Insetos são crustáceos?
Em termos filogenéticos [cladística], podemos dizer que sim. Evidências fósseis, morfológicas e moleculares acumuladas nas últimas décadas colocam os insetos dentro do grupo dos crustáceos; especificamente, insetos evoluíram a partir de um antigo grupo de crustáceos - são derivados de crustáceos basais. Nesse sentido, uma barata possui relação evolutiva mais próxima com lagostas e caranguejos do que com aranhas e centopeias.
Os artrópodes são um filo de animais caracterizados por apêndices articulados, necessidade de troca do exoesqueleto através de um processo hormônio-mediado, medula nervosa ventral e efetiva adaptação e conquista de ecossistemas terrestres e aquáticos ao longo do percurso evolucionário. Historicamente e tradicionalmente, quatro principais grupos constituem esse filo:
- Chelicerata (ex.: escorpiões, aranhas, ofiúros e ácaros) (1);
- Crustacea (ex.: caranguejos, camarão, copépodes e lagostas);
- Myriapoda (centopeias e milípedes) (2);
- e Insecta (ex.: moscas, besouros e gafanhotos) (3).
Por muito tempo era pensado que os miriápodes era a atual linhagem mais próxima do ancestral comum em relação aos insetos, com base em traços comparativos como apêndices, sistema traqueal e terrestrialidade. Porém, evidência genética e molecular sendo acumulada nas últimas duas décadas deixou claro que insetos e outros hexápodes pertencem ao mesmo grupo dos crustáceos na árvore filogenética dos artrópodes. Até mesmo homologias na estrutura cerebral antes pensadas inexistentes entre crustáceos tradicionais e insetos têm sido reveladas (Ref.4). O primeiro importante estudo filogenômico a concluir que os insetos evoluíram de um antigo grupo de crustáceos (dentro do subfilo Crustacea) foi publicado em 2010 na Nature (Ref.2). Portanto, moscas, abelhas, mariposas, formigas e grilos todos tiveram origem a partir da linhagem associada aos atuais caranguejos, camarões e lagostas.
Leitura recomendada:
- (1) Estudo conclui que os Xifosuros são aracnídeos com 10 pernas e carapaça
- (2) Maior artrópode conhecido que já habitou a Terra era uma mistura entre centopeia e piolho-de-cobra, aponta estudo
- (3) Existem moscas sem asas?
Nesse contexto, um novo clado foi estabelecido nos últimos anos incluindo todos os insetos e crustáceos tradicionais: Pancrustacea ("Crustacea" + Hexapoda). Os Pan-crustáceos - grupo também referido como Tetraconata - compreendem quase 1,24 milhão de espécies descritas e mais de 80% da atual diversidade no reino animal, incluindo quase metade da biomassa de animais do planeta. Como regra geral, o plano corporal dos crustáceos é caracterizado por três tagmata (plural de tagma, segmento corporal especializado característico dos artrópodes): cabeça, tórax e abdômen. Cauda pode existir em parte dos grupos de crustáceos, mas não é universal. Além disso, em alguns grupos de crustáceos os segmentos da cabeça e do tronco anterior são fusionados em uma estrutura chamada de cefalotórax. A maioria dos crustáceos possuem um corpo relativamente mole protegido por um exoesqueleto, mas decápodes, como lagostas e caranguejos, possuem uma carapaça dura formada por carbonato de cálcio.
Leitura complementar:
Os pan-crustáceos também exibem uma dramática diversidade de morfologia dos apêndices, não apenas espécies mas também entre diferentes segmentos de um mesmo indivíduo. Esses animais possuem membros especialmente adaptados para andar, comer, limpar, nadar, acasalar, sentir o ambiente, caçar, raspar superfícies, planar e até mesmo fazer barulho. Um dos mais especializados membros entre todos os crustáceos é o apêndice raptorial (ou "martelo") das tamarutacas (Stomatopoda), o qual pode ser acionado tão rapidamente quanto 2 milissegundos para golpear ou capturar presas. A aceleração - e a força resultante - do golpe desse crustáceo pode até mesmo quebrar o vidro de aquários ou os ossos dos dedos de pescadores azarados (vídeo abaixo).
