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Indígenas na Amazônia evoluíram proteção contra a doença de Chagas, conclui estudo

Figura 1. Indivíduos da tribo Kayapó (Mebêngôkre), cujas aldeias são dispersas ao longo do curso superior dos rios Iriri, Bacajá, Fresco e de outros afluentes do rio Xingu.

           Vários exemplos de seleção natural na história evolutiva recente dos humanos modernos (Homo sapiens) podem ser citados, talvez mais notavelmente a fixação do fenótipo de persistência da lactase (variantes do gene LCT) (1). Em relação específica a patógenos como fator de pressão seletiva, temos estudos nos últimos anos fortemente apontando que a Peste Negra fomentou processos seletivos na população Europeia envolvendo genes associados à imunidade (2). Agora, um estudo publicado no periódico Science Advances (Ref.1) trouxe a primeira forte evidência de que povos na Amazônia evoluíram resistência contra infecção pelo Trypanosoma cruzi, patógeno responsável pela doença de Chagas. Os resultados do estudo mostraram um intenso sinal de seleção natural em um conjunto de genes relacionados à infecção por esse protozoário. 

Para mais informações:


          Os achados do novo estudo possuem importantes implicações no campo da medicina, especialmente considerando que não existem vacinas contra o T. cruzi, tratamentos são limitados, taxa de mortalidade é alta e o fato da doença estar se espalhando ao redor do mundo. Além disso, é a primeira evidência científica de seleção natural em humanos vivendo nas Américas causada por um patógeno.

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   DOENÇA DE CHAGAS

           O biólogo e médico Brasileiro, Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas (1878-1934), ou simplesmente Carlos Chagas, foi o primeiro pesquisador a descrever a Doença de Chagas, em 1909 - também conhecida como Tripanossomíase Americana. Carlos Chagas também destacou-se por descobrir o protozoário responsável pela doença, Tripanosoma cruzi, cujo nome foi dado em homenagem ao seu amigo Oswaldo Cruz (1872-1917), outro notável médico e pesquisador Brasileiro. A doença de Chagas é considerada uma doença tropical negligenciada pela Organização Mundial de Saúde, e mesmo sendo descrita há mais de 100 anos continua representando um sério problema de saúde pública global e ainda permanece uma doença endêmica na América Latina. 

           Estimativas conservadoras e comumente citadas sugerem que existem 6-7 milhões de pessoas infectadas no mundo, resultando em ~7,5 mil até aproximadamente 10 mil mortes anualmente e várias comorbidades e deficiências ao longo da vida. Porém, é provável que um número muito maior de pessoas, primariamente na América Latina, estejam infectadas pelo T. cruzi (Ref.2). O parasita é transmitido principalmente por insetos sugadores de sangue da subfamília Triatominae, em especial barbeiros dos gêneros Hodnius, Triatoma e Panstrogylus (Ref.3-4) (Fig.3). Além dos triatomíneos, outras formas de transmissão incluem transfusão sanguínea, transplante de órgãos, acidentes laboratoriais, transmissão vertical (congênita) de mãe para filhos, contaminação oral e aleitamento materno. A transmissão oral ocorre quando as pessoas comem alimentos ou bebidas (ex.: cana de açúcar ou açaí) preparados na hora e contaminados com fezes de triatomíneos infectados. Eventos de transmissão oral estão associados com altas taxas de mortalidade que podem alcançar 33% devido à severa infecção aguda (Ref.3). Por fim, transmissão oral é considerada a forma primária de transmissão do T. cruzi entre hospedeiros não-humanos. 


 Figura 2. Formas morfológicas do Trypanosoma cruzi (Giemsa stain). (A) Epimastigota em cultura; (B) Tripomastigota em uma amostra de sangue de um paciente com a fase aguda da doença de Chagas; (C) Ninho de amastigotas dentro de um miócito cardíaco de um paciente com doença de Chagas crônica. O T. cruzi é um protozoário flagelado digenético pertencente à Ordem Kinetoplastida, família Trypanosomatidae.


