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Qual é o mecanismo alucinógeno associado ao Vinho de Jurema?

          O vinho de Jurema é obtido a partir das cascas e raízes da Jurema-Preta (Mimosa hostilis ou M. tenuiflora), uma espécie de árvore arbustiva nativa do nordeste do Brasil, pertencente à família Fabaceae. Assim como a planta Amazônica usada na preparação da Ayahuasca (Psychotria viridis) (1), a M. hostilis é rica em N,N-dimetiltriptamina (DMT). A Jurema pode ser consumida através da ingestão da bebida (vinho de Jurema), mas uso tradicional também inclui o fumo via cachimbo. Comumente consumida por indígenas, a bebida é preparada por esses povos através da maceração das raízes em água e o material do cachimbo com as raízes e folhas secas da espécie vegetal. 

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> Outros nomes para o vinho da Jurema incluem "ajucá", "anjucá" ou simplesmente "jurema". Outras espécies do gênero Mimosa têm sido historicamente usadas por tribos indígenas nos cultos do Nordeste.

(1) Leitura recomendada: Consumo de ayahuasca é seguro? Qual o potencial terapêutico?

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           Em rituais indígenas, o vinho de jurema é feito ao se cozinhar a casca e/ou raízes na água por um longo período de tempo em um pote de barro feito especificamente para a ocasião, até a bebida adquirir uma consistência espessa e uma coloração escura. Em praticamente todos os rituais indígenas envolvendo o uso de jurema, tabaco e velas são usados.


(1) Árvore da Mimosa tenuiflora; (2) folhas de M. tenuiflora; (3) folheto da espécie com um bugalho de forma bivalve, evidenciando a pínula na base das válvulas. Isaias et al., 2018 (DOI: 10.1590/2236-8906-80/2017)

           O uso da Jurema sofreu muitas modificações e diminuiu gradativamente com o passar do tempo. Esse ritual é tradicionalmente Brasileiro, especificamente pernambucano, sendo realizado pela comunidade indígena Atikum-Umã que vive na serra de Umã no interior do estado. No festival de Toré, indígenas usam o vinho de jurema na adoração de entidades religiosas, incluindo os ancestrais míticos, e cantam as músicas tradicionais. A Jurema também é usada em rituais Afro-brasileiros, no catimbó e pajelanças juntamente com o fumo e o maracá, para abençoar, aconselhar e curar, e a bebida é tipicamente misturada com cachaça (um destilado da cana de açúcar) ou vinho tinto.  

           O preparo da bebida e as cerimônias são secretas, e a ingestão da Jurema permitiria ao pajé entrar em contato com seus espíritos ancestrais. Na Umbanda, Jurema é dona das ervas mágicas, e o preparo da bebida pode variar dependendo da região (ex.: cultos em São Paulo e na Bahia). Em cultos de Umbanda em São Paulo, a bebida pode ser preparada a partir das folhas, da casca do caule e das raízes, adicionando-se mel, guaraná e cachaça; em seguida é guardada por uns dias até ser consumida. Em cultos de candomblé de caboclo em São Paulo, a bebida pode ser preparada a partir das folhas e cascas do caule adicionando-se mel, água e vinho licoroso. Nos candomblés da Bahia, a Jurema é obtida a partir das cascas do caule e das raízes adicionando-se mel, vinho tinto e dandá (aditivo psicoativo representado por espécies do gênero Cyperus spp.). As cascas são maceradas e colocadas em infusão numa vasilha com água, em seguida mistura-se mel, vinho tinto e sangue do animal sacrificado no ritual da matança.

           Outro relato do uso popular de Jurema é o "Reino Encantado", criado em 1836 em Pedra Bonita no sertão de Pernambuco, por João Antônio. Após ter visões do rei português D. Sebastião, morto na África, na luta contra os mouros em 1578, e achar dois diamantes, João Antônio fundou o "Reino Encantado" ou "Reino das Pedras". Muitos adeptos o seguiram. Seu reinado foi de paz e vivia com a promessa de que não existiriam mais pobres. Seu sucessor, João Ferreira, distribuía, em certos dias, uma bebida, o vinho encantado, uma mistura de Jurema e manacá. Após o consumo do vinho encantado começava uma orgia. O manacá é uma solanácea, Brunfelsia hopeana e Brunfelsia latifolia, conhecida também por jeratacá, cangambá, caágambá, managá, mercúrio vegetal e erataca. Na B. hopeana, estão presentes os alcaloides hopeanina, brunfelsina e manacina. 

