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Afinal, o que é uma "bactéria comedora de carne"?

Figura 1. Micrografia de escaneamento eletrônico (SEM) revelando um agrupamento de bactérias (rosa) da espécie Streptococcus pyogenes. Essa bactéria é responsável por até 24 mil casos de severas infecções invasivas nos EUA, incluindo fasciíte necrosante, e até 1900 mortes anualmente. Ref.1

 
             Um homem de 35 anos de idade apresentou-se ao departamento de emergência de um hospital na Arábia Saudita com inchaço bilateral nas extremidades inferiores durando 2 semanas,  para o qual ele tinha se submetido a um procedimento de ventosaterapia molhada (1) sete dias antes da apresentação hospitalar; subsequente a esse procedimento, o paciente desenvolveu severa descamação cutânea, vermelhidão e dor nas extremidades inferiores, além de piora do inchaço. Previamente ao início dos sintomas, o paciente exibia boa saúde. Uma revisão sistemática do paciente revelou que ele tinha um histórico de calafrios e suores noturnos que tiveram início com os sintomas. O paciente negou qualquer outra reclamação, e sua família também negou qualquer histórico de doenças psiquiátricas, fumo ou abuso de drogas. Além disso, ele era um ocupado professor universitário, solteiro e vivia sozinho.

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(1) Ventosaterapia é uma medicina alternativa onde são usados copos de sucção sobre a pele. Na modalidade 'molhada', furos são feitos na pele para a drenagem de sangue. Apesar de aparentemente raras, existem riscos de sérias complicações associadas a essa terapia, incluindo infecções. Para mais informações: Ventosaterapia possui eficácia comprovada?

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             O paciente estava febril (39°C), pressão sanguínea de 100/60 mmHg, IMC de 18 kg/m2, e saturação de oxigênio de 97% no ar ambiente. Exame físico inicial revelou inchaço nos membros inferiores e bolhas junto com edema pontuado e descamação da pele (Fig.1-2). Os membros inferiores estavam extremamente dolorosos à palpitação, e vários testes de movimentação não puderam ser feitos devido à dor severa. Culturas laboratoriais feitas a partir de amostras do sangue e das feridas deram positivo para espécies bacterianas do gênero Pseudomonas. Com base na apresentação clínica, exames médicos (medições de pulso, angiografia CT, etc.)  e resultados laboratoriais, um quadro bilateral de fasciíte necrosante nas extremidades inferiores foi confirmado.

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(Figuras 1-6) Para as fotos do progressivo quadro do paciente [estado das pernas], acesse aqui.

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              Com base no quadro clínico do paciente, o departamento de cirurgia ortopédica propôs ou uma amputação acima do joelho ou desbridamento [remoção de tecido necrosado] agressivo. Porém, o paciente recusou ambas as intervenções propostas, mesmo sob persistente argumentação contrária dos médicos de diferentes setores cirúrgicos no hospital. Os departamentos legal e psiquiátrico do hospital foram consultados, mas ambos concluíram que o paciente era competente o suficiente para fazer suas próprias decisões. O paciente continuou recusando qualquer forma de intervenção cirúrgica, incluindo irrigação e desbridamento. Nesse sentido, o paciente foi colocado sob terapia com antibióticos (vancomicina e meropenem) cobrindo Staphylococcus aureus meticilina-resistente e Pseudomonas.

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             Dentro da semana seguinte de estadia hospitalar, o paciente desenvolveu instabilidade hemodinâmica e foi entubado e mecanicamente ventilado na unidade de tratamento intensivo (UTI), e seus membros inferiores adquiriram uma terrível aparência (Fig.3-4). Duas semanas mais tarde, o paciente foi extubado e sua condição melhorou, e um mês mais tarde, os exames laboratoriais melhoraram e sua dor havia sido aliviada. Nesse contexto e considerando que todas as opções terapêuticas haviam sido exauridas, a decisão de liberar o paciente foi tomada. Na ocasião da liberação hospitalar, o paciente havia perdido toda a sensação e função nos membros inferiores, além de ter desenvolvido várias perdas de tecido mole (Fig.5-6). Os médicos, mais uma vez, tentaram convencer o paciente a ser submetido a um desbridamento. Porém, o paciente novamente recusou essa opção por causa da possibilidade de perda dos membros.

             No dia da liberação hospitalar, o paciente desenvolveu dificuldade respiratória e hipoxia. Um escaneamento via tomografia computacional (CT) foi realizado com urgência, revelando um massivo embolismo pulmonar. O quadro eventualmente levou à morte do paciente, apesar de todas as medidas de ressuscitamento empregadas.

             O caso foi descrito e reportado no periódico Cureus (Ref.2).