Figura 3. Espécimes adultos do Triatoma infestans (A) e Triatoma  brasiliensis (B), dois vetores comuns da doença de Chagas no Brasil. Endêmicas da América Latina e do sul dos EUA, as principais espécies de barbeiros de importância médica e transmissores da doença no território Brasileiro são o Panstrongylus megistus, Triatoma sordida, T. brasiliensis, T. infestans e T. pseudomaculata. Fotos: icb.ufmg.br

Figura 4. Ciclo biológico de Triatoma brasiliensis representando o desenvolvimento do tipo paurometábolo dos triatomíneos. Todos os estágios são potenciais transmissores do T. cruzi. Foto: Fotos: icb.ufmg.br

           O T. cruzi se replica via fissão binária, mas é capaz de promover recombinações genéticas com potencial de gerar novos genótipos. De fato, o protozoário exibe notável diversidade biológica e genética, alimentada provavelmente por pressão seletiva imposta pelos múltiplos hospedeiros mamíferos e insetos vetores ao longo da sua  história evolutiva na América do Sul. Aliás, o T. cruzi é capaz de infectar mais de 100 espécies de mamíferos: didelfiídeos (marsupiais da família Didelphidae, como gambás), tatus, carnívoros (incluindo cães e gatos), roedores e primatas (Ref.5-6). É sugerido que cães (Canis familiaris) representem um importante reservatório natural do parasita em ambientes urbanos (Ref.17). 

          A exata data de emergência do T. cruzi no continente Americano é incerta, mas análises filogenéticas fortemente apontam que esse protozoário evoluiu de espécies do gênero Trypanosoma infectando morcegos, as quais eventualmente passaram a infectar mamíferos terrestres, culminando finalmente no T. cruzi. Morcegos infectados com diferentes espécies de Trypanosoma (ex.: T. brucei) (!) parecem ter colonizado a América do Sul há cerca de 7-10 milhões de anos, apontando o possível período de chegada o T. cruzi nas Américas (Ref.5). A primeiras formas de T. cruzi provavelmente estavam associadas a marsupiais Sul-Americanos, cujas populações explodiram no Pleistoceno Inicial (~2-5 milhões de anos atrás), levando eventualmente à contaminação de outros mamíferos (roedores e tatus) e também barbeiros que se alimentavam do sangue desses mamíferos (Ref.5).

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(!) A espécie Trypanosoma brucei é responsável pela Tripanossomíase Africana, conhecida popularmente como doença do sono, e cujo vetor são moscas tsé-tsé (gênero Glossina).

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          O primeiro caso de infecção humana com o T. cruzi foi identificado em múmias de 9 mil anos atrás da civilização Chinchorro, que habitou a região costeira do Chile e do Peru (Ref.1, 5). 

          Devido ao processo cada vez mais intenso de globalização e de fluxos migratórios nas últimas décadas, a doença antes confinada basicamente no território Latino-Americano e parte sul do território Norte-Americano, têm se espalhado através de países Europeus - como Áustria, Bélgica, França, Alemanha, Itália, Holanda, Portugal, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido -, Austrália, Japão e Canadá. Nesse cenário, é estimado que pelo menos 100 milhões de pessoas possuem alto risco de infecção por viverem em antigas e novas áreas endêmicas (Ref.8-10).

          Nos EUA, estima-se que existam atualmente 280 mil pessoas infectadas, incluindo 57 mil pacientes com cardiomiopatia Chagas-induzida, ~10 mil casos localmente adquiridos (dentro dos EUA) e 43 mil mulheres infectadas em idade reprodutiva; cerca de 22-108 infecções congênitas ocorrem anualmente (Ref.11). A Espanha é o país não-endêmico com mais casos fora das Américas, e estima-se que mais de 50 mil pessoas - >600 delas crianças - estão atualmente vivendo com a doença de Chagas no país (Ref.10).