          Nas pregações dominicais, João Ferreira insistia para que o povo regasse com sangue as pedras encantadas, pois somente desta maneira ressuscitariam o reino de D. Sebastião, e todos se tornariam ricos. De forma racista, alegava que os negros se tornariam brancos, e que os velhos se tornariam jovens novamente. Certo dia, após a ingestão do vinho de Jurema, João Ferreira teve visões de D. Sebastião e informou a seus seguidores que o rei estava triste com a falta de sacrifícios do povo para a restauração de seu reino. Isto levou ao auto-sacrifício do grupo em 1838.

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          A ingestão da Jurema provoca diversos efeitos, entre eles: alterações de humor com euforia e depressão, ansiedade, distorção de percepção de tempo, espaço, forma e cores, alucinações visuais, algumas vezes bastante elaboradas e do tipo onírico, ideias delirantes de grandeza ou de perseguição, despersonalização, midríase, hipertermia e aumento da pressão arterial. São efeitos similares ao LSD-25 - porém aparentemente de mais rápido efeito e de mais curta duração - e devem-se, a princípio, à presença do DMT, um alucinógeno capaz de produzir alterações de sensopercepção. As potentes propriedades psicoativas do DMT são mediadas por agonismo do receptor de serotonina 2A (5-HT2A). Esse é o motivo da bebida ser utilizada em rituais religiosos por vários grupos ao proporcionar experiências místicas e visões extáticas.


Estrutura molecular do DMT. As propriedades alucinogênicas desse composto foram confirmadas em 1956, quando injetado intravenosamente ou via inalação pulmonar. Esse composto é encontrado em uma ampla variedade de plantas, assim como no corpo de vários animais, incluindo humanos.


           É interessante, contudo, notar que o consumo oral de DMT, por si só, não implica em efeitos alucinógenos. Isso por causa da ação de oxidases monoaminas (MAO), enzimas insolúveis encontradas nas mitocôndrias que catalisam a remoção de um grupo amino dos alcaloides. Para os efeitos alucinógenos ocorrerem, é também necessária a ingestão conjunta de substâncias contendo inibidores de MAO ou MAO-I (ex.: beta-carbonilas), permitindo a ação do DMT. Por exemplo, esse é o motivo do chá de Ayahuasca ser composto de duas espécies de plantas, uma fornecendo o DMT e a outra o MAO-I. Porém, até o momento, esses inibidores não foram identificados na jurema-preta. Então como os efeitos alucinógenos ocorrem com a ingestão oral de jurema?

            É sugerido que outros compostos presentes na jurema-preta podem agir como MAO-I - e ainda não foram caracterizados nesse sentido - ou mesmo que esses compostos sejam os reais agentes alucinógenos, e não o DMT (apesar de improvável). Alguns também sugerem que nas preparações secretas dessas bebidas, outros ingredientes (ex.: plantas) são também adicionados junto à bebida, talvez potenciais fontes de MAO-I. Uma substância que pode ter uma ação de inibição das enzimas MAO e que está presente na jurema-preta é a yuremamina, primeiro isolada dessa planta em 2005 (Ref.4). A atuação do DMT como a causa dos efeitos alucinógenos do vinho da jurema é reforçado por um estudo publicado recentemente no periódico Journal of Psychopharmacology (Ref.5). No estudo, os pesquisadores mostraram que o extrato da jurema-preta, por si só, causava efeitos antidepressivos em ratos, muito provavelmente através de receptores 5-HT2A/2C. Em outras palavras, parece, de fato, existir compostos na própria jurema capazes de inibir as enzimas MAO.

Estrutura molecular da yuremamina. É proposto uma ligação de hidrogênio intramolecular na yuremamina (apontada pela seta) protege essa molécula de ser degradada por enzimas MAO, causando inibição da enzima e, portanto, facilitando a atividade oral do DMT no suco da jurema.

