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Canibalismo entre louva-a-deus sempre ocorre durante o acasalamento?

Figura 1. Fêmea de louva-a-deus devorando um macho. 

- Atualizado no dia 12 de março de 2025 -

           Popularmente conhecidos como louva-a-deus, a ordem Mantodea (do grego mantis = profeta, referindo-se às pernas dianteiras posicionadas como se estivessem em oração) engloba mais 2500 espécies descritas, das quais cerca de 273 ocorrem no Brasil. Com provável origem no Jurássico Inferior, os louva-a-deuses pertencem à superordem Dictyoptera, a qual engloba também a ordem Blattodea (baratas) (Fig.3). Membros desse grupo predatório, incluindo predadores tanto de emboscada quanto de perseguição, ocupam diversos habitats distribuídos ao redor do globo, mas com o maior número de espécies concentrado nos trópicos (!). Nas espécies ainda vivas, esses insetos usam os notáveis, alongados e ágeis membros dianteiros para caça.

Figura 2. Em (A), fóssil de um antigo louva-a-deus datado em 110 milhões de anos atrás, encontrado na Formação Crato, no nordeste do Brasil. O fóssil pertence à espécie Santanmantis axelrodi. Em (B), versão colorida do olhos destacando os olhos (azul escuro), cápsula da cabeça (amarelo), pronoto (marrom), fêmur protorácico (laranja), tíbia protorácica (roxo), coxa mesotorácica (verde escuro), trocânter mesotorácico (índigo), fêmur mesotorácico (azul), tíbia mesotorácica (verde claro), espinhas (vermelha). (C) Detalhe do apêndice do segmento do tórax 2 (mesmo código de cores em B). Em (D), reconstrução artística da espécie com base no fóssil descrito. O S. axelrodi exibia espinhas nos dois primeiros pares de membros torácicos, apontando que usava ambos para caça, não apenas os primeiros pares como observado nos atuais louva-a-deuses. Os primeiros representantes da ordem Mantodea parecem ter emergido no Jurássico.  Ref.14

Figura 3. Relações filogenéticas simplificadas entre os insetos alados do grupo Polyneoptera. Mantodea é um grupo-irmão da ordem Blattodea (baratas tradicionais + cupins) e engloba 29 famílias ainda vivas e 3 famílias fósseis descritas. Mantidae é a maior família dessa ordem.

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          Os louva-a-deuses são encontrados principalmente na vegetação, mas como apresentam grande capacidade de camuflagem com folhas, galhos e flores, não são facilmente visualizados na natureza, característica vantajosa tanto para captura de presas quanto para evitar predação, especialmente por aves. Possuem também um sistema visual altamente especializado que permite detectar e rastrear presas com grande precisão, e seus grandes olhos compostos exibem um amplo campo de visão, permitem perceber profundidade e podem detectar cores e movimentação (Ref.21). São predadores de outros insetos e de aranhas (!), e o canibalismo é relativamente comum na maioria das espécies.

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          O canibalismo nesses insetos, apesar de ser popularmente associado ao acasalamento (fêmeas devorando machos), é frequentemente também observado entre ninfas e entre machos. E até machos podem raramente canibalizar fêmeas (Ref.18). O canibalismo pode ocorrer tanto em cópula quanto em não cópula; durante a cópula, existe evidência de que esse comportamento é mais frequente com fêmeas pouco alimentadas do que aquelas bem alimentadas (Ref.3-4), e machos adotam certas estratégias para evitar serem devorados na cópula, como se aproximar da fêmea por trás (Ref.5). Na espécie Miomantis caffra, em mais de 50% das interações sexuais, as fêmeas atacam e consomem os machos exclusivamente sem acasalamento - um fenômeno conhecido como canibalismo não-copulatório; em resposta, os machos evoluíram uma contra-estratégia para evitar o canibalismo e conseguir efetiva cópula: atacam violentamente as fêmeas antes da tentativa de acasalamento, às vezes resultando em perfuração do abdômen da fêmea (Ref.6-7) (Fig.5). Aliás, ninfas de M. caffra não parecem ser capazes de discriminar outros membros da mesma espécie ou parentes, e atacam qualquer potencial presa sem preferência, incluindo irmãos (Ref.17).