Leitura recomendada:
Estratégias reprodutivas, comportamento e embriogênese variam muito entre os pan-crustáceos. A maioria das espécies possuem sexos separados em indivíduos distintos (machos e fêmeas), mas alguns são hermafroditas (indivíduos com ambos os sexos) e alguns até mesmo se reproduzem pela via partenogênica. Aliás, essa grande diversidade sexual é espelhada nos cirrípedes (infraclasse Cirripedia), crustáceos que evoluíram os maiores pênis (relativo ao tamanho corporal) no reino animal, permitindo que indivíduos sésseis (imóveis) interajam com outros potenciais parceiros sexuais a uma distância de vários centímetros (Fig.7-8). E em termos comportamentais, eussocialidade não é restrita aos insetos: pelo menos um grupo de crustáceos marinhos fora do clado Hexapoda também evoluiu essa organização social, especificamente o gênero Synalpheus (Fig.9).
Registro fóssil aponta que os crustáceos já eram bem diversificados no período Cambriano, há mais de 500 milhões de anos (Ref.1). Avanço dos hexápodes para os ambientes terrestres a partir de crustáceos marinhos provavelmente ocorreu no final do Cambriano até o início do Ordoviciano, com divergência evolutiva entre Remipedia e Hexapoda ocorrendo há cerca de 519 milhões de anos seguida por diversificação dos primeiros hexápodes há 482 milhões de anos (Ref.13).
A aquisição de asas nos hexápodes é considerada uma das maiores transições na evolução animal, permitindo que os insetos se tornassem o primeiro clado a tomar controle dos céus e engatilhando uma massiva radiação evolutiva desde então. A asa dos insetos é pensada de ter evoluído em torno do período Devoniano. Estudos nos últimos anos têm revelado promissores genes e estruturas homólogas (ex.: tergum lateral) em crustáceos aquáticos fortemente ligados ao desenvolvimento de asas (Ref.15).
E por que insetos são tão raros em ambientes marinhos?
Apesar da origem a partir de ancestrais marinhos e enorme diversidade, insetos são relativamente raros nos mares e tipicamente se limitam à superfície dos oceanos. Entre os poucos grupos de insetos habitando os mares, podemos citar os mosquitos marinhos, pertencentes à subfamília Chironominae (Diptera: Chironomidae), que se adaptaram às águas marinhas (Fig.8). Porém, enquanto o desenvolvimento e crescimento dos mosquitos marinhos ocorre sob a água marinha, com as pupas flutuando na água pouco antes da eclosão, os adultos morrem dentro de horas - período limitado gasto para reprodução (acasalamento e deposição de ovos) - e esse animais não possuem adaptação marinha para viver além da superfície oceânica. Nesse sentido, é argumentado que os piolhos-de-foca, parasitas da família Echinophthiriidae, são os únicos verdadeiros insetos marinhos devido ao fato de sobreviverem no mar profundo (até 2000 metros de profundidade), com um sistema de troca gasosa através da fina cutícula sobre a superfície corporal e não como parte do sistema traqueal - apesar da reprodução e transmissão desses parasitas somente ocorrer quando seus hospedeiros estão fora da água (Fig.9).
Tanto crustáceos tradicionais quanto insetos compartilham um importante traço: exoesqueleto consistindo de uma camada cerosa e de uma cutícula dura [epicutícula + procutícula]. Durante a evolução e adaptação dos insetos em ambientes terrestres, esses artrópodes evoluíram um gene único que cria uma enzima chamada de oxidase-2 multi-cobre (MCO2) que atua endurecendo a cutícula através de oxigênio molecular (2). O gene MCO2 catalisa uma reação onde O2 oxida compostos chamados de catecolaminas na cutícula, transformando-os em agentes que interligam e endurecem a superfície. Isso entra em contraste com os crustáceos marinhos que endurecem e estabilizam a cutícula usando íons cálcio (Ca2+) extraídos da água do mar, acumulados nessa estrutura como carbonato de cálcio ou fosfato de cálcio (Fig.11).
