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Por que parasitismo sexual evoluiu nos diabos-marinhos?

Figura 1. Fêmea adulta da espécie Melanocetus johnsonii com um macho (seta) anexado à sua barriga. A fêmea (75 mm de comprimento) é, basicamente, parasitada pelo macho (23,5 mm). Ref.2

 
         Peixes da ordem Lophiiformes constituem um grupo morfologicamente diverso de táxons que compartilham um modo peculiar e distinto de alimentação. Mais notavelmente, vários deles possuem um aparato de "isca" (ilício) derivado da primeira espinha modificada na nadadeira dorsal e localizado na ponta da cabeça (1). Entre as cinco subordens encontradas dentro desse grupo (Fig.2), os peixes-pescadores de profundidade ou pelágicos (Ceratioidei) são os mais diversos, com pelo menos 168 espécies conhecidas divididas entre 11 famílias e 35 gêneros. Os peixes dessa subordem - também conhecidos como diabos-marinhos - estão distribuídos em todos os oceanos e são encontrados em profundidades abaixo de 300 metros, com recorde registrado de 5866 metros para o gênero Gigantactis (Ref.3). Entre as várias adaptações para a vida nas profundezas marinhas, os diabos-marinhos exibem uma estranha forma de reprodução chamada de parasitismo sexual.

Figura 2. Relação filogenética entre as subordens que constituem a ordem Lophiiformes. Quatro dessas subordens são bênticas (vivem no chão marinho), enquanto a subordem Ceratioidei é pelágica, nadando ao longo da coluna de água marinha e provavelmente sendo derivada de um ancestral bêntico. Representantes bênticos, como os peixes-sapos (Chaunacoidei), exibem locomoção similar a tetrápodes terrestres, essencialmente andando no solo oceânico com as nadadeiras. A ordem Lophiiformes parece ter emergido no Cretáceo, há 92-61 milhões de anos. Ref.4-5

Figura 3. Algumas espécies de diabos-marinhos (fêmeas adultas): (ACentrophryne spinulosa, 136 mm de comprimento; (BCryptopsaras couesii, 34.5 mm; (C) Himantolophus appelii, 124 mm; (DDiceratias trilobus, 86 mm; (EBufoceratias wedli, 96 mm; (FBufoceratias shaoi, 101 mm; (GMelanocetus eustales, 93 mm; (HLasiognathus amphirhamphus, 157 mm; (IThaumatichthys binghami, 83 mm; (JChaenophryne sp., 157 mm. Esses peixes possuem bocas grandes e dentes afiados que facilitam a captura de um amplo espectro de presas. Além disso, possuem um grande estômago que pode acomodar refeições duas vezes maiores que o próprio corpo. Essas adaptações permitem aproveitamento máximo de escassos alimentos em relação à vasta zona pelágica das águas profundas ("zona da meia-noite"). A isca luminosa também promove o encontro com presas (crustáceos, peixes, etc.). Ref.6

Figura 4. Algumas espécies de peixes-pescadores pelágicos (fêmeas adultas): (AOneirodes sp., 31 mm de comprimento; (BSpiniphryne duhameli, 117 mm; (CCaulophryne pelagica, 183 mm; (DNeoceratias spinifer, 52 mm, com um macho parasita de 15.5-mm; (EGigantactis gargantua, 166 mm; (FPhotocorynus spiniceps, 46 mm com um macho parasita de 6,2 mm; (GHaplophryne mollis, 36 mm; (HLinophryne macrodon, 28 mm; (ILinophryne polypogon, 33 mm. Ref.6

Figura 5. Espécies de diabos-marinhos coletados nas águas do nordeste do Brasil e na região de Fernando de Noronha: (ACeratias uranoscopus, 76 mm de comprimento; (BHimantolophus sp., 37 mm; (CMelanocetus johnsonii, 19 mm; (DThaumatichthys sp., 32 mm; (EChaenophryne draco, 90 mm; (FChaenophryne ramifera, 32 mm; (GDolopichthys sp., 35 mm; (HOneirodes anisacanthus, 30 mm; (IOneirodes carlsbergi, 98 mm; (JCaulophryne sp., 6 mm. Barra de escala = 10 mm. Ref.7

          O termo "parasitismo" faz referência ao modo como os machos dos peixes-pescadores pelágicos interagem com as fêmeas. 

