YouTube

Artigos Recentes

Afinal, o que é a alopecia areata?

         Durante as premiações do Oscar 2022 no último domingo (27/03), o ator Will Smith deu um tapa na cara de Chris Rock após o comediante, que apresentava o prêmio de melhor documentário, fazer uma piada sobre a cabeça raspada da atriz Jada Pinkett Smith, esposa do ator (Ref.1). Jada foi diagnosticada com alopecia areata em 2018, e, desde 2021, tem mantido a cabeça raspada como uma forma de melhor aceitar a doença, a qual não possui cura e cujos tratamentos são ainda muito limitados para grande parte dos pacientes.

----------

Observação: As duas formas ortográficas - alopécia e alopecia - são consideradas corretas. Na literatura acadêmica em língua portuguesa, contudo, encontra-se mais comumente a forma alopecia, sem acento. Para uma discussão mais detalhada sobre o tópico, fica a sugestão de leitura: Anais Brasileiros de Dermatologia

-----------

- Continua após o anúncio -


   ALOPECIA AREATA

          Alopecia areata é uma doença autoimune comum que afeta os folículos capilares e com um risco ao longo da vida de 2,1% (Ref.2) e uma prevalência na população em geral de 1,7% (Ref.3). Aproximadamente 20% dos casos são crianças (Ref.4), representando a terceira causa mais comum de consultas dermatológicas pediátricas (Ref.5). Na média, a manifestação da doença ocorre entre 25 e 36 anos de idade e está associada com taxas aumentadas de transtornos psicológicos, incluindo depressão e ansiedade, e uma redução da qualidade de vida. A condição é caracterizada como uma perda de cabelo sem cicatrização em qualquer área do corpo com presença de fios capilares, e o curso da doença é relativamente imprevisível. Na maioria dos casos, a perda capilar se desenvolve como áreas circulares (uma ou múltiplas) bem definidas no escalpo. No rosto, a perda capilar pode emergir na área da barba, assim como nas sobrancelhas e nos cílios.

           A doença se manifesta com diferentes graus de severidade, e pode progredir e incluir total perda de cabelo no escalpo, condição chamada de alopecia totalis, ou completa perda de cabelo em todo o corpo, chamada de alopécia universalis. O padrão mais comum da alopecia areata é o desenvolvimento de uma pequena área circular ou faixa careca no escalpo. Tanto homens quanto mulheres parecem ser afetados de forma similar, e a maioria dos casos emergem antes dos 40 anos de idade.


------------

> Alopecia areata não deve ser confundida com alopecia androgenética (calvície comum), a qual envolve fatores genéticos e ação do hormônio DHT, e afeta especificamente o couro cabeludo. A alopécia areata é a segunda mais frequente causa de alopecia após a calvície comum. Na verdade, existem vários tipos de alopécia (termo médico para 'queda de cabelo'), causadas por múltiplos fatores (Ref.6). Para mais informações sobre a calvície comum e a estrutura dos folículos capilares, acesse: Mitos sobre a calvície

-------------

          O diagnóstico é feito através de exame físico e tricoscopia, mas pode incluir também biópsia na área afetada em casos indecisos. Além da infiltração folicular de células-T (CD4+ e CD8+) revelada em exames histopatológicos, a natureza autoimune da doença é reforçada com o uso de agentes imunossupressores, como corticoesteroides sistêmicos, ciclosporina e imunoterapia de contato, no tratamento; pacientes tratados com esses agentes exibem notáveis melhoras - apesar de não necessariamente impedirem relapso ou serem efetivos em todos os casos.

          Porém, apesar de muitos estudos explorando a doença, o exato mecanismo patológico da alopecia areata ainda não é compreendido. Evidências acumuladas sugerem que existe um colapso no privilégio imune (!) dos folículos capilares, levando à emergência de autoantígenos na superfície desses folículos que, por sua vezes, resultam em células inflamatórias atacando a estrutura folicular e promovendo a queda de cabelo. A alopecia areata ocorre especificamente durante a fase anágena do crescimento capilar, onde melanócitos, queratinócitos e fibroblastos dérmicos dos folículos capilares são prováveis alvos de células-T citotóxicas auto-reativas. Isso é reforçado pelo fato da doença preferencialmente visar cabelo pigmentado em comparação a fios sem pigmentação (brancos), e ao fato de cabelos brancos crescerem preferencialmente nas áreas afetadas após tratamento. 

------------

(!) Esse privilégio imune engloba vários mecanismos (físicos e químicos) altamente regulados que barram ou suprimem a invasão e o ataque de agentes imunes nos tecidos. Múltiplos órgãos possuem privilégio imune, incluindo os olhos, cérebro, testículos, feto, fígado, intestino e folículos capilares. Por exemplo, a matriz extracelular reduz a permeabilidade linfática e protege os bulbos capilares contra a infiltração de células imunes. Falhas em um ou mais desses mecanismos podem levar a ataques autoimunes. Mais informações na Ref.2.

