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O que é Toxoplasmose Congênita?

Figura.1. Microscopia de escaneamento eletrônico de células de Toxoplasma gondii. As setas indicam extrusões conoides (usadas para invasão/saída celular) induzidas pela incubação em etanol; a cabeça de seta indica elementos secretados e acumuladas no final posterior da célula. Barra de escala = 2 μm.

           Uma mulher grávida de 20 anos de idade deu a luz após 36 semanas de gestação ao seu primeiro bebê, do sexo masculino, através de parto via cesárea no Hospital da Universidade Professor Alberto Antunes, na cidade de Maceió, Alagoas. A grávida atendeu a cinco consultas pré-natais em uma Unidade Básica de Saúde e análises laboratoriais identificaram a presença de anticorpos anti-Toxoplasma gondii aos 5 meses (IgM 5,3 UI/mL) e aos 7 meses (IgG < 200 UI/mL) de gestação. Procedimento padrão para mulheres grávidas aqui no Brasil inclui pelo menos seis consultas pré-natais e um exame sorológico para toxoplasmose durante a primeira consulta. Considerando que a grávida possuía nível educacional básico incompleto e que nenhum tratamento contra toxoplasmose foi iniciado (mesmo com dois resultados laboratoriais positivos para o protozoário patogênico), infere-se que houve dificuldade de comunicação com a mulher atendida ou alguma falha de comunicação por parte da equipe médica.

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          Uma amostra sanguínea do recém-nascido foi coletada no dia do nascimento, submetida para uma completa contagem sanguínea, e usada para investigar anticorpos contra doenças infecciosas congênitas, como a toxoplasmose. Análise via quimioluminescência mostrou resultado positivo para T. gondii (IgM 41.04 UI/mL; IgG 650 UI/mL), confirmando o diagnóstico de toxoplasmose. A contagem de células sanguíneas revelou anisocitose, trombocitopenia (contagem de plaquetas: 34000 plaquetas/mL) e policromasia. Exame clínico, ultrassom craniano e tomografia cerebral computacional revelaram microcefalia, hidranencefalia (ausência de hemisférios cerebrais, substituído por líquido cefalorraquidiano), áreas de calcificação no cérebro, perda auditiva parcial, genitália ambígua, retinite e descolamento retinal. Esse sério quadro clínico levou à morte da criança quando ela completou 5 meses de idade.

           Análise genética da cepa isolada do cordão umbilical do paciente e análise in vivo (testes em ratos) revelaram uma cepa altamente virulenta de T. gondii - uma ocorrência, infelizmente, comum na América do Sul. O caso foi reportado e descrito no periódico Parasitology Research (Ref.1)


   TOXOPLASMOSE CONGÊNITA

           Toxoplasma gondii é um protozoário parasita intracelular com uma ampla distribuição que infecta animais endotérmicos, incluindo humanos, e cujo hospedeiro definitivo são felinos, em especial gatos domésticos (Felis catus) (Fig.2). Estima-se que quase um terço da população humana (1 em cada 3 pessoas) está infectada ou já foi infectada com o T. gondii (1) e a estrutura populacional desse parasita é caracterizada por alta diversidade genética, incluindo uma predominância de linhagens clonais (Tipos I, II e III) na Europa e na América do Norte, assim como genótipos atípicos (não-clonais), os quais são mais comuns na América Latina; no Brasil, a maior parte das cepas são atípicas e as clonais são raras. Genótipos atípicos são frequentemente envolvidos em casos mais severos de toxoplasmose congênita em comparação com aqueles causados por genótipos clássicos, e maior virulência e variabilidade genética geralmente é encontrada na América do Sul. A linhagem clonal Tipo II responde por 95% dos casos na Europa e por ~44% dos casos na América do Norte (Ref.3). No campo da oftalmologia, toxoplasmose é considerada a causa mais comum de uveítes posteriores de origem infecciosa (Ref.4) (2). Em raros casos, pode existir envolvimento cardíaco associado à toxoplasmose, em especial miocardite (Ref.5).

