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COVID-19 pode causar diabetes, sugerem evidências

- Atualizado no dia 3 de abril de 2022 -

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           Cada vez mais evidências vêm se acumulando no sentido de apontar que a diabetes não só é um fator de risco para quadros mais graves da COVID-19 - doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) -, como também pode ser engatilhada pela COVID-19 em indivíduos saudáveis. O SARS-CoV-2 pode ainda fomentar severas complicações em pacientes com diabetes pré-existente. E, não apenas isso, pode disparar uma diabetes tipo 1 em indivíduos sem diabetes ou problemas pancreáticos prévios!

          Em junho de 2020 esse alerta ganhou notoriedade com uma carta publicada no periódico New England Journal of Medicine (Ref.1) e assinada por um grupo internacional de 17 notáveis especialistas em diabetes envolvidos no projeto CoviDiab Registry, uma iniciativa de pesquisa colaborativa internacional. A carta também anunciou o estabelecimento de um Registro Global dos novos casos de diabetes em pacientes com COVID-19, esse o qual visa entender a extensão e características das manifestações de diabetes em pacientes com COVID-19, e estabelecer as melhores estratégias de tratamento e monitoramento dos pacientes afetados durante e após a pandemia.

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          Em meados de abril de 2020, Finn Gnadt, um estudante de 18 anos de Kiel, Alemanha, testou positivo para a infecção com o novo coronavírus, apesar de estar se sentido bem (aparentemente assintomático). A infecção teve origem provável dos pais, que acabaram sendo infectados quando faziam uma viagem para a Áustria. Dias depois de saber do resultado positivo - via teste rápido de anticorpos -, Gnadt começou a se sentir cansado e com sede excessiva. Eventualmente, ele acabou sendo diagnosticado com diabetes tipo 1, e o estranho e súbito aparecimento dessa doença, à primeira vista, só possui plausível explicação caso diretamente ligado à infecção viral (Ref.8).

          Na maioria das pessoas com diabetes tipo 1, o sistema imune do corpo começa a destruir as células-beta - responsáveis por produzir o hormônio insulina - no pâncreas, frequentemente de forma súbita. No caso de Gnadt, a suspeita é que o vírus destruiu suas células-beta, já que seu sangue não possuía os tipos de células imunes que tipicamente destroem as ilhas pancreáticas onde as células-beta vivem.

           E o caso de Gnadt está longe de ser o único ligando ao SARS-CoV-2. Existem relatos de casos de dezenas de pessoas com COVID-19 que chegaram ao hospital com níveis de glicose e de corpos cetônicos (produzidos de depósitos adiposos no fígado) no sangue extremamente altos. Quando o corpo não consegue produzir suficiente insulina para a metabolização normal da glicose e controle de certas vias metabólicas, passa a usar e produzir em excesso cetonas como uma fonte alternativa de combustível celular (I).

          Um desses casos foi inclusive reportado no periódico Diabetes Research and Clinical Practice (Ref.3), de um homem de 37 anos, sintomático (febre, vômito, polidipsia e poliuria há 1 semana) e testado positivo para o SARS-CoV-2, que deu entrada no hospital com um grave quadro de cetoacidose diabética. O paciente era saudável até o momento da infecção, com um IMC ideal, e sem evidência de resistência à insulina ou histórico de diabetes.

          E esses relatos de casos são suportados por  dois robustos estudos observacionais recentes. O primeiro, publicado no periódico Diabetes Care (Ref.9), analisou a incidência de diabetes entre aproximadamente 2,8 milhões de veteranos Norte-Americanos com e sem infecção (SARS-CoV-2) recente de março de 2020 até junho de 2021, e encontrou que infecção com o vírus estava associada com um significativo maior risco de diabetes entre os indivíduos do sexo masculino. Dentro de 120 dias após teste laboratorial positivo, o risco de incidência de diabetes era quase 2,6 vezes maior, e, até o final do período de acompanhamento, quase 2 vezes maior. 