-------------

          Importante realçar que outros fatores como genética, estresse e agentes ambientais (incluindo infecções virais, obesidade, fumo, distúrbios de sono, consumo alcoólico) são também responsáveis pelo desenvolvimento da alopécia areata, os quais afetam a ativação imune e caracterizam a doença como uma complexa imunopatologia. Eventos de gatilho, especialmente infecções virais, podem levar ao colapso do privilégio imune dos folículos capilares (Ref.7). Aliás, COVID-19 têm sido associada com exacerbação da doença (Ref.8). Infecção com a bactéria Helicobacter pylori - um conhecido agente cancerígeno amplamente disseminado (!) - parece também ser um significativo fator de risco (Ref.9). A relevância dos fatores genéticos é reforçada pela alta frequência de um histórico familiar positivo. Com manifestação poligênica, vários genes têm sido apontados como relevantes para o desenvolvimento e progressão da alopécia areata (Ref.10). 

(!) Leitura recomendadaImportante lista de carcinógenos agora soma 256 substâncias

            Um estudo mais recente publicado no periódico Nature Commmunications (Ref.11), através de robusta análise genômica, identificou raras variantes associadas com o desenvolvimento da alopécia areata em um gene (KRT82) que parece ter importante papel na manifestação da doença. O gene KRT82 codifica uma queratina do tipo II cabelo-específica que é exclusivamente expressa na haste da cutícula capilar durante a fase anágena, e sua expressão é reduzida na pele e nos folículos capilares de pacientes com alopécia areata.

           Como o processo patológico da alopécia areata não destrói os folículos capilares, o potencial para crescimento do cabelo em pacientes com a doença é retido por vários anos e possivelmente por toda a vida. É um mito a noção de que pacientes com alopécia crônica totalis e alopécia universalis perdem a habilidade de recrescimento do cabelo e pelos corporais. Essa errônea noção pode ter origem da dificuldade histórica de tratamento da doença com os medicamentos antigamente disponíveis.


           Faixas de perda de cabelo podem ocorrer em intervalos infrequentes com longos períodos de completa remissão. Em outros pacientes, a alopecia areata é mais persistente, no sentido, por exemplo, de novas áreas de alopecia continuarem se desenvolvendo à medida que outras áreas são resolvidas. É reportado que 34-50% dos pacientes irão se recuperar espontaneamente dentro de 1 ano - apesar da maioria experienciar múltiplos episódios da alopecia - e que 14-25% dos pacientes irão progredir para alopecia totalis ou alopecia universalis, da qual completa recuperação não é comum (<10% dos casos). Duração da doença por mais de 6 meses é um fator de risco para relapso.


- Continua após o anúncio -


   DOENÇAS CONCORRENTES

          A alopecia areata está associada com várias doenças concorrentes (comorbidades), incluindo depressão, ansiedade e várias doenças autoimunes, como doença da tireoide (hipertiroidismo, hipotiroidismo, bócio e tireoidite), lúpus eritematoso, vitiligo, psoríase, artrite reumatoide e doença inflamatória do intestino. Enquanto que depressão e ansiedade - duas principais comorbidades psiquiátricas associadas (Ref.12) - são provavelmente consequência da condição como resposta ao ambiente e expectativas sociais, doenças inflamatórias e autoimunes associadas à alopecia areata estão ligadas à natureza inflamatória e autoimune da doença. A frequência dessas doenças concorrentes varia geograficamente e entre populações, sugerindo interferência de fatores genéticos.

          Doenças atópicas, como sinusite, asma, rinite e especialmente dermatite atópica, são também mais comuns do que o esperado em populações com alopecia areata e estão associadas com um início prematuro e formas mais severas de perda de cabelo.

          A alopecia areata pode envolver as unhas, com anormalidades observadas em cerca de 10-15% dos casos referidos a um dermatologista e até 44% em algumas populações. Pacientes com problemas de unhas geralmente exibem as formas mais severas de perda de cabelo (50,5% dos pacientes com alopecia severa possuem anormalidades nas unhas). Geralmente a anormalidade se resume a múltiplos pontos bem visíveis nas unhas; em alguns casos pode existir engrossamento das unhas com estriações longitudinais.