          Primeiro, como mostrado em Fig.1-3, existe dramático dimorfismo sexual nesses peixes: em termos de massa, fêmeas podem ser até 500000x maiores do que os machos e exibir um comprimento corporal até 60x maior (Ref.4). Em algumas espécies os machos crescem apenas até 6-10 milímetros, enquanto comprimento nas fêmeas pode alcançar 1 metro, mas comumente variando de 2 a 18 cm de comprimento (Fig.3). Ainda mais interessante, os minúsculos machos ativamente se anexam ao corpo das fêmeas (temporariamente ou permanentemente). Quando os machos realizam essa anexação de forma obrigatória e permanente, agem como verdadeiros parasitas - com o processo marcado por fusão de tecidos epidérmicos e dérmicos e, eventualmente, criando conexão entre os sistemas circulatórios do hospedeiro (fêmea) e do parasita (macho) (Fig.4). Nesse último cenário, o macho se torna dependente da fêmea para a obtenção de nutrientes e o casal essencialmente se torna uma "quimera autofertilizante".


Figura 6. Fêmea da espécie Photocorynus spiniceps (46 mm de comprimento) parasitada por um macho (seta). O macho em questão, com 6,2 mm de comprimento, está fusionado nas costas da fêmea. Em troca de nutrientes, o macho fornece espermatozoides sob demanda para a fêmea. Óvulos e espermatozoides são liberados na coluna de água, onde ocorre fertilização. Machos que são parasitas obrigatórios acabam morrendo se falham em encontrar fêmeas (hospedeiros). Ref.8

Figura 7. (A) Exemplo ilustrado de parasitismo sexual em uma fêmea (369 mm de comprimento) por um macho (38 mm) da espécie Centrophryne spinulosa. Em (B-C), maior detalhamento (B) do macho parasita e (C) dos pontos de fusão. Quando um macho de diabo-marinho encontra uma fêmea, ele se prende na pele dela com seus dentes afiados. Em eventos de parasitismo sexual, o macho produz uma enzima que lentamente dissolve sua boca e a pele da fêmea (hospedeira), criando pontos de fusão. O macho parasita, a partir desses pontos de fusão, passa a compartilhar a circulação sanguínea com a fêmea e sua única função passa a ser fertilizar os ovos liberados por essa última. Ocorre também rápida degeneração dos olhos e capacidade de visão do macho. Basicamente, o macho se torna um apêndice no corpo da fêmea. A fusão de tecidos e a degeneração de órgãos nos machos pode ocorrer em diferentes graus de extensão entre as diferentes espécies de diabos-marinhos. Ref.9-11

Figura 8. Foto (A) e ilustrações (B-P) de diabos-marinhos machos na forma livre: (A) Centrophryne spinulosa, 12.8 mm; (BCeratias sp., 10.8 mm; (CCryptopsaras couesii, 10.2 mm; (DHimantolophus sp., 34.5 mm; (EDiceratias sp., 14 mm; (FMelanocetus sp., 20 mm; (GThaumatichthys sp., 31 mm; (HChaenophryne, 14 mm; (IDolopichthys sp., 12.5 mm; Oneirodes sp., 12.5 mm; (K) Caulophryne sp., 11 mm; (L) Neoceratias spinifer, 15.5-mm; (M) Gigantactis, 14.5 mm; (N) Rhynchactis sp., 18.5 mm; (O) Borophryne apogon, 15 mm ; (P) Linophryne sp., 17 mm. Ref.6

          

           Esse processo de fusão entre machos e fêmeas é único entre os vertebrados conhecidos. Em várias ou todas as espécies de diabos-marinhos, múltiplos machos podem simultaneamente se anexar em uma única fêmea (Fig.9). Em alguns táxons, múltiplas anexações simultâneas são comuns (ex.: gêneros Cryptopsaras e Haplophryne). Essa estratégia aumenta a capacidade reprodutiva da fêmea. Enquanto parasitismo sexual parece ser obrigatório em um número de espécies onde machos possuem estruturas bucais subdesenvolvidas e inadequadas para alimentação independente, outras espécies exibem parasitismo sexual facultativo. Suspeita-se que parasitismo sexual ocorre em variados graus de extensão em todos os diabos-marinhos.