   FASCIÍTE NECROSANTE

           Frequentemente na mídia popular notícias são publicadas com impactantes manchetes trazendo afirmações do tipo "Mulher teve membros amputados após ser infectada por uma bactéria comedora de carne". Apesar do termo "bactéria comedora de carne" (flesh-eating bacteria, no inglês) sugerir que existe uma espécie específica de bactéria que sai devorando a carne humana como se fosse um organismo carnívoro e especializado em comer carne, esse termo é apenas popular e faz referência ao sério quadro patológico de fasciíte necrosante, e essa qual, por sua vez, é um tipo de infecção necrosante de tecidos moles. 

            As infecções necrosantes de tecidos moles (INTMs) são infecções bacterianas raras mas com rápida progressão que podem destruir a epiderme, derme, tecido subcutâneo, fáscia e músculos. Pacientes com certas comorbidades como diabetes estão em maior risco de serem afetados (1). Descritas desde pelo menos a Antiguidade por Hipócrates, no século V a.C., as INTMs continuam associadas com significativa mortalidade (25% a 35%), apesar dos avanços terapêuticos e maior conscientização do público. Pronto reconhecimento de sinais e sintomas, testes diagnósticos específicos e urgente tratamento são cruciais para evitar sérias complicações, incluindo sepse, amputação e morte. As INTMs são relativamente raras - sendo estimados 0,3 a 15 casos a cada 100 mil pessoas, apesar de possível subreporte devido à dificuldade de diagnóstico (Ref.4) -, e incluem formas necrosantes de fasciíte, miosite e celulite.

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(1) Certos fatores colocam os pacientes sob maior risco de INTMs, incluindo qualquer ruptura na pele ou em mucosas e vários procedimentos cirúrgicos. Pacientes com comorbidades como imunossupressão, câncer, doença vascular, diabetes, alcoolismo, doença hepática, doença renal e obesidade estão sob risco aumentado de INTMs com progressão para sepse severa e choque séptico. Mas mesmo pacientes previamente saudáveis podem desenvolver uma INTM.

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              Fasciíte necrosante (FN) é uma infecção bacteriana destrutiva e rapidamente progressiva do tecido subcutâneo e fáscia superficial, resultando em desvascularização e necrose dos tecidos associados. A síndrome clínica conhecida atualmente como FN, descrita no final do século XVIII, era tida como uma das mais terríveis e fatais doenças que acometiam os militares - especialmente considerando o contexto pré-antibiótico. Durante o século XIX, a patologia ficou conhecida como úlcera maligna, fagedênica e, eventualmente, gangrena hospitalar. Nos EUA, os primeiros casos de gangrena hospitalar foram descritos durante a Guerra Civil Americana. Na época, o único tratamento disponível era a amputação da extremidade acometida, procedimento esse associado ao índice de mortalidade global de ~45% (Ref.4).

Figura 2. Anatomia e infecções da pele. Ref.5

> Leitura recomendada: Qual é a diferença entre foliculite e pelo encravado?

              Em 1924, Meleney descreveu uma doença ulcerosa, progressiva, chamada "gangrena estreptocócica hemolítica aguda", intensamente dolorosa, produzida por uma associação sinergística de estreptococos e estafilococos. Essa entidade apresentava mortalidade em torno de 20% e, em 1952, foi finalmente denominada "fasciíte necrosante" pelo Dr. B. Wilson (Ref.6). Evidências apontam que as bactérias Streptococcus do grupo A são a causa mais comum de FN (Ref.7).

              Na década de 1980 e início da década de 90, uma grande quantidade de artigos na literatura médica sugeria que se estava diante do ressurgimento das infecções severas por Streptococcus do grupo A. Ao que parece, houve exagero e sensacionalismo sobre a sugestão, culminando então no surgimento na mídia do termo "bactérias comedoras de carne" (flesh-eating bacteria). Tais infecções não são descritas de maneira uniforme, e, portanto, as estatísticas estão longe de ser definitivas, sendo os relatos muitas vezes anedóticos.

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          Existem dois tipos gerais de FN, caracterizados pela bactéria (ou bactérias) causal que iniciou a cascata invasiva:

- Polimicrobiana (Tipo I): É causada pela infecção por múltiplas bactérias. Esse tipo de infecção é causada por bactérias tanto aeróbicas quanto anaeróbicas. O complexo perfil microbiológico das bactérias invasoras levam à infiltração gasosa de tecido subcutâneo similar à gangrena gasosa. Responde pela maioria dos casos reportados de FN e é mais prevalente em adultos com idade mais avançada e com doenças crônicas.