Figura 4. Louva-a-deuses emergindo da ooteca (cápsula onde ficam os ovos depositados pela fêmea). Às vezes, o canibalismo pode ocorrer pouco após o nascimento desses insetos. Dentro de poucas horas, os famintos filhotes podem devorar uns aos outros. Canibalismo entre ninfas é comumente observado no ambiente natural e em laboratório. Ref.16-17


Figura 5. Fêmea de M. caffra com uma cicatriz escura abdominal resultante de violenta interação com um macho durante a interação sexual. É incerto se existe algum benefício adaptativo no canibalismo pré-copulatório exibido por essa espécie. Referência: Burke & Holwell, 2022

           Porém, é um mito comum achar que o canibalismo durante a cópula é a regra ou algo necessário para a reprodução dos louva-a-deuses. A verdade é que comportamental canibal está longe da regra durante interações sexuais entre machos e fêmeas. Aliás, como mencionado, fêmeas podem devorar machos antes mesmo da cópula. E esse tipo de canibalismo não se limita apenas à cabeça do macho como popularmente descrito, embora possa ocorrer dessa forma. 

          O canibalismo sexual nos louva-a-deus (machos sendo devorados por fêmeas), de fato, parece aumentar a produção de ovos e contribuir para o desenvolvimento dos órgãos reprodutivos das fêmeas, apontando pressão seletiva favorecendo o comportamento canibal nesses insetos (Ref.19-20). Mas fêmeas não necessariamente produzem mais ovos quando se alimentam de machos em relação ao consumo de outras presas. O fato é que os machos podem ser presas mais fáceis de serem capturadas. Nos louva-a-deuses que exibem canibalismo sexual, até 28% das interações naturais entre machos e fêmeas terminam em morte do macho. Em populações da espécie Tenodera sinensis, machos respondem por até 63% da dieta de fêmeas adultas (Ref.19). Essa significativa taxa de mortalidade masculina no período de acasalamento é justificada pela massiva ooteca (cápsula de ovos) desenvolvida pelas fêmeas: até 30-50% da biomassa corporal, ou seja, um enorme investimento. 

           Além de ocasionais eventos de canibalismo, machos de louva-a-deus também fornecem nutrientes e investimento reprodutivo através do material ejaculado na cópula (Ref.19).

          É também curioso apontar que as fêmeas de louva-a-deus da espécie Pseudomantis albofimbriata, quando estão sob escassez de recursos alimentares, liberam uma quantidade maior de feromônios, atraindo bem mais machos do que o normal - mesmo sob baixa produção de ovos. As fêmeas parecem tratar os machos como presas fáceis para ganhar benefícios nutricionais e potencialmente produzir mais ovos (Ref.8). Aliás, essa espécie foi a primeira a fornecer evidência empírica de suporte para a Hipótese Femme Fatale - a qual descreve fêmeas que exploram machos como recurso alimentar através de armadilhas diversas. No vídeo abaixo, registro de uma fêmea de P. albofimbriata devorando um macho.

            

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> Canibalismo é comportamento muito comum em várias populações de animais, e engatilhado frequentemente como uma resposta à escassez de recursos nutricionais no ambiente. Louva-a-deus tendem a se transformar em vorazes canibais em resposta à fome e independentemente do acasalamento. É um importante mecanismo de autorregulação populacional visando aumentar as taxas de sobrevivência e reprodutivas (Ref.10).

(!) Importante apontar que louva-a-deuses em cativeiro são alimentados efetivamente com outras fontes alimentares não-carnívoras, como pólen e mel. E um estudo brasileiro publicado em 2021 descreveu a primeira observação de um louva-a-deus em ambiente selvagem se alimentando de látex secretado por uma árvore de mamão (Carica papaya), como mostrado na Fig.5. O evento ocorreu em uma região de Mata Atlântica do Rio de Janeiro. Isso sugere que os louva-a-deus não se alimentam exclusivamente de presas vivas no ambiente natural como tradicionalmente pensado. Ref.15

Figura 5. Louva-a-deus da espécie Stagmatoptera precaria se alimentando de látex.

(!) Apesar da dieta dos louvas-a-deus predominantemente ser representada por invertebrados, esses predadores também podem se alimentar, oportunisticamente, de pequenos vertebrados. Em um paper publicado em 2022 no periódico Ecology and Evolution (Ref.9), pesquisadores registraram dois desses raros eventos: fêmeas de louva-a-deus da espécie Mantis religiosa invadindo ninhos e se alimentando de filhotes de pássaros das espécies Cinnyris asiaticus e Galerida cristata (Fig.3).

Figura 4. Fêmea de louva-a-deus M. religiosa invadindo um ninho e predando um filhote de C. asiaticus recém eclodido de um ovo. O evento ocorreu na Província de Kerman, no sul do Irã. Referência: Panter et al., 2022 

> Notavelmente, louva-a-deus modernos possuem um órgão auditivo com uma única abertura ("ouvido ciclópico"). Esse traço parece ter emergido no início do Cretáceo, há ~119 milhões de anos e é ainda incerta sua função (proteção contra predadores). Ref.

