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Por que muitas pessoas sentem um sabor ou cheiro ruim de sabão ao comer coentro?


           O coentro é uma hortaliça da espécie Coriandrum sativum muito usada como tempero ao redor do mundo, porém com um efeito gastronômico polarizante: enquanto muitas pessoas adoram o sabor associado ao coentro, outras pessoas detestam consumi-lo. Existem inclusive comunidades na internet de "ódio" ao coentro. Nesse último caso, é reportado comumente um sabor de sabão, pungente ou mesmo metálico associado ao coentro. E esse fenômeno não é apenas uma questão cultural ou de adaptação alimentar; existem fatores genéticos associados à repulsa ao coentro, um deles ligado aos receptores olfativos.

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          Acompanhando a humanidade há milênios, o coentro é uma hortaliça anual da família Apiaceae. Com origem na costa do Mediterrâneo e na Ásia Central, hoje o coentro é cultivado em várias partes do mundo, em especial na China e na Índia - aliás, os Indianos são atualmente os maiores produtores mundiais dessa planta. O cultivo da espécie é fomentado pelo uso medicinal e na gastronomia, e quase todas as partes do coentro, como folhas, raízes e frutos, possuem atividade biológica, incluindo antioxidante, antimicrobiana, anti-helmíntica e antimutagênica. Na culinária, substâncias voláteis liberadas pelas folhas tornam o alimento temperado mais apetitoso para várias pessoas. Aqui no Brasil, é uma hortaliça amplamente consumida como condimento, e possui importante valor econômico, especialmente para a horticultura do Norte e Nordeste do país (Ref.1-2). Mas o cheiro e o sabor do coentro têm inspirado amor e ódio ao longo da história. Famosamente, John Gerad, um botânico Inglês Renascentista, caracterizou o coentro como uma "erva muito fedorenta" com folhas de "qualidade venenosa" (Ref.3).


Figura 1. O Coriandrum sativum L. é uma hortaliça herbácea que cresce até a altura de ~50 cm, com folhas de formas diversas. As flores, brancas ou levemente rosadas, são seguradas em delicadas umbelas. Existem duas variedades da espécie: vulgare e microcarpum. A vulgare é uma planta maior e com maiores folhas e frutos do que a microcarpum. As folhas, sementes, frutos e raízes do coentro são comestíveis e ricos em nutrientes. As folhas e raízes são amplamente usadas para sopas e pratos frios na culinária Asiática, enquanto os frutos ou semente e raízes são geralmente usados para o cozimento de carne. As sementes secas são amplamente usadas como especiaria na região do Mediterrâneo e da Índia. Ref.4-6

           Aqueles que gostam de coentro descrevem o sabor da folha como fresco, fragrante ou agradavelmente cítrico, enquanto aqueles que odeiam descrevem o sabor como ensaboado, mofado, terroso ou, historicamente, como um cheiro fétido de percevejo (!). A prevalência da repulsa ao coentro, segundo um estudo publicado em 2012 no periódico Flavour (Ref.7), varia significativamente entre grupos etno-culturais. Após análise de 1639 pessoas no Canadá entre as idades de 20 e 29 anos, os pesquisadores encontraram que 21% dos indivíduos do Leste Asiático, 17% dos "Caucasianos", 14% daqueles de descendência Africana, 7% dos Sul Asiáticos, 4% dos Hispânicos e 3% daqueles do Oriente Médio rejeitavam o sabor de coentro.

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(!) É curioso apontar aqui que essa descrição comum de "sabor de sabão" parece ser recente na história. Uma das primeiras menções conhecidas do "sabor de sabão" descrito para as folhas de coentro vem da famosa e altamente respeitada cozinheira Norte-Americana e autora de livros culinários Julia Child (1912-2004). Menções históricas mais antigas de repulsa ao coentro tipicamente descrevem o cheiro dessa erva como fétido e similar àquele de percevejos, em especial de insetos do gênero Cimex ("percevejos de cama"). Existe a hipótese de que o cheiro de sabão e detergentes comumente encontrados hoje no ambiente doméstico não era tão bem conhecido ou prevalente entre humanos antes da Indústria Química no século XX, o oposto ocorrendo para percevejos infestando as moradias (Ref.3). Aliás, ainda hoje é comum as pessoas reportarem que o coentro evoca o cheiro de percevejos (ex.: "maria-fedida", um percevejo da espécie Nezara viridula).

> Importante realçar que sabor é distinto de gosto em termos científicos. Sabor envolve tanto o paladar quanto o olfato na percepção do alimento, enquanto o gosto faz referência específica às sensações associadas aos receptores gustativos (amargo, doce, salgado, azedo e umami)*.

*Existem outros gostos propostos - e alguns com forte evidência de suporte - para o paladar humano além dos cinco mencionados. Sugestão de leitura: Temos um "mapa de gostos" na língua?

