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Por que massiva perda de sangue causa acidose no corpo?

           Um homem de 22 anos de idade foi apresentado ao departamento de emergência com feridas de disparos de arma de fogo no seu abdômen esquerdo, uma taxa cardíaca de 125 batimentos por minuto, e uma pressão sanguínea não-invasiva bem baixa, devido à grande perda de sangue. Notavelmente, o paciente apresentava uma acidose extrema, com um valor de pH sanguíneo em torno de 6,53. Urgente intubação e um massivo protocolo de transfusão sanguínea e de plasma foram efetuados. Eventualmente, esforços de ressuscitação foram iniciados. Outras intervenções incluíram administração de 2,26 mg de epinefrina em doses divididas, cloreto de cálcio, ácido tranexâmico, bicarbonato de sódio e de insulina. Após 5 horas de cirurgia e uma perda estimada de 2 litros de sangue, o paciente foi recuperado com sucesso, algo antes pensado impossível com um pH sanguíneo tão baixo (faixa normal: 7,36-7,44). Após 95 dias de internação e acompanhamento, o paciente teve quase total recuperação, e foi liberado do hospital.

          O caso foi reportado e descrito em 2019 no periódico Journal of Trauma and Injury (Ref.1). 


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   ACIDOSE METABÓLICA

          A acidose metabólica é resultante da produção excessiva de prótons (H+) nos fluídos corporais - concomitante com uma maior produção intracelular de lactato (C3H5O3-) -, e está frequentemente associada com desfechos clínicos desfavoráveis. Quanto maior o nível de lactato na circulação sanguínea, maior o risco de mortalidade. Apesar da hiperlactatemia (excesso de lactato) ser frequentemente atribuída à hipoxia (insuficiente oferta de oxigênio) em tecidos do corpo, outros mecanismos também podem estar envolvidos.

          Na glicólise anaeróbica, o ácido pirúvico (C3H4O3) é formado pelo caminho Embden-Meyerhof, e, através de reação com uma molécula de NADH, pode ser reduzido para ácido lático (C3H6O3), caracterizando o processo de fermentação lática, o qual ocorre sem a presença de oxigênio molecular (O2) e é o mesmo observado, por exemplo, na produção de iogurte a partir da fermentação bacteriana do leite. Essa redução ocorre no citosol da célula e é intermediada pela enzima lactato dehidrogenase (LDH). A enzima LDH é representada por cinco isoformas, constituídas por diferentes composições quantitativas de duas subunidades, LDHA e LDHB. A subunidade LDHA possui uma maior afinidade por piruvato e sua redução. Aproximadamente 20 mmol de lactato por quilograma de massa corporal são produzidos no corpo humano diariamente, primariamente por tecidos altamente glicolíticos (consumidores de glicose) contendo LDH rico em LDHA, como o tecido muscular. 

Figura 1. A molécula de ácido lático (e sua base conjugada, lactato) é basicamente a metade da molécula de glicose, enquanto o ácido pirúvico (e sua base conjugada, piruvato) é mais oxidado. Lactato e piruvato fazem referência aos ânions dos ácidos correspondentes. Nas células e no sangue, NÃO temos ácido lático ou pirúvico e, sim, íons lactato ou piruvato. Todos os ácidos carboxílicos são produzidos no organismo na forma de sais. Nos mamíferos, a molécula de lactato está presente como dois estereoisômeros: L-lactato e D-lactato. O D-lactato é a forma predominante produzida durante glicólise.


          O lactato sendo continuamente produzido é reconvertido em piruvato e consumido nas mitocôndrias presentes no fígado, rins e outros tecidos, os quais possuem LDH rico em LDHB. Normalmente, a geração e consumo de lactato são equivalentes, resultando em uma concentração estável de lactato no sangue. Durante exercícios físicos exaustivos, a produção de lactato pode aumentar por um fator de centenas de vezes - devido às altas demandas energéticas das fibras musculares e limitado suprimento de oxigênio -, mas pode ser rapidamente consumido pelo corpo durante e após os exercícios terem sido cessados (!). Aquela sensação de queimação limitando a continuação do movimento durante uma série de musculação é devido à produção de íons H+ durante o intenso processo de glicólise produzindo lactato (que age ao mesmo tempo como um tampão em meio ao aumento de acidez).