Devido à escassez de O2 nas águas marinhas, este ambiente teria se tornado hostil para insetos e, somando o fato da grande abundância de organismos bem adaptados ao mar, isso potencialmente explica por que poucos insetos retornaram ao ambiente marinho (Ref.20). Por outro lado, a distinta estrutura cuticular dos insetos permitiu que esses animais reduzissem significativamente a densidade corporal, e isso pode ter atuado de forma decisiva para a evolução de modos mais rápidos, eficientes e versáteis de locomoção, incluindo em especial o voo. Cutículas de insetos possuem densidade de 1-1,3 g/cm3, enquanto cutículas calcificadas de crustáceos marinhos podem alcançar densidade de 2,9 g/cm3.
Crustáceos e "Polinização" Marinha
Diversos insetos são extremamente importantes na polinização de plantas terrestre, especialmente angiospermas (plantas com flores). Porém, plantas não são os únicos organismos que dependem de "polinização" para a reprodução e insetos não parecem ser os únicos crustáceos "polinizadores". Em um estudo de 2022, publicado na Science (Ref.24), pesquisadores mostraram que algas vermelhas da espécie Gracilaria gracilis usam o crustáceo isópode Idotea balthica (Fig.12) para transferir seus gametas masculinos (espermácias), equivalente à polinização de plantas por animais. O vídeo abaixo traz um experimento demonstrando como ocorre o transporte de gametas intermediado pelos crustáceos.
Na presença dos crustáceos, pelo menos em ambiente experimental (vídeo), sucesso de fertilização nas algas vermelhas aumenta dramaticamente, em cerca de 20 vezes, comparado com um ambiente sem os crustáceos. O corpo dos crustáceos interagindo com as algas vermelhas fica coberto de espermácias, em especial nas cerdas dos pereópodes.
O transporte de gametas por crustáceos pode ser um mecanismo importante de reprodução para a G. gracilis (Florideophyceae), já que espermácias dessa espécie e de outras rodófitas não possuem flagelo e - sem um animal - dependem de correntes na água alcançar os gametas femininos, frequentemente distantes. Mais de 75% das espécies de rodófitas são dioicas - ou seja, as estruturas femininas e masculinas estão presentes em diferentes indivíduos. Soma-se a isso a vida curta dessas espermácias.
A descoberta sugere que fertilização mediada por animais pode ter evoluído de forma independente nos ambientes terrestre e marinho, com a possibilidade da emergência de fertilização intermediada por animais no mar antes mesmo da emergência das plantas terrestres. A classe Florideophyceae possui origem estimada entre 817 milhões e 1049 milhões de anos atrás, sugerindo possível parceria com animais emergindo há ~650 milhões de anos.
> As duas espécies (I. balthica e G. gracilis) parecem manter uma relação mutualística. O crustáceo se alimenta de diátomos epifíticos aderidos à superfície do talo da alga vermelha e fica protegido contra predadores. Já a alga vermelha é beneficiada pela limpeza e "polinização".
> Polinização por animais no mar é realizada também nas plantas (angiospermas marinhas) da espécie Thalassia testudinum, com invertebrados marinhos carregando e transportando grãos de pólen de flores machos para flores fêmeas. Ref.24
> Contrário à crença comum, polinização em plantas terrestres intermediada por animais não é restrita às angiospermas e gimnospermas. Transporte de gametas masculinos por animais tem sido demonstrado também em musgos. Ref.24
> O filo Rhodophyta ("algas vermelhas") é constituído por organismos fotossintéticos eucarióticos que variam de espécies unicelulares até multicelulares com poucos micrômetros até vários centímetros de comprimento. Os rodófitas compreendem ~7500 espécies descritas que habitam primariamente ambientes marinhos. Com emergência estimada há 1,3-0,9 bilhão de anos, é possível que os rodófitas representem os primeiros eucariotas que evoluíram multicelularidade complexa. Formam uma das três principais linhagens do supergrupo Archaeplastida, cujos membros (ex.: plantas e algas) tiveram origem de eventos endossimbióticos que resultaram na evolução dos plastídios. Ref.25
REFERÊNCIAS
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