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Corrigindo uma extrapolação dos trabalhos de Darwin: bico das aves vs ecologia alimentar


(Artigo atualizado no dia 10 de junho de 2020)


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          Desde que Charles Darwin (1809-1882) primeiro propôs a Teoria da Evolução via Seleção Natural e Sexual, a partir de um exaustivo estudo observacional e robusta coleta de evidências, grandes avanços foram feitos no campo de pesquisa da Evolução Biológica, especialmente quando os segredos da genética começaram a ser desvendados. Hoje o campo evolutivo constitui a base da Biologia Moderna, e abrange um amplo espectro de teorias e hipóteses relativas aos mecanismos evolutivos e história evolutiva do planeta. Nesse sentido, muitas ideias e hipóteses de Darwin foram otimizadas, descartadas ou substituídas.


           Nesse último caso torna-se urgente atualizar livros didáticos em relação aos estudos de Darwin em Galápagos. Um robusto estudo realizado por um time internacional de cientistas do Reino Unido, Espanha e EUA, e liderado por pesquisadores da Universidade de Bristol, mostrou que o bico das aves - em termos de formato e tamanho - não evoluíram de forma estritamente dependente com a ecologia de alimentação (dieta e hábitos alimentares). Essa ideia vinha sendo extrapolada do argumento utilizado por Darwin para a sua Teoria da Evolução por Seleção Natural. Os resultados do estudo de alerta foram publicados em 2019 no periódico Evolution (1).

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          As observações realizadas por Darwin em Galápagos das diferentes espécies de tentilhões (família  Fringillidae) no arquipélago levaram o cientista a concluir que as diferentes formas e tamanhos de bico dessas aves foram adaptadas para diferentes tipos de alimentos. De fato, entre as espécies de tentilhões, as variações observadas pelo cientista Britânico (acúmulo de microevoluções dentro e entre espécies próximo-relacionadas) fortemente refletem diferentes dietas e hábitos alimentares. Outros estudos semelhantes nos últimos anos tinham alcançado conclusões semelhantes em outras espécies próximo-relacionadas. No entanto, essa ideia acabou sendo extrapolada para todos os tipos de aves e suas relações evolutivas, entre espécies, gêneros e famílias (escalas micro- e macroevolucionária), e até pouco tempo atrás ninguém tinha testado a validade dessa extrapolação. Livros escolares comumente trazem que os diferentes bicos se especializaram primordialmente para diferentes métodos de alimentação: pequenos bicos para 'bicamento', bicos pesados para esmagar, bicos longos para sondagem, bicos curvados para rasgar, etc.


          Usando técnicas matemáticas e computacionais para melhor entenderem a conexão entre as formas dos bicos e suas funções nas aves hoje existentes, os pesquisadores no novo estudo analisaram a morfologia dessa estrutura aviária e relações filogenéticas em um amplo espectro de espécimes oriundos de coleções em museus (176 espécies no total), passando por águias, papagaios e beija-flores até pinguins, avestruzes e flamingos. Em seguida, eles pesquisaram a dieta e os hábitos alimentares dessas espécies.


          O que os pesquisadores descobriram é que a conexão entre formas, tamanho e outros aspectos estruturais do bico e a ecologia alimentar nas aves é muito mais fraca e muito mais complexa do que antes pensado. Apesar de existir um relação, ela é mínima. Muitas espécies em diferentes gêneros e famílias que possuem bicos bastante similares frequentemente mostraram hábitos alimentares completamente distintos. Na média, ao longo da ordem aviária, os pesquisadores encontraram que a variação no uso do bico durante a alimentação apenas explicava aproximadamente 9% do total de variação na forma do bico, e que a variação nas preferências alimentares (dieta) apenas explicava cerca de 17% da variação morfológica no bico.