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(!) O aumento de acidez na circulação sanguínea concomitante com a produção excessiva de lactato pode ter papel importante no aumento da taxa respiratória durante os exercícios físicos. Para mais informações, acesse: Sensação aguda de sufocamento é devido à redução de oxigênio no sangue?

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          A dinâmica bioenergética da geração de lactato pode ser resumida como: glicose + 2(ADP +  fosfato inorgânico) → 2 lactatos + 2 H+ + 2 ATP. Nesse sentido, a produção de íons lactatos pela glicólise é acompanhada pela liberação de um número equivalente de prótons (H+) a partir da hidrólise do ATP (uma moeda energética celular) gerado, aumentando a acidez em fluídos corporais. O consumo de lactato pelo corpo (ex.: fígado) remove um número equivalente de prótons, portanto mantendo o balanço ácido-base interno.

          Vários processos - aeróbicos e anaeróbicos - podem levar a um desequilíbrio na produção-consumo de ácido lático no corpo. Glicólise anaeróbica - um mecanismo rápido mas pouco eficiente para a produção de ATP - engatilhada por doenças ou estresse pode aumentar de forma muito excessiva a produção de lactato. Em certas condições, glicólise anaeróbica pode atuar junto com a glicólise aeróbica para esse mesmo fim. Certos medicamentos (ex.: antirretrovirais e propofol) e toxinas (ex.: etanol e cocaína) podem interferir no processo de fosforilação oxidativa, e, consequentemente, aumentar a produção de lactato, em raras ocasiões acompanhada de severa acidose.  

          Como o fígado é responsável por até 70% da limpeza de lactato do corpo, em pacientes com sepse - possivelmente através de inibição da enzima piruvato dehidrogenase - o consumo de lactato produzido pode ser significativamente reduzido (Ref.2).

           Condições que levam à hipoxia em tecidos diversos no corpo representam importante causa da acidose. Nessa linha, choque cardiogênico ou hipovolêmico, falha cardíaca severa, trauma severo, e sepse são as causas mais comuns de acidose lática, representando a vasta maioria dos casos. 

          Durante acidentes traumáticos envolvendo intensa hemorragia - com hipoperfusão devido a choque hemorrágico - acidose (pH<7,35) é uma séria e comum consequência metabólica, frequentemente ignorada pelo público em geral como importante causa de mortalidade nesse contexto. Sem fornecimento de oxigênio, tecido periféricos passam a depender de metabolismo anaeróbico para a produção de energia, aumentando com isso a produção de íons H+. Um pH inferior a 7,0 está associado a altas taxas de mortalidade.

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   ACIDOSE E BICABORNATO DE SÓDIO

         A disrupção da homeostase ácido-base impacta as funções mais vitais do corpo. Reações enzimáticas e funções proteicas ocorrem de forma efetiva dentro de uma estreita janela de temperatura e de pH; variações, mesmo que mínimas, no pH levam a mudanças conformacionais que desnaturam proteínas e levam a perigosas disfunções. Os efeitos críticos da acidose sobre a oxigenação incluem impactos sobre o controle de ventilação, perfusão dos capilares pulmonares, difusão ao longo da membrana alveolar e prejuízos à capacidade de interação da hemoglobina com o oxigênio sanguíneo. A acidose metabólica reduz a contratilidade cardíaca - provavelmente ao interferir na liberação de íons Ca2+ -, mesmo em casos de acidose moderada (pH < 7,20). Além disso, a acidose predispõe o miocárdio a alterações na polarização da membrana celular, aumentando o risco de arritmias fatais. A acidose também causa um aumento da resistência pulmonar, sobrecarregando o ventrículo direito. Extrema acidose possui profundos efeitos na vasculatura periférica, comprometendo todo o sistema cardiovascular.

          Extrema acidose com pH < 6,8 é incompatível com a vida, exceto se o processo patofisiológico for rapidamente revertido (Ref.4). Sistemas fisiológicos de tamponamento junto com as funções pulmonar e renal previnem que oscilações no pH sanguíneo variem fora da faixa normal. No entanto, esses mecanismos compensatórios não são sempre efetivos e suficientes, especialmente na presença de doenças agudas ou massivos danos traumáticos. Taxas de mortalidade em acidoses causadas por choque hemorrágicos alcançam até 86%. 