          É estimado que >6 milhões de infectados estejam na América Latina, com 2 a 3 milhões desse total no Brasil (Ref.12). A quantidade aproximada de mortes anuais pela doença de Chagas no território Latino-Americano é de aproximadamente 14 mil casos, ocorrendo 6 mil só no território Brasileiro (Ref.13).


   TRANSMISSÃO VETORIAL E INFECÇÃO

          Durante alimentação do sangue um hospedeiro mamífero infectado, o triatomíneo ("barbeiro") vetor adquire o protozoário T. cruzi no estágio de tripomastigoto. Uma vez no intestino do barbeiro, os tripomastigotos ingeridos se diferenciam em epimastigotos - o estágio replicante em invertebrados - então migra para a porção do intestino e se diferencia tripomastigotas metacíclicos. Os tripomastigas metacíclicos são então excretados com as fezes do inseto e são infecciosos para mamíferos ou através de contato com as membranas mucosas ou pela ferida criada pelo local da picada do barbeiro. Tipicamente, os barbeiros defecam durante a alimentação, após o repasto, e deixam as fezes próximas do local da picada. No caso de humanos, geralmente estes se coçam em resposta à irritação provocada pela picada, arrastando as fezes contaminadas para o orifício da picada (geralmente no rosto).


Figura 5. (A) Forma replicativa não infecciosa epimastigota, encontrada predominantemente no intestino dos insetos hematófagos que origina a forma não replicativa tripomastigota metacíclica altamente infecciosa (B). As formas metacíclicas têm capacidade de invadir as células nucleadas e se diferenciar na forma replicativa amastigota. Posteriormente os amastigotas se diferenciam em tripomastigotas (D, E). Os tripomastigotas podem disseminar no hospedeiro mamífero através da corrente sanguínea e, eventualmente, serem ingeridos pelo inseto hematófago no momento do repasto sanguíneo. O ciclo chega ao fim no momento em que os tripomastigotas ingeridos se diferenciam em epimastigotas (A), que são as formas que colonizam o tubo digestivo de um novo inseto.

          Uma vez no sangue do hospedeiro definitivo, os tripomastigotas - forma extremamente móvel - invadem as células em tecidos diversos para se tornarem amastigotas intracelulares dentro de pseudocistos. Seguindo a replicação, os parasitas rompem as células hospedeiras e novamente retornam ao sangue, onde o T. cruzi pode infectar outras células. O número de tripomastigotas na circulação sanguínea do hospedeiro varia ao longo do tempo, com maiores concentrações circulando dentro das primeiras três semanas de infecção, então depois caindo para níveis muito baixos, possivelmente indetectáveis, após o período de infecção inicial. Na ausência de medicamentos antiparasitários adequados, a infecção com o T. cruzi é considerada de ser vitalícia tanto em hospedeiros mamíferos quanto em vetores.


   ASPECTOS CLÍNICOS

          Após a entrada do T. cruzi no organismo, basicamente ocorrem duas etapas fundamentais na infecção humana pelo T. cruzi:

- Fase aguda (inicial): predomina o T. cruzi circulante na corrente sanguínea, em quantidades expressivas. As manifestações de doença febril podem persistir por até 12 semanas. Nesta fase, os sinais e sintomas podem desaparecer espontaneamente evoluindo para a fase crônica ou progredir para formas agudas graves que podem levar ao óbito. A manifestação mais característica é a febre, sempre presente, usualmente prolongada, constante e não elevada (de 37,5º a 38,5ºC), podendo apresentar picos vespertinos ocasionais. Na fase aguda, a patologia causa, principalmente, dilatação cardíaca e derrame pericárdico. A mio­cardite é intensa e difusa, ocorrendo necrose miocitolítica, edema, vasculite e infiltrado inflamatório, de natureza mono e polimorfo nuclear. A maior parte dos casos agudos evolui para a forma indeterminada.

