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Qual a causa da Hipercalcemia Tipo I?

           Uma paciente grávida de 23 anos de idade apresentou-se em um hospital com severa dor e com muito medo de perder o bebê. A dor era tão forte que as parteiras no hospital pensaram que ela estava entrando precocemente em trabalho de parto com apenas 23 semanas de gravidez. Porém, após exame com imagem de ressonância magnética (MRI), os médicos descobriram qual era o real problema: uma pedra no rim (cálculo renal). Questionada pelos médicos, ela reportou apenas que estava tomando suplementos vitamínicos, os quais incluíam vitamina D. Análise genética revelou mutação disfuncional no gene CYP24A1, confirmando o diagnóstico de hipercalcemia tipo 1. Nesse sentido, o súbito cálculo renal foi causado por um excesso de vitamina D circulante.

          Desde então, a paciente regularmente têm exibido a formação de cálculos renais e precisa de medicamentos para o controle de dor. Ela também precisa de uma operação a cada 6 meses para limpar o acúmulo de cálcio responsável pelo desenvolvimento das pedras nos rins. 

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          O caso foi mencionado em um recente estudo publicado no periódico Journal of Bone and Mineral Research (Ref.1).


   HIPERCALCEMIA TIPO I

          Nas décadas de 1930 e de 1940, uma onda de mortes de bebês foi testemunhada com espanto pelos médicos, após fortificação de alimentos como leite, pão, cereais e margarina com vitamina D como parte de uma estratégia para erradicar o raquitismo (amolecimento e enfraquecimento dos ossos em crianças, geralmente devido a uma quantidade inadequada de vitamina D). 

          No início do século XX, mais de 80% das crianças nas regiões industrializadas da Europa e da América do Norte eram afetadas pelo raquitismo, uma condição que deformava os ossos, prejudicava o crescimento e causava dor óssea. A descoberta que exposição da pele à luz solar prevenia raquitismo - devido à síntese endógena de vitamina D (1) - levou a grandes campanhas de fortificação de alimentos com vitamina D, erradicando a doença pela década de 1930. Porém, surtos de misteriosas intoxicações com vitamina D em bebês deflagrou banimentos da fortificação vitamínica em vários países Europeus na década de 1950, especialmente em relação aos laticínios. No Reino Unido, ao longo de 2 anos até julho de 1955 - seguindo a introdução de alimentos fortificados com vitamina D -, foram 204 casos reportados de inexplicável hipercalcemia infantil. A condição eventualmente recebeu o nome de hipercalcemia infantil tipo 1, ou HCIN1 (sigla em inglês)

(1) Leitura recomendadaCor da pele, Vitamina D, Ácido Fólico e Evolução

           Em 2011, cientistas finalmente encontraram a causa para os letais surtos de intoxicação de vitamina D. Algumas pessoas nascem com uma ou mais mutações associadas ao gene CYP24A1, significando que a vitamina D não pode ser metabolizada de forma adequada. Isso causa um acúmulo excessivo de cálcio no sangue, levando a cálculos e danos renais, os quais podem ser fatais em bebês. Essa era a razão do porquê alimentos fortificados com vitamina D na década de 1930 causavam séria intoxicação em algumas pessoas. Aliás, muitas pessoas hoje não sabem que possuem mutações no gene CYP24A1, só descobrindo o problema após anos de recorrentes cálculos renais e outros problemas. 