 

Figura 2. O ciclo de vida do T. gondii envolve múltiplos hospedeiros e modos de transmissão. Todos os membros da família Felidae (felinos) são hospedeiros definitivos, excretando oócitos durante estágio sexuado que infectam hospedeiros intermediários e secundários, incluindo mamíferos (terrestres e marinhos) e aves. Hospedeiros infectados carregam - potencialmente pela vida toda - bradizoítos durante estágio assexuado dentro de cistos teciduais na musculatura esquelética e vários outros órgãos (predominantemente imune-privilegiados). Portanto, comer carne mal cozida ou carne crua de hospedeiros infectados representa uma importante fonte de exposição. Uma vez ingeridos, oócitos e bradizoítos se diferenciam em taquizoítos assexuados que disseminam a infecção por todo o hospedeiro. Esporozoítos são formas dormentes e estáveis do T. gondii no ambiente, os quais podem permanecer infecciosas por vários anos. (Ref.3)

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(1) Prevalência global pode ser tão alta quanto 40%, e, a nível regional, prevalência pode ser tão alta quando 70%; em algumas áreas nos trópicas, especialmente em comunidades com exposição a solo contaminado, carne mal-cozida ou água sem filtragem, prevalência pode alcançar até 80% (Ref.3). No geral, é estimado que 25% a 30% da população mundial está infectada com o T. gondii, mas com prevalências regiões variando de 10% a 80% (Ref.6).

(2) Seguindo invasão do parasita no olho, o taquizoíto permanece latente na forma de cisto sob o controle da resposta imune do hospedeiro. Em evento de ruptura engatilhada, o taquizoíto é convertido em bradizoíto, e a resposta inflamatória é ativada, levando a um quadro de toxoplasmose ocular. A retina é a mais frequentemente afetada. Necrose da retina e do coroide com destruição dos tecidos ao redor é encontrada dentro da lesão ativa. Além disso, a condição é comumente associada com inflamação vítrea intensa. (Ref.7)

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           Em geral (~80% dos casos), o parasita causa infecção assintomática em indivíduos imunocompetentes (saudáveis); no entanto, em mulheres grávidas pode levar a um quadro de toxoplasmose congênita e desenvolvimento de sinais clínicos variáveis. Infecção materna durante o primeiro e o segundo trimestre pode resultar em doença severa, como morte fetal e aborto (~3% dos casos). A clássica tríade da toxoplasmose congênita é caracterizada por coriorretinite (inflamação do segmento posterior do olho), calcificações intracranianas e hidrocefalia (dilatação da cabeça do bebê pelo acúmulo excessivo de fluidos). Sintomas generalizados incluem anemia, icterícia, febre, petéquias devido a trombocitopenia, e hepatosplenomegalia (Ref.8). A toxoplasmose congênita também pode levar sequelas neurológicas e oftalmológicas diversas, como atraso no desenvolvimento psicomotor, epilepsia e danos na visão.

          Após a ingestão de alimento ou água contaminada com o T. gondii, temos uma potencial parasitemia, e taquizoítos podem invadir a placenta se a mulher estiver grávida. O estágio de gestação no período de infecção pode determinar o risco a transmissão de T. gondii para o feto. Em geral, a transmissão é mais eficiente na metade final de gestação, a maioria dos casos relacionados a fatores anatômicos, vasculares e de imunidade. Por exemplo, a espessura da placenta varia com a gestação; no início da gravidez, a barreira placentária de humanos possui 50-100 micrômetros (μM) de espessura, e progressivamente diminui para 2,5-5 μM no final da gravidez - concomitante com um aumento da vascularidade -, permitindo que os taquizoítos invadam com maior facilidade os trofoblastos (células embrionárias associadas à placenta) no final do curso gestacional (Ref.9). Porém, os exatos mecanismos celulares e moleculares de transmissão vertical do T. gondii permanecem ainda pouco esclarecidos (Ref.10).

          Infecção no início da gestação é clinicamente mais severa, à medida que reduzida expressão de receptores do tipo Toll em células trofoblásticas durante o primeiro trimestre de gravidez pode implicar uma reduzida habilidade de células placentárias iniciais de engajarem resposta imune contra infecção intrauterina. O risco de infecção congênita é o menor quando a grávida se torna infectada no primeiro trimestre (10-15%) e é o maior quando a infecção ocorre durante o terceiro trimestre (até 70%). Se infecção materna ocorre no início da gravidez, essa resulta em menos bebês infectados, mas tende a ser mais severa nos afetados. O maior risco para o feto é quando a infecção é adquirida na 10°-24° semana de gestação. Em termos globais, 60-70% dos bebês nascidos de mães infectadas escapam da infecção (Ref.1).