Fase crônica: existem raros parasitas circulantes na corrente sanguínea. Inicialmente, esta fase é assintomática e sem sinais de comprometimento cardíaco e/ou digestivo. Pode apresentar-se como uma das seguintes formas:

  • Forma indeterminada: paciente assintomático e sem sinais de comprometimento do aparelho circulatório (clínica, eletrocardiograma e radiografia de tórax normais) e do aparelho digestivo (avaliação clínica e radiológica normais de esôfago e cólon). Esse quadro poderá perdurar por toda a vida da pessoa infectada ou pode evoluir tardiamente para a forma cardíaca, digestiva ou associada (cardiodigestiva). Considera-se que pacientes nessa forma constituam a grande maioria de infectados em áreas endêmicas, podendo aproximadamente 40% de estes persistirem indefinidamente nessa condição. 
  • Forma cardíaca: evidências de acometimento cardíaco que, frequentemente, evolui para quadros de miocardiopatia dilatada e insuficiência cardíaca congestiva (ICC). Essa forma ocorre em cerca de 30% dos casos crônicos e é a maior responsável pela mortalidade na doença de Chagas crônica. Geralmente ocorrerá 10-20 anos após a fase aguda.
  • Forma digestiva: evidências de acometimento do aparelho digestivo que, frequentemente, evolui para megacólon ou megaesôfago (!). Ocorre em cerca de 10% dos casos.
  • Forma associada (cardiodigestiva): ocorrência concomitante de lesões compatíveis com as formas cardíacas e digestivas. 
(!)  O megaesôfago chagásico (grave alargamento do esôfago) causado pela denervação dos plexos nervosos e reação imunológica, pode evoluir com grandes dimensões, muitas vezes apresentando sinais visíveis na radiografia simples de tórax. Nele, ocorre destruição de plexos nervosos intramurais do esôfago, redução de peristaltismo ao nível do corpo do órgão e não abertura do esfíncter inferior (acalásia) à deglutição. Assim, há incoordenação motora, dilatação e redução de sua capacidade de contração. O sintoma principal é a disfagia sendo a manifestação que leva o doente a procurar o médico e determina o diagnóstico. O tratamento é cirúrgico. Estima-se que ao menos 4% dos chagásicos brasileiros apresentem essa alteração (cerca de 300mil doentes) (Ref.18).

Figura 6. Esofagograma foi realizado com a administração oral de meio de contraste baritado (sulfato de bário). Classificação de Rezende. Grau I – esôfago hipotônico e presença de bolha gástrica (asterisco). Grau II – esôfago dilatado moderadamente e apresentando ondas terciárias frequentes (cabeças de setas). Grau III – esôfago dilatado e apresentando aspecto de “bico de pássaro” da cárdia (seta); as ondas terciárias estão presentes, porém com menor frequência. Grau IV – dolicomegaesôfago acinético e com aspecto de “bico de pássaro” da cárdia (seta). Ref.19
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> Os principais achados no coração de chagásicos envolvem uma miocardite fibrosante progressiva e crônica. A perda de cardiomiócitos e a sua substituição por tecido fibrótico parece induzir desarranjos da estrutura e da função do miocárdio, resultando em mau funcionamento do sincício eletrofisiológico e predispondo ao desenvolvimento da insuficiência cardíaca (IC), bloqueios intra e atrioventriculares, além de taquiarritmias ventriculares. Relevante mencionar que o T. cruzi é uma das principais causas de miocardite induzidas por infecção no mundo.

>  A doença de Chagas tem como principais sintomas (fase aguda): febre, mal-estar, inflamação e dor nos gânglios, vermelhidão, inchaço nos olhos (sinal de Romanã) e aumento do fígado e do baço. Com frequência, a febre desaparece depois de alguns dias e a pessoa não se dá conta do que lhe aconteceu, embora o parasita já esteja alojado em alguns órgãos.