- Monomicrobiana (Tipo II): É mais comumente associado com bactérias Gram-positivas como o Streptococcus do grupo A e Staphylococcus aureus resistente a meticilina. Endotoxinas liberadas por essas bactérias são responsáveis por parte da apresentação clínica, incluindo síndrome do choque tóxico. Esse tipo não está associado com um grupo específico de idade. Alguns pacientes não apresentam comorbidades ou um portal de entrada óbvio predispondo a severa infecção.

           Várias outras espécies de bactérias têm sido implicadas na FN, incluindo Pseudomonas, Klebsiella, Clostridium, Aeromonas, e Vibrio vulnificus. Esses agentes infecciosos, enquanto raros, são mais virulentos e produzem manifestações clínicas mais severas - e têm sido associados a um proposto FN Tipo III (Ref.3). 

            A patofisiologia característica de ambos os tipos de FN inclui dano difuso no tecido superficial se estendendo até o plano muscular profundo e fáscia, com certos aspectos únicos dependendo dos agentes infecciosos causais. Devido à atuação de múltiplas bactérias, o Tipo I é provável de ser especialmente severo em indivíduos idosos e com outras comorbidades. A presença concomitante de bactérias aeróbicas e anaeróbicas causa extensiva necrose tecidual e comprometimento hemodinâmico. Algumas bactérias, como espécies de Clostridium, produzem toxinas alfas que agravam a degradação tecidual. Não é incomum as bactérias no Tipo I exibirem efeitos sinérgicos, produzindo mais danos profundos locais e sistêmicos.

             O Tipo II associado com o Streptococcus do grupo A causa danos teciduais ao liberar exotoxinas que frequentemente iniciam uma complexa cascata de respostas imune-relacionadas incluindo células-T citotóxicas, liberação de citocinas e síndrome do choque tóxico. Dano microvascular ou trombose pode levar a isquemia nos tecidos e subsequente necrose.

           A bactéria (ou bactérias) causadora de NF mais comumente entra no corpo através de ruptura na pele. Diferentes rupturas nesse sentido podem incluir (Ref.7):

- cortes e arranhões;

- queimaduras;

- mordidas ou picadas de insetos;

- feridas por punção (incluindo aquelas devido ao uso intravenoso de drogas);

- feridas cirúrgicas. 

            No entanto, pessoas também podem desenvolver FN após traumas de impacto onde não existe ruptura da pele. Aproximadamente 11-20% dos casos são idiopáticos (sem causa de gatilho conhecida) (Ref.10).

              Muitos pacientes com NF se apresentam no departamento de emergência hospitalar exibindo sinais e sintomas de infecção. E a infecção frequentemente se espalha muito rápido. Sintomas iniciais podem incluir (Ref.7):

- uma área vermelha, quente ou inchada na pele que se espalha rápido;

- dor severa, incluindo dor além da área da pele que está vermelha, quente ou inchada;

- febre;  

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ATENÇÃO: Busque atendimento médico urgente caso esses sintomas iniciais emerjam após uma lesão ou cirurgia, especialmente no contexto de outros fatores de risco (ex.: diabetes, câncer, etc.). Mesmo que outras doenças de menor preocupação possam causar esses mesmos sintomas, não se deve atrasar cuidados médicos adequados. Tratamento precoce é crítico. No início de uma NF, o tecido externo pode parecer normal ou com leve inflamação cutânea, e mesmo em ambiente hospitalar o correto diagnóstico da condição pode ser difícil - reforçando a busca de atendimento médico o mais rápido possível. Ref.11

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           Sintomas tardios podem incluir:

- úlceras, bolhas ou manchas pretas na pele;

- mudanças na cor da pele;

- pus ou escorrimento a partir da área infectada;

- tontura;

- fatiga (cansaço);

- diarreia ou náusea.

           Todas as partes do corpo pode ser afetadas pela NF - inclusive a estrutura ocular (Ref.12) -, mas as extremidades são os locais mais frequentes da infecção, representando até 45-74% de todos os casos (Ref.13). Em cerca de 2 a cada 3 casos, as extremidades inferiores (pernas, pés) são afetadas, enquanto envolvimento dos membros superiores são menos comuns (aproximadamente 6-27% dos casos) (Ref.10). 

          Na tentativa de parar a infecção, médicos fornecem antibióticos através da via intravenosa (IV). No entanto, às vezes, antibióticos não conseguem alcançar todas as áreas infectadas porque a infecção bacteriana matou extensiva parte dos tecidos, reduzindo dramaticamente o fluxo sanguíneo. Quando isso ocorre, os médicos devem remover cirurgicamente o tecido morto (!). Como a FN pode se espalhar muito rapidamente, pacientes frequentemente precisam se submeter a uma pronta intervenção cirúrgica. Não é incomum para alguém com FN terminar precisando de múltiplas cirurgias. Em casos mais sérios, o paciente pode precisar de uma transfusão sanguínea. Redução da carga bacteriana e remoção de tecido necrosado são cruciais para dar ao sistema imune do paciente uma chance de lutar contra a infecção.