          Transmissão transplacentária geralmente ocorre quando uma mulher se torna infectada durante a gravidez. Raramente, transmissão congênita ocorre em mulheres infectadas imediatamente antes da gravidez ou durante uma infecção crônica - por exemplo, um notável caso foi reportado em 2020 de uma mulher infectada 4 meses antes da gravidez, sem quadro imunossuprimido e com o parasita causando morte fetal (Ref.11). Somando-se a isso, em mulheres imunossuprimidas, reativação/reinfecção de infecção adquirida antes da gravidez pode levar a uma toxoplasmose congênita, mas é um evento raro. 

           A infecção transplacentária pode levar a uma ampla variedade de manifestações no feto e no bebê, incluindo aborto espontâneo esporádico e natimorto; pode também causar doença severa nos recém-nascidos, mas a maioria dos casos são assintomáticos. Hidrocefalia é o mais dramático sinal da doença, e ocorre em aproximadamente 4% das crianças sintomáticas; sintomas oculares são mais comuns. No período neonatal, manifestação sintomática é provável de ser severa, invariavelmente com sinais neurológicos e tais pacientes raramente se recuperam sem sérias sequelas. Doença aparecendo nos primeiros meses de vida são geralmente menos severa, e os bebês infectados podem, às vezes, se desenvolver normalmente. Sinais clínicos podem também emergir vários anos mais tarde em indivíduos com toxoplasmose congênita.

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          Diagnóstico pré-natal de potencial infecção por T. gondii é importante para reduzir os riscos de danos severos no feto ou melhor orientar a grávida sobre as opções de intervenção. Existe evidência acumulada sugerindo uma "janela de oportunidade" para profilaxia (tratamento com antiparasíticos) no sentido de ajudar a prevenir transmissão transplacentária. Alguns poucos países oferecem rastreamento para toxoplasmose durante a gravidez; no Brasil programas do tipo a nível nacional estão já em fase de serem implantados e rastreamentos pré-natal e neonatal tiveram início em 2022 em Minas Gerais (estado com alta prevalência e severidade de toxoplasmose congênita) (Ref.12). Na França, testagem é mandatória no primeiro trimestre, a qual permite três tipos de intervenções:

I) prevenção primária, na qual as mulheres que são seronegativas são aconselhadas sobre medidas para reduzir o risco de infeção (ex.: evitar entrar em contato com fezes de gatos e cozinhar bem as carnes) e re-testagens mensais;

II) terapia profilática (ex.: sulfadiazina e pirimetamina) para reduzir o risco de transmissão placentária em caso de infecção materna primária na gravidez, apesar de ausência de prova científica de efetividade;

III) diagnóstico pré-natal via amniocentese e pronta terapia para reduzir o risco de sequelas no caso de toxoplasmose congênita. No caso de prognóstico desfavorável, especialmente hidrocefalia, a opção de terminação da gravidez (aborto) pode ser discutida.


> INFECÇÃO SEXUALMENTE TRANSMISSÍVEL? Um estudo publicado em janeiro deste ano no periódico Journal of Infection (Ref.16) confirmou a presença de cistos do T. gondii no sêmen de voluntários saudáveis e com infecção latente, sugerindo potencial transmissão sexual do protozoário. O achado também corrobora a presença bem estabelecida do T. gondii no sêmen de vários outros hospedeiros não-humanos, incluindo ratos, cães e ovelhas, e também resultados de estudos observacionais sugerindo transmissão sexual entre humanos.


   ALTERAÇÃO COMPORTAMENTAL?

          O T. gondii foi primeiro caracterizado como um agente patológico em animais não-humanos, sendo primeiro identificado em 1908 em coelhos no Brasil e no roedor da espécie Ctenodactylis gondi. Semelhança do parasita identificado com espécies de protozoário do gênero Leishamaia (2) levaram os pesquisadores a nomeá-lo como "Leishmania gondii". Em 1909, o nome 'Toxoplasma gondii' foi estabelecido. O primeiro caso humano de infecção com T. gonddi foi oficialmente reportado e descrito em 1923, envolvendo uma criança com hidrocefalia. Na década de 1940, começou-se a ter um melhor entendimento da toxoplasmose congênita, e, eventualmente, começou a ficar claro que parte significativa da população humana era afetada pelo parasita. Evidência recente sugere significativo declínio das taxas de infecção em países desenvolvidos, mas cuja causa é ainda incerta (Ref.17).