> Para uma revisão completa sobre a evolução e características da doença de Chagas em humanos infectados, acesse: II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, 2015

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           Métodos de diagnóstico mais eficazes são ensaio de imunoabsorção enzimática (ELISA) e reação em cadeia da polimerase quantitativa (qPCR) para as fases crônica e aguda da doença de Chagas, respectivamente. (Ref.7).


   TRATAMENTO

          O Benznidazol é o fármaco de escolha disponível para o tratamento específico da doença de Chagas. O Nifurtimox pode ser utilizado como alternativa em casos de intolerância ao Benznidazol, embora seja um medicamento de difícil obtenção. Na fase aguda, o tratamento deve ser realizado em todos os casos e o mais rápido possível após a confirmação diagnóstica. O tratamento específico é eficaz na maioria dos casos agudos (>60 %) e congênitos (>95%), apresentando ainda boa eficácia em 50% a 60% de casos crônicos recentes.

          O tratamento etiológico tem como objetivos: curar a infecção, prevenir lesões orgânicas ou a evolução das mesmas e diminuir a possibilidade de transmissão do T. cruzi. Por esses motivos, recomenda-se o tratamento em crianças e adultos jovens, na forma crônica indeterminada e nas formas cardíaca leve e digestiva. Em virtude da toxicidade das drogas disponíveis, não é recomendado o tratamento durante a gestação, a menos que se trate de caso agudo e grave.

          Há mais de 50 anos, esses dois fármacos nitro-heterocíclicos são os únicos tratamentos disponíveis, apesar da eficácia inconsistente e alta frequência de efeitos colaterais. Entre os desafios para o desenvolvimento de fármacos efetivos contra a infecção pelo T. cruzi temos a localização predominantemente intracelular do parasita nos mamíferos - algo agravado pelo fato dele ser um organismo eucarionte (com célula similar à nossa) - e sua habilidade de invadir uma ampla variedade de tipos celulares e tecidos, embora tenha uma clara preferência por células musculares, incluindo cardíaca, esquelética e músculos lisos do intestino.

          Pesquisas nos últimos anos têm se intensificado para a descoberta de novos fármacos seguros e efetivos contra o T. cruzi (Ref.15), em especial no contexto de disseminação cada vez mais global da doença. Em setembro de 2022, um estudo publicado na Nature Microbiology (Ref.16) reportou um pró-fármaco benzoxaborol de ingestão oral (AN15368) que se mostrou efetivo no tratamento de infeção por várias linhagens geneticamente distintas de T. cruzi em primatas não-humanos.

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   SELEÇÃO NATURAL EM INDÍGENAS BRASILEIROS

          A América apresenta um amplo espectro de eco-regiões que foram rapidamente exploradas e ocupadas pelos primeiros humanos que alcançaram o continente (3). Essa robusta migração humana provavelmente requereu diferentes adaptações genéticas e culturais  para assegurar efetiva sobrevivência. A floresta tropical-úmida Amazônica é uma das principais eco-regiões do continente Americano, exibindo uma enorme diversidade biológica. Apesar de ser um ambiente rico em nutrientes de fácil acesso, é também hostil e apresenta vários obstáculos de longo prazo para a sobrevivência. Fatores como instabilidade de recursos alimentares, baixa penetração de luz e alta diversidade de patógenos provavelmente contribuíram para fortes pressões seletivas em humanos no sentido de garantir altas taxas reprodutivas.

(3) Leitura recomendadaA Cultura Clóvis representou os primeiros humanos nas Américas?

          Ocupando nove países Sul-Americanos, a Amazônia atualmente é populada por 1 milhão de indígenas, divididos em aproximadamente 300 grupos étnicos diferentes. Esses povos nativos, por milhares de anos, têm sido expostos a numerosas doenças tropicais transmitidas por vetores, como a malária (4), e muito antes da chegada dos Europeus colonizadores. Uma dessas doenças é justamente aquela causada pelo T. cruzi, com evidências de humanos infectados há 7 mil anos no Brasil, e ainda mais antigas em outras regiões da América Latina.