Figura 9. Fêmea da espécie Cryptopsaras couseii com um número recorde de machos (setas) anexados ao seu corpo: 8 no total. O espécime com quase 32 cm de comprimento, foi apelidado de "Rainha do Abismo". Cada macho parasita possuía de 35 a 56 mm de comprimento. Na foto acima em destaque, um dos machos parasitas não apontado pelas setas, no lado direito do corpo da fêmea. Ref.12

           Os diabos-marinhos exibem extremas adaptações imunogenéticas que garantem tolerância das fêmeas ao processo de fusão e compartilhamento do sistema circulatório, em especial perda de componentes essenciais da imunidade adaptativa (Ref.13). A evolução dessa tolerância imune - incluindo perda de função dos linfócitos B e T (citotóxicos) e possível ausência de anticorpos em parte dos táxons - torna o sistema imunológico desses peixes único entre os vertebrados. Em humanos, a perda de componentes imunes observada nesses peixes resultaria em imunodeficiência letal. É ainda pouco compreendido como esses animais compensam os componentes imunes sacrificados para se protegerem contra infecções por patógenos diversos (Ref.14).

           Mas por que parasitismo sexual evoluiu nesses peixes? Qual benefício compensa o extenso sacrifício imunológico?

           Diabos-marinhos machos procuram por fêmeas através do excelente sentido de olfato - rastreando pistas químicas liberadas na água pelas potenciais parceiras sexuais - e talvez sendo auxiliados pela visão. A zona pelágica onde esses peixes habitam (entre 300 e 6000 m de profundidade) é muito vasta e o maior habitat do planeta. Portanto, o encontro entre parceiros sexuais não é fácil. E esse é aparentemente um dos motivos para a maioria das subordens de peixes-pescadores (Ceratioidei) exibirem um um estilo de vida bêntico, explorando o solo oceânico. Evidências genéticas, filogenéticas e fósseis sugerem que o parasitismo sexual permitiu a invasão da zona pelágica por antigos peixes-pescadores bênticos que exibiam variados graus de dimorfismo sexual e imunodeficiência, dando origem à subordem Ceratioidea (Ref.15). Esse evento de transição ecológica parece ter ocorrido durante um período de grande aquecimento global no planeta, há 50-35 milhões de anos (Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno).

           Ao invadirem a zona pelágica, os peixes-pescadores puderam explorar novos recursos alimentares e com menos concorrência. Isso também permitiu rápida radiação, resultando na grande diversidade de espécies relativo a outros grupos da ordem. E com o parasitismo sexual, fêmeas garantem reprodução a taxas suficientes para permitir a sobrevivência das espécies na zona pelágica, mesmo que encontros com machos sejam relativamente raros. Quando uma fêmea encontra um ou mais machos, a integração de ambos os sexos em um corpo único cria uma verdadeira e contínua "fábrica de peixes", com garantia que os ovos produzidos serão fertilizados. Com a fusão, recursos são também significativamente poupados e investidos na reprodução  - e isso também explica os testículos tão desenvolvidos e seleção natural para um tamanho corporal tão reduzido nos machos.

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(1) Essa isca e a bioluminescência frequentemente associada são caracterizadas por uma parceria simbiótica desses peixes com bactérias, que preenchem a estrutura globular luminosa (fotóforo ou ēsca). O fotóforo está presente apenas nas fêmeas (Ref.16). A isca ajuda a atrair potenciais presas parar próximo da boca do peixe e também possui função comunicativa - e parece ajudar no encontro entre machos e fêmeas. Para mais informações: Flagrada transição evolutiva caracterizando um novo tipo de simbiose

Leitura recomendada


> O gênero Gigantactis exibe outro atípico traço entre peixes: é comumente encontrado nadando com o corpo virado para baixo, como mostrado no vídeo abaixo. É especulado que fazem isso para "pescar" potenciais presas que vivem no solo oceânico


> É um MITO a alegação de que o corpo dos machos parasitas é eventualmente absorvido por completo pelas fêmeas, sendo poupado apenas testículos funcionais. Grande parte do corpo dos machos é preservado após o processo de fusão ser finalizado, mantendo ainda desenvolvimento somático e movimentos musculares independentes.

> Em inglês, os diabos-marinhos são popularmente conhecidos como deep-sea anglerfishes.