           A vitamina D atua de forma crucial em processos calciotrópicos, incluindo metabolismo ósseo e de cálcio, e pode ter importante impacto em diversos outros sistemas do corpo, incluindo na imunidade. A vitamina D é obtida tanto da dieta (ergocalciferol) ou na pele (colecalciferol) após conversão fotoquímica de 7-dehidrocolesterol. Vitamina D é transportada para o fígado onde é hidroxilada pela proteína citocrômica CYP2R1 para formar 25-hidróxivitamina D (25OHD). Outra hidroxilação no rim pela proteína citocrômica CYP27B1 gera o metabólito sistêmico ativo 1,25-dihidróxivitamina D [1,25(OH)2D] e a proteína citocrômica CYP24A1 converte o percursor 25OHD em 24,25-dihidróxivitamina D [24,25(OH)2D] essencial para a homeostase de cálcio. Finalmente, a proteína citocrômica CYP24A1 converte o precursor 25OHD em [24,25(OH)2D] e 1,25(OH)2D em 1,24,25-trihidróxivitamina D [1,24,25(OH)3D]. Tanto o 24,25(OH)2D quanto o 1,24,25(OH)3D são sujeitos a mais uma hidroxilação seguida por excreção biliar e urinária para prevenir toxicidade por vitamina D.

          O metabolismo vitamina D é essencialmente regulado pela atividade das proteínas CYP27B1 e CYP24A1, estas as quais por sua vez possuem a atividade controlada pelo [1,25(OH)2D], cálcio, hormônio paratireoide (PTH) e pelo fator de crescimento fibroblástico 23 (FGF23). 

          A condição patológica HCINF1 é caracterizada por toxicidade e/ou sensibilidade associada à vitamina D manifestando-se como hipercalcemia (excesso de cálcio no sangue), hipercalciúria e/ou nefrolitíase e causada por mutações de perda de função no gene CYP2A1 resultando especificamente em uma elevada concentração no sangue de 1,25(OH)2D. Porém, em cerca de 10% dos casos a causa é uma anormalidade na estrutura do gene CYP2A1 devido a variantes em sequências reguladoras desse gene, e não mutações na sequência codificante (Ref.1). Os sintomas no bebê afetado incluem vômito, falha de desenvolvimento, cólica e, em raros casos, morte. Em adultos (!), a apresentação inclui sintomas similares à gripe, hipercalciúria e formação de pedras renais. Em alguns pacientes do sexo feminino esses sintomas são engatilhados na gravidez, provavelmente devido ao consumo de suplementação alimentar com vitamina D.

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> A condição conhecida como hipercalcemia infantil tipo 2 (HCINF2) difere daquela do tipo 1 em relação ao gene alvo de mutações, no caso o gene SLC34A1 - responsável pela síntese de uma proteína transportadora de soluto - e ao sintoma extra de hipofosfatemia.

(!) A frequência cada vez maior da condição diagnosticada em adultos levanta a discussão na comunidade médica para a remoção do termo "infantil" associado à hipercalcemia tipo 1.

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          Suspeita de HCINF1 deve ser levantada em indivíduos com um histórico de hipercalcemia inexplicada, especialmente se apresentada desde a infância e acompanhando um histórico familiar em parentes de primeiro e/ou segundo graus, causando complicações como nefrocalcinose, pericardite e nefrolitíase cálcio-baseada. Tratamento da condição inclui:

- evitar qualquer suplementação exógena de vitamina D;

- evitar prolongada exposição solar, a qual pode aumentar a produção de vitamina D;

- reduzir o consumo de cálcio na dieta.

          Falha nessas intervenções evocam a necessidade de certos medicamentos antifúngicos como o fluconazol oral, os quais alteram o metabolismo da vitamina D, reduzindo os níveis ativos dessa vitamina no corpo. Cursos curtos de prednisolona podem ser necessários para apresentações agudas com elevados níveis de cálcio no sangue (Ref.3).


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Ball et al. (2023). 3′ Untranslated Region Structural Elements in CYP24A1 Are Associated With Infantile Hypercalcemia Type 1. Journal of Bone and Mineral Research. https://doi.org/10.1002/jbmr.4769
  2. https://www.uea.ac.uk/news/-/article/80-year-old-medical-mystery-that-caused-baby-deaths-solved
  3. Nizar et al. (2021). Infantile hypercalcaemia type 1: a vitamin D-mediated, under-recognised cause of hypercalcaemia. Endocrinology, Diabetes & Metabolism Case Reports, 21-0058. https://doi.org/10.1530%2FEDM-21-0058
  4. https://asbmr.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/jbmr.2859