(4) Leitura recomendadaMalária no Brasil afeta apenas a região Amazônica?

          Nesse sentido, no novo estudo publicado na Science Advances, a pesquisadora Dra. Tábita Hünemeier, da área de genética populacional no Instituto de Biologia Evolucionária da Universidade de São Paulo (USP), liderou um time de pesquisa para investigar potenciais assinaturas de processos evolutivos em povos nativos Amazônicos associados a doenças diversas. Para isso, os pesquisadores primeiro compararam os genomas de 118 indivíduos pertencentes a 19 comunidades de povos nativos na Amazônia - incluindo grupos como os Kayapós e os Parakanãs - com os genomas de 35 indivíduos próximo-relacionados a culturas nativas no México e na América Central, assim como genomas de 231 indivíduos do Leste Asiático. Nessa análise comparativa inicial, eles buscaram por padrões sugerindo genes com assinatura de seleção positiva.

          Após levarem em consideração fatores associados a processos evolutivos de deriva genética (5) - incluindo bottlenecks causados pelo genocídio de povos nativos durante a colonização Portuguesa - os cientistas encontraram que nos grupos indígenas na Amazônia, seleção natural foi responsável por fixar variantes em um número de genes relacionados a funções cardiovasculares e metabolismo. E, entre os genes sob seleção positiva, três revelaram-se muito notáveis: PPP3CA e DYNC1I1, os quais estão associados com resposta imune contra o T. cruzi, e o NOS1AP, um gene que afeta como o corpo reage a picadas de mosquitos. Segundo análise dos pesquisadores, seleção natural começou a atuar sobre esses genes ~7500 anos atrás - um período onde a doença de Chagas provavelmente já estava causando muitas vítimas humanas na América do Sul. E o mais notável: apesar da doença de Chagas ser endêmica no Brasil, casos são relativamente raros nos povos vivendo na Amazônia! E mais: os barbeiros transmissores da doença são muido comuns nas comunidades onde esses povos vivem.

(5) Leitura recomendadaO que é a deriva genética?

          Os pesquisadores, então, conduziram testes in vitro e in vivo com células de coração humano infectadas com T. cruzi para investigar o potencial papel do polimorfismo rs2659540 do gene PP3CA (variante sob seleção positiva nos povos Amazônicos). Algumas células expressavam o gene PP3CA normal enquanto outras foram reprogramadas para reduzir a expressão desse gene em 65%. Nas células com menor expressão do PP3CA, a capacidade de infecção do T. cruzi foi reduzida em aproximadamente 25%, indicando que esse gene possui papel ativo na invasão intracelular do parasita. Um experimento subsequente mostrou que o alelo rs2659540 reduzia a expressão de um RNA longo não-codificante (FLJ2021) no apêndice atrial do coração; a região atrial é afetada de forma primária pela doença de Chagas.   

          Esses achados por si só já forneciam sólida evidência que essa variante genética evoluiu no sentido de proteger as populações Amazônicas contra a doença de Chagas - ou pelo menos tornar o progresso da doença menos severo e permitindo que o sistema imune defenda melhor o organismo. Para reforçar que seleção natural agiu sobre essa variante, os pesquisadores resolveram investigar a distribuição geográfica das pessoas com o alelo rs2659540. E acerto na mosca (ou no barbeiro): as regiões pouco afetadas pela doença e as regiões com a presença do alelo protetor mostraram-se quase sobrepostas! (Fig.6). 