          Nesse caminho, é válido mencionar que a jurema-preta é usada em preparações análogas à Ayahuasca (conhecidas como Anahuasca). Por exemplo, existem rituais que usam um chá feito com 15 gramas de M. hostilis diluído em 50 mL (fonte de DMT) e chá feito com Peganum harmala (planta da família Nitrariaceae) diluído em 50 mL (fonte de MAO-I), ambos ingeridos em conjunto. Existe evidência sugerindo que o uso ritualístico de anahuasca pode trazer benefícios clínicos em pacientes com depressão (Ref.6). 

          O uso recreativo, arriscado e ilegal de jurema-preta é também realizado, através de fumo ou inalação de vapor. Nesse caso, técnicas caseiras usando solventes orgânicos são usadas para extrair o máximo possível de DMT; o extrato é então adicionado em algum veículo de inalação, produzindo uma intensa experiência psicodélica de curta duração (5-20 minutos). Porém, esses extratos podem estar concentrados também com outras substâncias presentes na M. hostilis, impondo consideráveis riscos ao usuário além dos potenciais efeitos deletérios do uso indiscriminado de DMT e da alteração de estado mental resultante. O DMT é uma droga controlada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

           Compostos isolados da jurema-preta exibem também atividade antimicrobiana, os quais têm sido explorados em estudos laboratoriais como potenciais medicamentos bactericidas. Na medicina tradicional (fitoterapia), é empregada como uma planta com propriedades anti-inflamatórias, antioxidantes e antimicrobianas. Essa árvore também é explorada comercialmente como fonte energética por causa do alto poder calorífico (carvão vegetal) e também na produção de forragem e madeira para construções rurais. A casca da jurema-preta apresenta quase 18% de taninos, compostos com vários usos industriais.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Martinez et al. (2009). Alucinógenos naturais: um voo da Europa Medieval ao Brasil. Química Nova, 32 (9). https://doi.org/10.1590/S0100-40422009000900047
  2. Souza et al. (2008). Jurema-Preta (Mimosa tenuiflora [Willd.] Poir.): a review of its traditional use, phytochemistry and pharmacology. Brazilian Archives of Biology and Technology, 51(5). https://doi.org/10.1590/S1516-89132008000500010
  3. Andrade et al. (2013). Application of analytical methods for the structural characterization and purity assessment of N,N-dimethyltryptamine, a potent psychedelic agent isolated from Mimosa tenuiflora inner barks. Microchemical Journal, Volume 109, Pages 78-83. https://doi.org/10.1016/j.microc.2012.03.033
  4. Calvert & Sperry (2015). Bioinspired total synthesis and structural revision of yuremamine, an alkaloid from the entheogenic plant Mimosa tenuiflora. Chemical Communications, 51(28), 6202–6205.
  5. Ribeiro et al. (2022). β-carboline-independent antidepressant-like effect of the standardized extract of the barks of Mimosa tenuiflora (Willd) Poir. occurs via 5-HT2A/2C receptors in mice. Journal of Psychopharmacology, Volume 36, Issue 7. https://doi.org/10.1177/02698811221104050
  6. Oorsouw et al. (2022). Therapeutic effect of an ayahuasca analogue in clinically depressed patients: a longitudinal observational study. Psychopharmacology 239, 1839–1852. https://doi.org/10.1007/s00213-021-06046-9
  7. Rossi et al. (2019). "Internet method for the extraction of N,N-dimethyltryptamine from Mimosa hostilis roots: Does it really extract dimethyltryptamine?" Journal of Psychedelic Studies, Volume 3, Issue 1. https://doi.org/10.1556/2054.2019.009
  8. Lawrence, D. W. (2022). Heart rate (HR) and heart rate variability (HRV) response to inhaled N, N-dimethyltryptamine (N, N-DMT): A case report. Journal of Psychedelic Studies, Volume 6, Issue 1. https://doi.org/10.1556/2054.2022.00178
  9. Amariz et al. (2020). Chemical study of Mimosa tenuiflora barks. Natural Product Research, 1–5.
  10. https://www.scielo.br/j/floram/a/Wc5CZqHJXnSfJpLWpHzfhRL/
  11. https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2021/09/09/umbanda-psicodelica-tem-vinho-de-indios-nordestinos-e-divindade-quilombola.htm