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REFERÊNCIAS

  1. Munk, O. (2001). Histology of the fusion area between the parasitic male and the female in the deep-sea anglerfish Neoceratias spinifer Pappenheim, 1914 (Teleostei, Ceratioidei). Acta Zoologica, 81(4), 315–324. https://doi.org/10.1046/j.1463-6395.2000.00062.x
  2. Pietsch, T. W. (2005). Dimorphism, parasitism, and sex revisited: modes of reproduction among deep-sea ceratioid anglerfishes (Teleostei: Lophiiformes). Ichthyological Research, 52(3), 207–236. https://doi.org/10.1007/s10228-005-0286-2
  3. Miller et al. (2024). Upside-down swimming: in situ observations of inverted orientation in Gigantactis, with a new depth record for the Ceratioidei. Journal of Fish Biology, Volume 104, Issue 3, Pages 887-891. https://doi.org/10.1111/jfb.15609
  4. Hart et al. (2022). Evolutionary relationships of anglerfishes (Lophiiformes) reconstructed using ultraconserved elements. Molecular Phylogenetics and Evolution, Volume 171, 107459. https://doi.org/10.1016/j.ympev.2022.107459
  5. Miller et al. (2024). Reduced evolutionary constraint accompanies ongoing radiation in deep-sea anglerfishes. Nature Ecology & Evolution. https://doi.org/10.1038/s41559-024-02586-3
  6. Pietsch & Orr (2007). Phylogenetic Relationships of Deep-sea Anglerfishes of the Suborder Ceratioidei (Teleostei: Lophiiformes) Based on Morphology. Copeia, 2007(1), 1–34. https://doi.org/10.1643/0045-8511(2007)7[1:PRODAO]2.0.CO;2
  7. Mincarone et al. (2021). Deep-sea anglerfishes (Lophiiformes: Ceratioidei) from off northeastern Brazil, with remarks on the ceratioids reported from the Brazilian Exclusive Economic Zone. Neotropical Ichthyology, 19(2):e200151. https://doi.org/10.1590/1982-0224-2020-0151
  8. https://www.ie-freiburg.mpg.de/5321814/news_publication_15212439_transferred
  9. Vieira et al. (2013). Sexual Parasitism in the Deep-sea Ceratioid Anglerfish Centrophryne spinulosa Regan and Trewavas (Lophiiformes: Centrophrynidae). Copeia (4), 666–669. https://doi.org/10.1643/CI-13-035
  10. https://www.scienceandthesea.org/program/anglerfish
  11. https://www.nhm.ac.uk/discover/bizarre-love-life-of-the-anglerfish.html
  12. Saruwatari, T. (2007). Debunking an urban legend of the deep sea: The queen of the abyss and her contribution to ceratioid anglerfish biology. In Proceedings of the International Symposium—Into the Unknown, Researching Mysterious Deep-Sea Animals, pp. 128-136. Link do paper
  13. Swann et al. (2020). Cryptopsaras couesii, Photocorynus spiniceps e  Haplophryne mollis. Science, Vol 369, Issue 6511, pp. 1608-1615. https://doi.org/10.1126/science.aaz9445
  14. Isakov, N. (2022). Histocompatibility and Reproduction: Lessons from the Anglerfish. Life 12(1), 113. https://doi.org/10.3390/life12010113
  15. Browntein et al. (2024). Synergistic innovations enabled the radiation of anglerfishes in the deep open ocean. Current Biology, Volume 34, Issue 11, p2541-2550.e4. https://doi.org/10.1016/j.cub.2024.04.066
  16. Herring PJ. (2007). REVIEW. Sex with the lights on? A review of bioluminescent sexual dimorphism in the sea. Journal of the Marine Biological Association of the United Kingdom, 87(4):829-842. https://doi.org/10.1017/S0025315407056433
  17. Mincarone et al. (2021). Deep-sea anglerfishes (Lophiiformes: Ceratioidei) from off northeastern Brazil, with remarks on the ceratioids reported from the Brazilian Exclusive Economic Zone. Neotropical Ichthyology, 19(02). https://doi.org/10.1590/1982-0224-2020-0151
  18. Stewart et al. (2023). Upside-down swimming: in situ observations of inverted orientation in Gigantactis, with a new depth record for the Ceratioidei. Journal of Fish Biology, Volume 104, Issue 3, Pages 887-891. https://doi.org/10.1111/jfb.15609