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(!) O desbridamento em feridas (também conhecido como raspagem) é um procedimento de remoção de tecido desvitalizado (ou necrosado), indicado quando existe qualquer tecido morto no leito da ferida (tornando necessária a raspagem da lesão para permitir o processo de cicatrização). Múltiplas sessões de desbridamento são tipicamente necessárias até o time cirúrgico ter certeza que todo o tecido necrosado foi removido, restando apenas tecido saudável. Amputação pode ser requerida para lidar com infecções em casos severos envolvendo as extremidades.

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          Sérias complicações são comuns, e a FN pode levar a sepse, choque e falha de órgãos. Pode também resultar em complicações de longo prazo devido a perda de membros ou cicatrizes severas resultantes da remoção cirúrgica de tecido infectado. Mesmo com tratamento adequado, até 20% dos casos de FN (1 em cada 5) acabam em óbito. E até 1 em cada 3 casos onde coexistem FN e síndrome do choque tóxico estreptocócico acabam em óbito. Em um estudo de revisão publicado em 2022 no periódico Hand (Ref.4), pesquisadores analisaram vários casos descritos na literatura acadêmica de FN afetando a mão, e encontraram uma taxa de amputação de 28% e uma taxa de mortalidade de 8%; necrose se estendendo mais proximamente em relação ao antebraço estava correlacionada com maior risco de amputação e de mortalidade. 

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          Não existem vacinas para prevenir FN ou infecção por Streptococcus do grupo A, mas existem medidas para reduzir o risco de infecções potencialmente causadoras de FN, incluindo: 

- lavar as mãos com frequência;

- limpar e cuidar adequadamente de feridas;

- evitar entrar em banheiras quentes, piscinas ou corpos naturais de água (ex.: lagos, rios, mares) caso tenha uma ferida aberta ou infecção de pele;

- buscar atendimento médico para o tratamento de feridas sérias ou profundas.

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ALERTA: NÃO coloque saliva sobre feridas. A limpeza de feridas deve ser feita com água e sabão. Entenda: Lamber a ferida realmente ajuda a curá-la?

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.cdc.gov/streplab/groupa-strep/index.html
  2. Alajmi et al. (March 22, 2021) Necrotizing Fasciitis Following Wet Cupping: A Case Report. Cureus 13(3): e14039. https://doi.org/10.7759/cureus.14039
  3. Chen et al. (2020). Necrotizing fasciitis: A comprehensive review. Nursing, 50(9): 34-40. https://doi.org/10.1097%2F01.NURSE.0000694752.85118.62
  4. Izelda et al. (2004). Fasciíte necrosante: revisão com enfoque nos aspectos dermatológicos. Anais Brasileiros de Dermatologia, 79(2). https://doi.org/10.1590/S0365-05962004000200010
  5. Smeets et al. (2007). Necrotizing Fasciitis: Case Report and Review of Literature. Acta Chirurgica Belgica, 107(1), 29–36. https://doi.org/10.1080/00015458.2007.11680007
  6. Weiss et al. (2011). Necrotizing Fasciitis: Review of the Literature and Case Report. Journal of Oral and Maxillofacial Surgery, 69(11), 2786–2794. https://doi.org/10.1016/j.joms.2010.11.043
  7. https://www.cdc.gov/groupastrep/diseases-public/necrotizing-fasciitis.html
  8. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9622582/
  9. https://sjtrem.biomedcentral.com/articles/10.1186/1757-7241-17-28
  10. Ditsios et al. (2022). Necrotizing Fasciitis of the Upper Extremity – A Review. Orthopedic Reviews, 14(3): 35320. https://doi.org/10.52965%2F001c.35320
  11. Marks et al. (2023). Ultrasound for the diagnosis of necrotizing fasciitis: A systematic review of the literature. The American Journal of Emergency Medicine, Volume 65, Pages 31-35. https://doi.org/10.1016/j.ajem.2022.12.037 
  12. Wladis, E. J. (2022). Periorbital necrotizing fasciitis. Survey of Ophthalmology, Volume 67, Issue 5, Pages 1547-1552. https://doi.org/10.1016/j.survophthal.2022.02.006
  13. https://www.liebertpub.com/doi/abs/10.1089/sur.2022.282
  14. Christopoulos et al. (2022). Necrotizing Fasciitis Originating in the Hand: A Systematic Review and Meta-Analysis. HAND, 0(0). https://doi.org/10.1177/15589447221141486