Ma et al. (2023). Phylogenetic relationships and divergence dating of Mantodea using mitochondrial phylogenomics. Systematic Entomology, Volume 48, Issue 4, Pages 644-657. https://doi.org/10.1111/syen.12596

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.embrapa.br/cerrados/colecao-entomologica/mantodea
  2. Battiston, R. (2008). Mating behavior of the mantid Ameles decolor (Insecta, Mantodea): courtship and cannibalism. Journal of Orthoptera Research, 17(1):29-33. https://doi.org/10.1665/1082-6467(2008)17[29:MBOTMA]2.0.CO;2 
  3. https://resjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1365-2311.2010.01239.x
  4. Observations on the Life cycle, Mating and Cannibalism of Mantis religiosa religiosa Linnaeus, 1758 (Insecta: Mantodea: Mantidae). Raut GA and Gaikwad SM. Journal of Entomology and Zoology Studies 2016; 4(6): 478-482
  5. https://brill.com/view/journals/beh/136/2/article-p205_4.xml
  6. Burke & Holwell (2022). Costs and benefits of polyandry in a sexually cannibalistic mantis. Journal of Evolutionary Biology, Volume 36, Issue 2, Pages 412-423. https://doi.org/10.1111/jeb.14135
  7. Burke & Holwell (2023). "Should females cannibalize with or without mating in the facultatively parthenogenetic springbok mantis?" Animal Behaviour, Volume 197, Pages 113-121. https://doi.org/10.1016/j.anbehav.2023.01.007
  8. Barry, K. L. (2015). Sexual deception in a cannibalistic mating system? Testing the Femme Fatale hypothesis. Proceedings of the Royal Society B, Volume 282, Issue 1800. https://doi.org/10.1098/rspb.2014.1428 
  9. Panter et al. (2022). Opportunistic depredation of songbird nestlings by female praying mantids (Mantodea: Mantidae). Ecology and Evolution, Volume 12, Issue 12, e9643. https://doi.org/10.1002/ece3.9643
  10. Rosenheim & Schreiber (2022). Pathways to the density-dependent expression of cannibalism, and consequences for regulated population dynamics. Ecology, Volume 103, Issue 10, e3785. https://doi.org/10.1002/ecy.3785
  11. Svenson & Whiting (2009). Reconstructing the origins of praying mantises (Dictyoptera, Mantodea): the roles of Gondwanan vicariance and morphological convergence. Cladistics, Volume 25, Issue 5, Pages 468-514. https://doi.org/10.1111/j.1096-0031.2009.00263.x
  12. Liu et al. (2023). Exploring the Mitogenomes of Mantodea: New Insights from Structural Diversity and Higher-Level Phylogenomic Analyses. International Journal of Molecular Sciences, 24(13), 10570. https://doi.org/10.3390/ijms241310570
  13. Xu et al. (2021). Novel tRNA gene rearrangements in the mitochondrial genomes of praying mantises (Mantodea: Mantidae): Translocation, duplication and pseudogenization. International Journal of Biological Macromolecules, Volume 185, Pages 403-411. https://doi.org/10.1016/j.ijbiomac.2021.06.096
  14. Hörnig et al. (2017). An exceptionally preserved 110 million years old praying mantis provides new insights into the predatory behaviour of early mantodeans. PeerJ, 5:e3605. https://doi.org/10.7717/peerj.3605
  15. Lanna et al. (2021). First record of non-carnivore feeding behavior in a wild praying mantis (Mantodea: Mantidae). Entomological Communications, 3, ec03003. https://doi.org/10.37486/2675-1305.ec03003
  16. https://askentomologists.com/2015/03/23/mantids-and-cannibalism/
  17. Fea et al. (2014). Cannibalistic siblicide in praying mantis nymphs (Miomantis caffra). Journal of Ethology 32, 43–51. https://doi.org/10.1007/s10164-013-0391-z
  18. https://entomologytoday.org/2013/12/22/do-female-praying-mantises-always-eat-the-males/
  19. Brown & Barry (2016). Sexual cannibalism increases male material investment in offspring: quantifying terminal reproductive effort in a praying mantis. PRSB, Volume 283, Issue 1833. https://doi.org/10.1098/rspb.2016.0656
  20. O’Hara & Brown (2021). Sexual Cannibalism Increases Female Egg Production in the Chinese Praying Mantid (Tenodera sinensis). Journal of Insect Behaviour 34, 127–135. https://doi.org/10.1007/s10905-021-09776-y
  21. Yuan et al. (2023). The chromosome-level genome of Chinese praying mantis Tenodera sinensis (Mantodea: Mantidae) reveals its biology as a predator, GigaScience, Volume 12, giad090. https://doi.org/10.1093/gigascience/giad090