          O segundo estudo, publicado no periódico The Lancet (Ref.10), analisou 181280 participantes que tiveram um teste positivo de COVID-19 entre março de 2020 e setembro de 2021, e comparou esse grupo com um controle contemporâneo englobando mais de 4 milhões de participantes e um controle histórico (2018-2019) englobando mais de 4,2 milhões de participantes. Em todos os três grupos, os participantes estavam livres de diabetes no início do acompanhamento, este o qual se estendeu por uma média de 352 dias. Os resultados mostraram um risco aumentado de 40% para a incidência de diabetes durante o período de acompanhamento, traduzido para um aumento de ~13,5 casos extras de diabetes para cada 1000 pessoas ao longo de 12 meses. Além disso, o risco para incidência de diabetes ou uso de anti-hiperglicêmico para casos de COVID-19 aumentou em 46%, traduzido para ~18 casos extras para cada 1000 pessoas ao longo de 12 meses. Quanto maior a severidade da COVID-19 (sem hospitalização, hospitalização, admissão na UTI), maior mostrou ser o risco para diabetes ou problema com hiperglicemia. Para pessoas infectadas com o SARS-CoV-2 e obesas (um considerável fator de risco para diabetes tipo 2), o risco mostrou ser >2 vezes maior para a incidência de diabetes. Mesmo para quadros de COVID-19 que não necessitaram de hospitalização, o risco de incidência de diabetes aumentou de forma significativa (8,28 para cada 1000 pessoas ao longo de 12 meses). Aumento significativo de risco persistiu também para indivíduos com quadro leve de COVID-19 e sem fatores de risco prévios para diabetes.

          Considerando a escala de centenas de milhões infectados com o SARS-CoV-2, o significativo aumento de risco para diabetes pode levar a uma sobrecarga a médio-longo prazo no sistema de saúde. Cientistas recomendam que governos e autoridades de saúde ao redor do mundo estejam já preparados para rastrear sequelas glicometabólicas da COVID-19.

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   COMO EXPLICAR A RELAÇÃO?

          Um crescente corpo de fortes evidências sugerem que além dos primeiros 30 dias (fase aguda da COVID-19), pessoas com a doença podem experienciar subsequentes sequelas ("COVID longa") que podem envolver manifestações em órgãos do sistema pulmonar e extrapulmonar, incluindo diabetes.

          Nesse último caso, existe uma relação bidirecional entre COVID-19 e diabetes. Se por um lado a diabetes está associada com um aumento de risco para um severo quadro de COVID-19 (20-30% das mortes pela doença têm sido reportadas em pacientes com diabetes), por outro lado um novo quadro de diabetes (e hiperglicemia) e de severas complicações metabólicas de pacientes já diabéticos, incluindo cetoacidose diabética e hiperosmolaridade para os quais excepcionais altas doses de insulina (!) são necessárias, têm sido observados entre os pacientes infectados com o SARS-CoV-2. Essas manifestações de diabetes são ainda pouco compreendidas e sugerem uma complexa patofisiologia da diabetes COVID-19-relacionada.

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          O SARS-CoV-2 se liga à enzima angiotensina conversora 2 (ACE2) para entrar nas células (!). Essa enzima é expressa em tecidos e órgãos metabólicos cruciais, incluindo as células-beta pancreáticas, tecido adiposo, intestino delgado e os rins. Portanto, é plausível que o SARS-CoV-2 possa causar alterações pleiotrópicas no metabolismo de glicose no corpo que poderiam complicar a patofisiologia de uma diabetes pré-existente ou mesmo levar a um novo mecanismo de deflagração da doença.

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           Somando-se a isso, existem evidências pré-pandêmicas para uma causa viral de diabetes cetose-inclinada, incluindo outros coronavírus que também se ligam ao receptor ACE2. Como já mencionado, maiores incidências de glicemia de jejum e de diabetes aguda têm sido reportadas entre pacientes com pneumonia associada ao SARS (causada pelo vírus SARS-CoV-1) do que entre aqueles com pneumonia não-associadas ao SARS.