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          Segundo os pesquisadores, essa descoberta, apesar de ir contra o senso comum, faz todo sentido, porque as aves usam o bico praticamente para tudo, desde como auxiliar de locomoção entre as árvores até ferramenta para a limpeza das penas. Muitas aves, como os tucanos e os papagaios-do-mar, inclusive usam seus bicos para a exibição de cores com propósitos de identificação e/ou acasalamento, algo que pode ser um fator influenciando no processo evolutivo na forma e tamanho dos bicos. Nesse sentido, funções diversas, e não àquelas ligadas apenas à alimentação, formam uma complexa rede de fatores orientando a evolução do formato geral dos bicos e partes anatômicas auxiliares nas aves. Essa descoberta também irá impactar profundamente o campo de estudos da paleontologia, porque a ecologia alimentar de aves extintas é geralmente realizado via análise da morfologia do bico.





   FLUXO GENÉTICO

          E não apenas seleção natural e seleção sexual parecem parece ser os únicos mecanismos evolutivos moldando o bico das aves. Em um estudo publicado mais recentemente no periódico Nature Ecology and Evolution (Ref.3), pesquisadores encontraram que justamente duas espécies de tentilhões em Galápagos (Geospiza fortis e Geospiza scandens) vêm gerando híbridos que tiveram seus bicos moldados em parte devido ao fluxo genético associado aos sucessivos eventos de introgressão. Nesse sentido, a população híbrida possui uma variação de bico que não respondeu a nenhuma utilidade funcional ou visual, apenas simples e aleatória combinação genética.

           No estudo, os pesquisadores acompanharam as duas espécies ao longo de 40 anos consecutivos. O G. scandens é um pouco maior do que o G. fortis e possui um bico mais pontudo, e é especializado para se alimentar sobre cactos. O G. fortis possui um bico mais curto, robusto e menos afiado, e é especializado em se alimentar de sementes.

          Ao longo dos anos, os pesquisadores observaram hibridizações ocasionais entre as duas espécies - sem perda significativa de adaptabilidade em condições de farto alimento - e notaram uma convergência no formato do bico entre populações das duas espécies. Em particular, o bico do G scandens se tornou menos pontudo e mais similar ao bico do G. fortis.


          Para verificar se a causa dessa mudança fenotípica era devido ao fluxo genético durante os eventos de introgressão (via hibridização), os pesquisadores realizaram sequenciamentos de genoma inteiro para comparar os genomas de períodos antes e depois das sucessivas hibridizações. Eles encontraram que, de fato, fluxo genético foi substancial na maioria dos cromossomos autossômicos e no genoma mitocondrial, mas insignificante no cromossomo Z - um dos cromossomos sexuais (nas aves, o cromossomos sexuais são ZZ nos machos e ZW nas fêmeas).

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          Um cenário possível, a longo prazo, é que as duas espécies, após inúmeras hibridizações, se fundam em uma única espécie combinando variantes genéticas de duas espécies. Mas é mais provável que elas continuaram a se comportar como duas espécies e ou continuar trocando genes entre si ocasionalmente ou desenvolver isolamento reprodutivo se os híbridos em algum ponto mostrarem reduzida adaptabilidade comparado com os progenitores originais. De qualquer forma, fica exposto mais um mecanismo de moldagem dos bicos que passa longe de respeitar as necessidades de alimentação.

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> Os tentilhões nas Ilhas de Galápagos são um exemplo de uma rápida radiação adaptativa na qual 18 espécies evoluíram de um ancestral em comum dentro de um período de 1-2 milhões de anos. Algumas dessas espécies estiveram separadas por apenas algumas centenas de milhares de anos ou menos. Evidências mais recentes sugerem que essa rápida diversificação foi possível nessas aves devido à uma mais forte e incomum integração co-evolutiva entre as estruturas do crânio e do bico (Ref.4).
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/evo.13686
  2. https://www.bristol.ac.uk/news/2019/january/adaptation-of-bird-beaks-.html
  3. https://www.nature.com/articles/s41559-020-1183-9
  4. https://www.nature.com/articles/s41559-019-1092-y