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"Mente silenciosa": O que é a Anauralia?

 
          Em 2015, o termo afantasia foi introduzido na literatura acadêmica para descrever indivíduos que não são capazes de produzir ou processar conscientemente imagens mentais visuais. São indivíduos com a "mente cega" e, no estado despertado, só conseguem visualizar imagens diretamente através da visão, ou seja, não conseguem imaginar ambientes, pessoas ou objetos. Quando pessoas afetadas por afantasia leem um livro, por exemplo, personagens e cenários não emergem visualmente na imaginação apenas o entendimento desses elementos. Mas além da ausência de imagens mentais, alguns mas não todos os indivíduos com afantasia também reportam dificuldade ou ausência de percepção mental relativa a outras modalidades sensoriais. Em particular, algumas pessoas - com co-ocorrência ou não de afantasia - não exibem a chamada "voz interna", ou seja, não conseguem criar ou recapitular sons e vozes na mente. A "cabeça" fica em absoluto silêncio na ausência de vozes e sons externos.

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Leitura recomendada:


"Eu penso e leio em silêncio."

"Eu não tenho uma voz interna que fala comigo ou que eu possa ouvir."

"Eu não tenho a experiência que as pessoas descrevem de ouvir uma melodia ou uma voz na cabeça."

          Esses são alguns comentários comuns de pessoas que não possuem uma voz interna ou som mental. Enquanto para a maioria das pessoas ouvir a própria voz interna durante a leitura ou relembrar de uma música favorita são uma experiência constante e comum - às vezes até mesmo irritante quando uma música fica presa ou grudada na cabeça -, para outras o silêncio mental é a regra. 

          O primeiro estudo a explorar a condição foi publicado em 2021 no periódico Frontiers in Psychology (Ref.1) e, nele, os autores deram o nome de anauralia para a falta de voz interna ou "imagem" mental auditória. Aliás, esse foi o único estudo experimental até o momento publicado sobre anauralia em específico.

          O estudo, conduzido por dois pesquisadores da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, primeiro realizou uma revisão da literatura acadêmica e constatou que havia informação muito escassa sobre a condição. Na segunda etapa do estudo, os pesquisadores analisaram 128 participantes que preencheram um formulário online relacionado à pesquisa e distribuído em grupos nas redes sociais que debatiam afantasia. A maioria dos participantes eram do sexo feminino e todos tinham mais de 18 anos de idade. Na análise, vários testes sobre imagens e percepções auditórias mentais foram realizados pelos participantes.

          Do total de participantes, 34 foram classificados como afantásicos e 29 foram classificados como anaurálicos. Entre os afantásicos, 82% possuíam anauralia. No geral, indivíduos com afantasia reportavam baixa capacidade de imagem mental auditória e indivíduos com anauralia possuíam baixa capacidade de imaginar sons. Já indivíduos com hiperfantasia (capazes de produzir imagens mentais muito vívidas) e com hiperauralia (capazes de produzir sons mentais muito vívidos) incluíam 27 e 18 pessoas do total de participantes, respectivamente, e também mostravam forte correlação positiva para ambas as condições. Cerca de 83% dos participantes com hiperanauralia possuíam também hiperfantasia.

          Os resultados do experimento sugerem que indivíduos com dificuldade a produzir ou processar imagens mentais também tendem a ter dificuldade em produzir ou processar sons mentais. De fato, áreas no córtex cerebral envolvidos na percepção visual ou na formação de imagens mentais também estão associadas com o sentido da audição e com a produção de sons e vozes mentais.

          Mas existem prejuízos cognitivos associados à anauralia?

           Evidências acumuladas a partir de estudos neurobiológicos e psicológicos apontam que imagens e representações auditórias mentais são importantes em vários aspectos do funcionamento neurológico, incluindo memória, cognição prospectiva, pensamento, leitura, planejamento, resolução de problemas, autorregulação e música. Além disso, representação auditória mental na forma de voz interna é pensada de atuar de maneira importante no desenvolvimento cognitivo.

          Sons mentais voluntários possuem um importante papel para músicos: o teste mental de sons de instrumentos e de notas musicais facilita a criação de novas músicas (Ref.4).

          Por outro lado, é ainda incerto se a falta de voz e sons mentais é compensada por outros desenvolvimentos neurais.

          Um estudo mais recente, publicado no periódico PLoS ONE (Ref.5), analisou 29 indivíduos com afantasia em relação à capacidade de realizar tarefas vocais e musicais que à princípio requerem imagem auditória mental. A maioria desses participantes (n = 21) também reportaram reduzida capacidade de criar sons e vozes na mente. Os resultados do estudo não apontaram nenhuma significativa diferença de performance desses indivíduos em relação a um grupo de controle sem afantasia (n =30). O mesmo resultado foi obtido ao analisar apenas os participantes com deficiência em ambos os domínios (imagens mentais visuais e auditórias). Os autores do estudo alertaram, porém, que as tarefas usadas para avaliar os participantes podem não ter sido as mais adequadas para identificar possíveis déficits cognitivos associados com a reduzida habilidade de imagem auditória mental. Mais estudos experimentais e de maior porte são necessários para esclarecer a questão.

> Nos dias 14, 15 e 16 de abril deste ano, a Universidade de Auckland irá sediar uma conferência global sobre sons e vozes mentais (Mind’s Ear and Inner Voice), um evento que visa atrair não somente cientistas mas também filósofos, músicos poetas e escritores. A conferência espera também incluir relatos pessoas de indivíduos que experienciam anauralia e hiperauralia.

(!) Existe um site associado à universidade dedicado às pesquisas sobre anauralia: https://www.anauralia.com/ 

> É ainda muito incerta a prevalência de anauralia na população global.

> Algumas pessoas com hiperauralia reportam que conseguem recriar uma sinfonia na mente em grandes detalhes.


REFERÊNCIAS

  1. Hinwar & Lambert (2021). Anauralia: The Silent Mind and Its Association With Aphantasia. Frontiers in Psychology, Volume 12. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2021.744213
  2. Monzel et al. (2021). Aphantasia, dysikonesia, anauralia: call for a single term for the lack of mental imagery–Commentary on Dance et al. (2021) and Hinwar and Lambert (2021). Cortex, Volume 150, Pages 149-152. https://doi.org/10.1016/j.cortex.2022.02.002
  3. Lambert & Sibley (2022). On the importance of consistent terminology for describing sensory imagery and its absence: A response to Monzel et al. (2022). Cortex, Volume 152, Pages 153-156. https://doi.org/10.1016/j.cortex.2022.03.012
  4. Küssner et al. (2024). Music and Mental Imagery: Editorial. Music & Science, 7. https://doi.org/10.1177/20592043241293545
  5. Pounder et al. (2024). No clear evidence of a difference between individuals who self-report an absence of auditory imagery and typical imagers on auditory imagery tasks. PLoS ONE 19(4): e0300219. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0300219
  6. https://www.auckland.ac.nz/en/news/2024/12/11/mind-s-ear--investigating-the-sounds-in-your-head.html