          Dado os efeitos deletérios de um ambiente ácido, administração intravenosa de bicarbonato de sódio (NaHCO3) para acidose moderada-severa (pH sanguíneo <7,2) é frequentemente feita. A terapia de bicarbonato reduz substancialmente o pH na circulação sistêmica ao introduzir a base conjugada de um ácido fraco, prevenindo também um aumento maior da acidez mesmo com a contínua produção de ácido lático (tamponamento). Por outro lado, o uso da terapia de bicarbonato é ainda controverso devido em especial a um efeito colateral bem estabelecido: acidificação intracelular devido ao acúmulo de dióxido de carbono (CO2) após a infusão do NaHCO3 (HCO3- + H+ → H2CO3 → CO2 + H20 → H2CO3), a qual pode ser intensificada em pacientes com falha circulatória e respiratória, impedindo a remoção do excesso de CO2. Aliás, não existe sólida evidência clínica na literatura acadêmica suportando o uso dessa intervenção (Ref.6-7).

          Outros tampões têm sido usados para minimizar a geração de dióxido de carbono, incluindo o THAM (tris-hidroximetil aminometano) e Carbicarb (uma mistura 1:1 de carbonato de sódio e bicarbonato de sódio). Nesse caminho também é incerto se o excesso de íons bicarbonato (HCO3-) traz algum prejuízo para o corpo, mas estudos experimentais in vivo parecem não suportar essa preocupação.  

          Além de óbvia transfusão sanguínea, hiperventilação (ex.: suporte com ventilação mecânica) é importante para aumentar o pH de um paciente com acidose causada por massiva perda sanguínea, ao remover possíveis excessos de CO2 e garantir adequado aporte de O2, limitando o metabolismo anaeróbico nos tecidos.

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> IMPORTANTE: Acidose pode ser causada por outros mecanismos no corpo além daqueles associados com a produção excessiva de ácido lático. Isso inclui falha renal aguda; asfixia ou falha respiratória impedindo a remoção de CO2 em excesso; e cetoacidose diabética, nesse último caso associada com a produção excessiva de corpos cetônicos devido à ausência de insulina. Leitura recomendada: Qual é o real papel da insulina no controle da hiperglicemia?

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Balmaceda et al. (2019). Resuscitation from a pH of 6.5: A Case Report and Review of Pathophysiology and Management of Extreme Acidosis from Hypovolemic Shock after Trauma. Journal of Trauma and Injury. https://doi.org/10.20408/jti.2019.029
  2. Kraut & Madias (2014). Lactic Acidosis. The New England Journal of Medicine, 371:2309-2319. https://doi.org/10.1056/NEJMra1309483
  3. Rabinowitz & Enerbäck (2020). Lactate: the ugly duckling of energy metabolism. Nature Metabolism, 2(7), 566–571. https://doi.org/10.1038/s42255-020-0243-4
  4. Dragic et al. (2021). Successful Outcomes of Critically Ill Patients with Extreme Metabolic Acidosis Treated with Structured Approach: Case Series. Clinical Medicine Insights: Case Reports.  https://doi.org/10.1177%2F11795476211025138
  5. Smeltz & Arora (2021). Pro: Metabolic Acidosis Should be Corrected With Sodium Bicarbonate in Cardiac Surgical Patients. Journal of Cardiothoracic and Vascular, Volume 36, Issue 2, P616-618. https://doi.org/10.1053/j.jvca.2021.10.023
  6. Chand et al. (2021). Sodium bicarbonate therapy for acute respiratory acidosis. Current Opinion in Nephrology and Hypertension, Volume 30, Issue 2, p. 223-230. https://doi.org/10.1097/MNH.0000000000000687 
  7. Yagi & Fujii (2021). Management of Acute Metabolic Acidosis in the ICU: Sodium Bicarbonate and Renal Replacement Therapy. In: Vincent, JL. (eds) Annual Update in Intensive Care and Emergency Medicine 2021. Annual Update in Intensive Care and Emergency Medicine. https://doi.org/10.1007/978-3-030-73231-8_19
  8. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK470202/