jcm12041437
  5. Kunz & Hosken (2009). "Male lactation: why, why not and is it care?" Trends in Ecology & Evolution, 24(2), 80–85. https://doi.org/10.1016/j.tree.2008.09.009
  6. Fagan et al. (2022). Maternal transmission as a microbial symbiont sieve, and the absence of lactation in male mammals. [Preprint] BioRxiv. https://doi.org/10.1101/2022.01.10.475639