(2) Leitura recomendada: Homem de 19 anos com leishmaniose cutânea (tegumentar) 

          Como já explorado, o T. gondii possui um ciclo de vida sexuado e assexuado. O ciclo de vida sexuado ocorre nos felinos e começa quando o parasita é ingerido. Após ingestão, o parasita entra nas células epiteliais do intestino delgado e passa por múltiplos estágios de desenvolvimento (incluindo produção de gametas) (Fig.2). Depois disso, o parasita retorna ao ambiente através das fezes dos felinos (geralmente gatos nos ambientes urbanos), onde passam por esporulação, produzindo oócitos com 11–13 μm de diâmetro (Ref.18). O ciclo de vida assexuado começa uma vez que um hospedeiro intermediário (ex.: roedores e primatas) ingerem esses oócitos. Uma vez ingeridos, as células epiteliais do intestino delgado são infectadas, e taquizoítos são produzidos, indicando uma infeção ativa. Os taquizoítos então se movem através das circulações sanguínea e linfática para órgãos diversos, como tecido nervoso, músculos e vísceras. Quando um órgão alvo é alcançado, replicação ocorre, e o T. gondii permanecerá dormente como bradizoítos. O ciclo de replicação intracelular e subsequente destruição celular é o responsável principal pelas manifestações clínicas da toxoplasmose.

           O T. gondii é considerado um dos parasitas de maior "sucesso" devido ao fato de, virtualmente, qualquer animal endotérmico servir como potencial hospedeiro. Taxas de infecção em gatos domésticos são superiores a 24%, em galinhas são em torno de 19% e, em suínos, ultrapassa 39% (Ref.19).

Figura 3. Existe também alta prevalência de mamíferos marinhos infectados com o Toxoplasma gondii. Estima-se que ~31% dos cetáceos (baleias, golfinhos, focenídeos) e ~55% das lontras-marinhas (mustelídeos da espécie Enhydra lutris) estão infectados com esse protozoário. Ref.34

           Vários estudos sugerem que hospedeiros intermediários que são naturalmente predados por felinos, especialmente roedores, passam por mudanças comportamentais induzidas pelo T. gondii no sentido de facilitar a predação (Ref.19). Se um rato ou camundongo criado em laboratório é colocado em uma caixa com algumas gotas de urina em um canto, ele não apenas irá evitar esse canto, como também ira secretar hormônios de estresse, aumentar a vigilância e ficará menos suscetível à sensação de dor. Ratos possuem um medo inato de pistas de gato no ambiente. Porém, se um rato similar em todos os aspectos for infectado pelo T. gondii e colocado na mesma caixa, ele não irá evitar o canto com urina. Aliás, alguns ratos podem ficar até mesmo atraídos pelo odor!

           Em outras palavras, o T. gondii parece remover o medo inato de roedores e convertê-lo - pelo menos em alguns indivíduos - em atração. Um rato sem medo de gatos é mais provável de ser comido por um gato, beneficiando o T. gondii e aumentando a capacidade de transmissão desse parasita.

           Existem três pontos de vista que tentam explicar as mudanças de comportamento nos ratos infectados (Ref.19):

i. Um número de estudos reportam que os efeitos do T. gondii induzindo "perda de aversão" são específicos para gatos, ou seja, não afeta respostas inatas a odores de outros animais não-felinos;

ii. Outros estudos reportam que os efeitos são sindrômicos, com a infecção causando uma perda geral de comportamentos defensivos no hospedeiro. Portanto, captura é facilitada independentemente do agente de captura (ex.: ratoeira instalada por humanos). Ratos infectados se tornam mais exploratórios, mais abertos a riscos e se tornam mais impulsivos;

iii. Finalmente, existem estudos sugerindo que o T. gondii "avacalha" o comportamento normal do rato de forma patológica mas inespecífica, aumentando assim as chances do infectado de ser capturado por estar agindo no ambiente de maneira anômala - abandonando hábitos seguros. 