          E não só evidências observacionais se acumulam. Um estudo experimental encontrou que o SARS-CoV-2 consegue infectar e danificar tecido pancreático produzido em laboratório. O estudo, publicado na Cell Stem Cell (Ref.4), encontrou evidências também que a resposta imune exacerbada deflagrada pela COVID-19 - liberando um excesso de citocinas e quimocinas - pode também provocar danos às células pancreáticas. Existe também a possibilidade de um estado extremo de inflamação engatilhado pelo vírus em alguns casos atrapalhar a habilidade do pâncreas de sentir a glicose circulante no sangue e liberar insulina, o que leva a um quadro de diabetes. Mas é válido destacar que existem evidências conflitantes sobre o real impacto da COVID-19 e do vírus em si nas células pancreáticas (Ref.8).         

           No geral, as análises in vitro não demonstram suficientes perturbações e respostas inflamatórias que plausivelmente explicariam, por si só, o estabelecimento de um quadro de diabetes em pessoas com COVID-19. Outras potenciais explicações incluem disfunção autonômica, resposta imune hiperativada ou autoimunidade (!), e persistente inflamação de baixo grau levando a uma resistência à insulina. É possível também que abruptas mudanças sociais, econômicas e ambientais provocadas pela pandemia podem ter contribuído em alguma extensão para essa maior incidência de diabetes (co-variáveis que podem ter escapado nas análises observacionais).

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           No agregado, essas observações fornecem suporte para a hipótese de um potencial efeito diabetogênico da COVID-19, além da já bem reconhecida resposta de estresse associada com doenças severas. No entanto, ainda é incerto se as alterações no metabolismo de glicose que ocorrem de forma súbita em pacientes com formas mais severas da COVID-19 são persistentes ou são apenas temporárias. 

          Para piorar, um estudo retrospectivo publicado em julho de 2020 no periódico Diabetologia (Ref.6), e envolvendo os dados clínicos de 605 pacientes com COVID-19, encontrou que naqueles pacientes sem um diagnóstico prévio de diabetes, níveis anormalmente altos de glicose no sangue estavam associados com um risco até 2,3 vezes maior de morte e um risco até 4 vezes maior de complicações severas em comparação com os pacientes que possuíam níveis normais de glicose (ambos os níveis em um contexto de jejum). Segundo os autores do estudo, isso pode ser devido a mudanças súbitas induzidas pela hiperglicemia na coagulação sanguínea, nas funções endoteliais ou na produção de citocinas inflamatórias. 

         Hiperglicemia aguda ocorre em certa de 50% dos pacientes hospitalizados com COVID-19, enquanto a prevalência de diabetes é de apenas 7% (Ref.7). Nesse sentido, é sugerido que um rápido controle do quadro de hiperglicemia dentro das primeiras 24 horas pode ser essencial para aumentar as chances de recuperação dos pacientes. Isso significa que todos os pacientes devem ter a glicemia medida o mais rapidamente possível a partir da entrada no hospital, independente o paciente possuía uma diabetes ou pré-diabetes prévia.

> Para mais informações sobre o Registro Global, acesse: http://covidiab.e-dendrite.com/

> Pacientes com COVID-19 também podem apresentar deficiência em cortisol, já que o vírus possui a capacidade de infectar as células associadas às glândulas adrenais, como sugerido em um estudo publicado no periódico Journal of the Endocrine Society (Ref.5).


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMc2018688
  2. https://www.nature.com/articles/d41586-020-01891-8
  3. https://www.diabetesresearchclinicalpractice.com/article/S0168-8227(20)30416-2/pdf
  4. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1934590920302824
  5. https://academic.oup.com/jes/article/doi/10.1210/jendso/bvaa082/5863314
  6. https://link.springer.com/article/10.1007/s00125-020-05209-1
  7. https://link.springer.com/article/10.1007/s00125-020-05216-2
  8. https://www.thelancet.com/journals/landia/article/PIIS2213-8587(21)00087-5/fulltext
  9. Wander et al. (2022). The Incidence of Diabetes Among 2,777,768 Veterans With and Without Recent SARS-CoV-2 Infection. Diabetes Care 45(4):782–788. https://doi.org/10.2337/dc21-1686
  10. Al-Aly & Xie (2022). Risks and burdens of incident diabetes in long COVID: a cohort study. The Lancet Diabetes & Endocrinology. https://doi.org/10.1016/S2213-8587(22)00044-4