Figura 6. Áreas em amarelo no mapa representam regiões endêmicas com a doença de Chagas (alto número de casos). A área laranja representa a distribuição do alelo protetor (rs2659540 G>A) nas populações analisadas. Tábita Hünemeier et al., 2023

           Além de promover um melhor entendimento genômico dos povos nativos do Brasil e a história evolutiva desses indígenas, o estudo também abre caminho para novas alternativas terapêuticas explorando mecanismos moleculares associados com os genes sob seleção natural.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Tábita Hünemeier et al. (2023). Indigenous people from Amazon show genetic signatures of pathogen-driven selection. Science Advances, Vol.9, No.10. https://doi.org/10.1126/sciadv.abo0234
  2. Padilla et al. (2022). Discovery of an orally active benzoxaborole prodrug effective in the treatment of Chagas disease in non-human primates. Nature Microbiology 7, 1536–1546. https://doi.org/10.1038/s41564-022-01211-y
  3. Imperador et al. (2022). Resveratrol and Curcumin for Chagas Disease Treatment—A Systematic Review. Pharmaceuticals 15(5), 609. https://doi.org/10.3390/ph15050609
  4. JORGE & CASTRO. Doença de chagas: manual para experimentação animal [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2000. 368 p. Antropologia e Saúde collection. ISBN 85-85676-75-2.
  5. Zingales & Bartholomeu (2022). Trypanosoma cruzi genetic diversity: impact on transmission cycles and Chagas disease. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, 117. https://doi.org/10.1590/0074-02760210193
  6. Busselman & Hamer (2022). Chagas Disease Ecology in the United States: Recent Advances in Understanding Trypanosoma cruzi Transmission Among Triatomines, Wildlife, and Domestic Animals and a Quantitative Synthesis of Vector–Host Interactions. Annual Review of Animal Biosciences, Vol. 10:325-348. https://doi.org/10.1146/annurev-animal-013120-043949
  7. Chávez-Fumagalli et al. (2022). Accuracy of Diagnostic Tests for the Detection of Chagas Disease: A Systematic Review and Meta-Analysis. Diagnostics, 12(11), 2752. https://doi.org/10.3390/diagnostics12112752 
  8. https://journals.asm.org/doi/abs/10.1128/cmr.00152-21
  9. Requena-Méndez et al. (2022). Estimating chagas disease prevalence and number of underdiagnosed, and undertreated individuals in Spain. Travel Medicine and Infectious Disease, Volume 47, 102284. https://doi.org/10.1016/j.tmaid.2022.102284
  10. Bern et al. (2022). Updated Estimates and Mapping for Prevalence of Chagas Disease among Adults, United States. Emerging Infectious Diseases, 28(7): 1313–1320. https://doi.org/10.3201%2Feid2807.212221
  11. Cadernos Saúde Coletiva, 2020, 28(3). https://doi.org/10.1590/1414-462X202028030426
  12. Arquivos Brasileiros de Cardiologia, 2020, 115(6). https://doi.org/10.36660/abc.20190285
  13. https://www.rbac.org.br/artigos/doenca-de-chagas-uma-atualizacao-bibliografica/
  14. http://r1.ufrrj.br/adivaldofonseca/wp-content/uploads/2014/06/doenca_de_chagas-Minist-Saude-BR.pdf
  15. Pérez-Silanes et al. (2022). Examination of multiple Trypanosoma cruzi targets in a new drug discovery approach for Chagas disease. Bioorganic & Medicinal Chemistry, Volume 58, 15 March 2022, 116577. https://doi.org/10.1016/j.bmc.2021.116577
  16. Padilla et al. (2022). Discovery of an orally active benzoxaborole prodrug effective in the treatment of Chagas disease in non-human primates. Nature Microbiology 7, 1536–1546. https://doi.org/10.1038/s41564-022-01211-y
  17. https://www.mdpi.com/2076-2615/13/4/555
  18. Oliveira et al. (2009). Tratamento cirúrgico do megaesôfago no Hospital de Clínicas da UNICAMP - fatores associados a melhores ou a piores resultados. Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, 36(4). https://doi.org/10.1590/S0100-69912009000400005 
  19. Abud et al. (2016). Alterações radiológicas encontradas no megaesôfago chagásico em radiografias simples de tórax e esofagogramas. Radiologia Brasileira, 49(6). https://doi.org/10.1590/0100-3984.2015.0141