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          Vários fatores influenciam preferências por alimentos, como fatores genéticos interagindo com substâncias gustativas e/ou olfativas diversas e fatores sócio-culturais. Podemos citar o caso dos insetos, tipicamente tratados com repulsa no Ocidente mas amplamente considerados iguarias no Oriente (1). Além disso, várias variantes em genes de receptores gustativos têm sido ligadas a variações de preferência alimentar (Ref.8). No começo deste século, um estudo observacional conduzido pelo neurocientista comportamental Charles Wysocki e analisando centenas de gêmeos, encontrou a primeira evidência de que a atração e a aversão ao coentro possuem um componente genético (Ref.9). Wysocki encontrou que ~80% dos gêmeos idênticos (monozigóticos) compartilhavam a mesma preferência pela hortaliça, enquanto gêmeos dizigóticos (que compartilham apenas ~metade do genoma) concordavam com a preferência em apenas ~50% dos casos (2).

Leitura recomendada:


           Em 2011, a cientista de nutrição Lilli Mauer, como parte da sua tese de mestrado na Universidade de Toronto, Canadá, identificou duas variantes (polimorfismos) - uma no gene do receptor olfativo OR4N5 e outra no gene do receptor gustativo TAS2R1 (ligado ao gosto amargo) - associadas à preferência por coentro em um um grupo de >500 pessoas de descendência Europeia.   

          Em 2012, um estudo de associação genômica ampla, analisando 14604 pessoas de ancestralidade Europeia e replicado em um conjunto distinto de 11851 indivíduos que reportaram se gostavam ou não das folhas frescas de coentro, revelou uma mutação - especificamente um polimorfismo de nucleotídeo único (SNP) - significativamente associado com a detecção do "sabor de sabão" do coentro (Ref.10). 

            A mutação revelada (rs72921001) estava presente próximo de um grupo de oito genes de receptores olfativos no cromossomo 11. Nesse local genômico, o gene do receptor olfativo ORGA2 exibe alta especificidade de ligação para vários dos aldeídos que dão ao coentro seu característico cheiro e, portanto, é o mais forte candidato para detecção do odor dessa hortaliça. De fato, o aroma ensaboado ou pungente do coentro têm sido historicamente e amplamente atribuído a vários aldeídos voláteis presentes nas folhas, em particular (E)-2-alquenais e n-aldeídos. Por outro lado, a variante genética em questão mostrou também ter aparente baixa hereditariedade.

           E um estudo genômico também de 2012, analisando 572 pessoas com idades variando de 21 a 82 anos e incluindo 286 pares de gêmeos, encontrou uma associação entre a preferência por coentro e variantes em três genes de receptores gustativos (TAS2R50, TRPA1 e GNAT3), dois deles associados ao gosto amargo (Ref.11).

          Em outras palavras, as evidências científicas acumuladas apontam que a aversão ao cheiro e sabor de coentro possui uma base parcialmente genética. Importantes fatores além da genética continuam ainda pouco esclarecidos.

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          Interessante também apontar que um "sabor de sabão" tem sido associado a outros alimentos e bebidas além do coentro, e alguns tipos de queijo têm sido definidos por muitas pessoas como tendo "um gosto similar a detergente" (Ref.12). Aliás, é reportado que o principal fator de aversão ao queijo Gorgonzola é o sabor de sabão frequentemente percebido, com variantes em quatro genes (SYT9, PDE4B, AVL9 e HTR1B) e uma SNP próxima do gene HTR1B recentemente associadas a essa percepção negativa (Ref.12).


REFERÊNCIAS

  1. Silva et al. (2012). Vigor de sementes de coentro (Coriandrum sativum L.) provenientes de sistemas orgânico e convencional. Revista Brasileira de Plantas Medicinais. https://doi.org/10.1590/S1516-05722012000500012
  2. https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BRJD/article/view/19119/15355
  3. Spence, C. (2023). Coriander (cilantro): A most divisive herb. International Journal of Gastronomy and Food Science, Volume 33, 100779. https://doi.org/10.1016/j.ijgfs.2023.100779
  4. https://ift.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/1750-3841.16085
  5. Wei et al. (2019). Phytochemical and Bioactive Profile of Coriandrum sativum L. Food Chemistry. https://doi.org/10.1016/j.foodchem.2019.01.171
  6. Ashraf et al. (2020). Cold pressed coriander (Coriandrum sativum L.) seed oil. Cold Pressed Oils, 345–356. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-818188-1.00031-1
  7. Mauer & El-Sohemy (2012). Prevalence of cilantro (Coriandrum sativum) disliking among different ethnocultural groups. Flavour 1, 8. https://doi.org/10.1186/2044-7248-1-8
  8. https://www.nature.com/articles/nature.2012.11398 
  9. Alissa et al. (2020). Genetic Differences in Taste Receptors: Implications for the Food Industry. Annual Review of Food Science and Technology, Vol. 11:183-204. https://doi.org/10.1146/annurev-food-032519-051653
  10. Eriksson et al. (2012). A genetic variant near olfactory receptor genes influences cilantro preference. Flavour 1, 22. https://doi.org/10.1186/2044-7248-1-22
  11. Knaapila et al. (2012). Genetic Analysis of Chemosensory Traits in Human Twins, Chemical Senses, Volume 37, Issue 9, Pages 869–881. https://doi.org/10.1093/chemse/bjs070
  12. Torri et al. (2022). Genetic variations associated with the soapy flavor perception in Gorgonzola PDO cheese. Food Quality and Preference, Volume 99, 104569. https://doi.org/10.1016/j.foodqual.2022.104569