          É fortemente sugerido que esse amplo espectro de mudanças comportamentais reportadas é devido a diferentes linhagens de T. gondii usadas nos experimentos, resultando em variados níveis de virulência e sintomas nos roedores infectados (Ref.20-21). Alguns autores também têm questionado se os efeitos de mudanças comportamentais durante infecções sofreram real pressão seletiva no T. gondii (traço adaptativo), já que estes parasitas não necessariamente precisam dos felinos para persistirem no ambiente e se reproduzirem (Ref.22).

           Mas não apenas em experimentos laboratoriais mudanças comportamentais facilitando predação são evidenciadas. Um estudo recente publicado no periódico International Journal for Parasitology: Parasites and Wildlife (Ref.25) trouxe importante evidência de manipulação comportamental induzida pelo T. gondii no ambiente natural. Analisando múltiplas espécies de pequenos mamíferos selvagens (roedores e musaranhos) capturados por gatos domésticos (Catus felis), os pesquisadores encontraram alta prevalência de infectados. E mais notável: analisando uma espécie em específico (Arvicola amphibius) (Fig.3), foi encontrada uma prevalência muito maior de infectados (11%) nos espécimes capturados por gatos do que entre aqueles capturados por armadilhas humanas (0%), estes últimos servindo como grupo de controle. O genótipo mais prevalente (ToxoDB#3) nos infectados pertencia à linhagem clonal Tipo II (a mais frequente circulando na Europa); o estudo foi conduzido na Suíça. O estudo, portanto, fornece evidência de que roedores infectados pelo T. gondii estão sob maior risco de predação por felinos, suportando a hipótese de manipulação comportamental como traço adaptativo desse parasita.


Figura 4. Rato-dos-lameiros (Arvicola amphibius), um roedor semi-aquático comum na Europa e uma importante fonte nutricional para predadores de pequeno a médio porte (Ref.24).
 

           Existem vários mecanismos propostos que tentam explicar as mudanças comportamentais induzidas pelo T. gondii nos roedores. Isso inclui alteração hormonal (ex.: aumento dos níveis de testosterona após invasão do parasita nos testículos), alteração de processos de neurotransmissão durante infecção no tecido cerebral (ex.: aumento do nível de dopamina e mudanças epigenéticas na amígdala) e aumento do nível de inflamação no cérebro (ex.: atividade imune excessiva contra cistos no tecido cerebral) (Ref.25). Nesse último caso, é motivo de debate se a presença ou carga de cistos no cérebro é um fator necessário para manifestações de comportamentos anômalos (Ref.26).

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          E nos humanos? Infecção com o T. gondii induz mudanças comportamentais na nossa espécie?

          Em um estudo publicado em 2016 no periódico Current Biology (Ref.27), pesquisadores reportaram que chimpanzés (Pan troglodytes) infectados pelo T. gondii perdem a aversão ao cheiro da urina de leopardos (Panthera pardus), o único predador natural desses primatas. Isso sugere uma manipulação comportamental similar àquela observada em ratos. Também torna plausível que humanos podem também ser afetados de forma similar em alguma extensão.

          Assim como em roedores, o principal órgão para encistamento do T. gondii em humanos é o sistema nervoso central e, de fato, vários estudos têm levantado suspeitas e evidências de que infecção latente com esse parasita pode induzir mudanças comportamentais, transtornos e até mesmo engatilhar doenças neurodegenerativas na nossa espécie. Aliás, existem estudos que associam a infecção do T. gondii em humanos a uma maior tendência a práticas masoquistas, a mudanças de personalidade, problemas cognitivos e com a frequência de tentativas de suicídio, esquizofrenia, agressividade no trânsito, depressão e até iniciativas de empreendimento (Ref.28-30). Nesse último caso, efeitos da infecção em circuitos do cérebro associados ao medo podem tornar o indivíduo mais disposto a enfrentar riscos - similar aos ratos de laboratório infectados.

           Porém, a associação entre infecção do T. gondii e mudanças comportamentais e doenças mentais em humanos é ainda controversa, e existem evidências conflitantes (Ref.31-32). De qualquer forma, considerando que quase 3 bilhões de pessoas podem ter sido expostas ao T. gondii, com uma média global de infecção crônica de 25% (Ref.33), não é absurdo sugerir que a diversidade de comportamentos e personalidades humanas é também moldada por esse parasita.


> Leitura recomendadaApenas fungos parasitas controlam o comportamento de hospedeiros?


REFERÊNCIAS

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