- Continua após o anúncio -


   TRATAMENTO

          Existem várias modalidades terapêuticas visando tratar a alopecia areata. No entanto, as respostas terapêuticas são variáveis e imprevisíveis. Além disso, efeitos colaterais, especialmente de corticoesteroides, são uma grande preocupação a longo prazo. Atualmente, o uso de corticoesteroides é a principal opção de tratamento para a doença, e podem ser administrados de forma tópica ou sistêmica dependendo da severidade da condição; uso sistêmico (oral, intravenoso ou intramuscular) é preferível em quadros de extensas áreas afetadas e/ou de rápida progressão. O tratamento com corticoesteroides deve ser feito após balanço de riscos e benefícios, mas está associado com altas taxas de recrescimento capilar, especialmente em pacientes com alopecia areata severa ou ativa; por outro lado, taxas de relapso também são relativamente altas após descontinuidade do tratamento (Ref.13). 

          A imunoterapia tópica oferece a melhor eficácia e segurança relativa ao tratamento a longo prazo de pacientes com alopecia areata recalcitrante (até 25% dos pacientes), ou seja, com manifestação persistente (Ref.14). Esse tipo de terapia permite o recrescimento capilar e induz uma resposta inflamatória a agentes sensibilizantes de contato aplicados nas áreas de contato. Mecanismos terapêuticos envolvem possivelmente competição antigênica - mudando o alvo das células-T dos folículos capilares para a epiderme - e/ou interferência com a atividade de citocinas, reduzindo a intensidade dos ataques imunes. Taxas de resposta terapêutica variam entre 9 e 87%, com uma taxa de efetivo tratamento de aproximadamente 30%.

          Para crianças, os mais documentados e efetivos tratamentos - apesar de dados clínicos ainda limitados - são o uso de glicocorticosteróides (sistêmico, intralesional ou tópico) e inibidores JAK (sistêmico ou tópico) (Ref.4).

          Em modelos pré-clínicos, terapias inibindo a sinalização do mediador intracelular JAK1 - importante componente dos processos de inflamação deflagrados por citocinas - têm se mostrado promissoras para prevenir e reverter a alopecia areata (Ref.15).

          No geral, diversas estratégias terapêuticas visando particularmente o sistema imune têm sido propostas, desenvolvidas e testadas para o tratamento da alopecia areata, incluindo pesquisas com células-tronco.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-10658683/Jada-Pinkett-Smiths-history-alopecia-autoimmune-disorder-caused-lose-hair.html 
  2. Connell & Jabbari (2022). The current state of knowledge of the immune ecosystem in alopecia areata. Autoimmunity Reviews, Volume 21, Issue 5, May 2022, 103061. https://doi.org/10.1016/j.autrev.2022.103061
  3. Suchonwanit et al. (2021). Alopecia Areata: An Autoimmune Disease of Multiple Players. ImmunoTargets and therapy, 10, 299–312. https://doi.org/10.2147/ITT.S266409
  4. Nakamura et al. (2022). Lifestyle Factors Involved in the Pathogenesis of Alopecia Areata. International Journal of Molecular Sciences 23(3), 1038. https://doi.org/10.3390/ijms23031038
  5. Waśkiel-Burnat et al. (2021). Therapeutic management in paediatric alopecia areata: A systematic review. Journal of the European Academy of Dermatology and Venereology, 35(6), 1299–1308. https://doi.org/10.1111/jdv.17187 
  6. Pratt et al. (2017). Alopecia areata. Nature Reviews Disease Primers, 3, 17011. https://doi.org/10.1038/nrdp.2017.11 
  7. FIvenson D. (2021). COVID-19: association with rapidly progressive forms of alopecia areata. International journal of dermatology, 60(1), 127. https://doi.org/10.1111/ijd.15317
  8. Ohyama et al. (2021). Alopecia areata: Current understanding of the pathophysiology and update on therapeutic approaches, featuring the Japanese Dermatological Association guidelines. The Journal of Dermatology, Volume 49, Issue 1, Pages 19-36. https://doi.org/10.1111/1346-8138.16207 
  9. Kiarash et al. (2022). Extragastric infection of Helicobacter pylori and alopecia areata: a systematic review and meta-analysis. Reviews and Research in Medical Microbiology, Volume 33, Issue 1, p. e114-e118. https://doi.org/10.1097/MRM.0000000000000276
  10. AL-Eitan et al. (2022). Genetic predisposition of Alopecia Areata in Jordanians: A case-control study. Heliyon, e09184. https://doi.org/10.1016/j.heliyon.2022.e09184
  11. Erjavec et al. (2022). Whole exome sequencing in Alopecia Areata identifies rare variants in KRT82. Nature Communication 13, 800. https://doi.org/10.1038/s41467-022-28343-3
  12. Kiuru et al. (2021). Psychosocial and psychiatric comorbidities and health-related quality of life in alopecia areata: A systematic review. Journal of the American Academy of Dermatology Volume 85, Issue 1, July 2021, Pages 162-175. https://doi.org/10.1016/j.jaad.2020.06.047
  13. Chanprapaph et al. (2022). Intramuscular Corticosteroid Therapy in the Treatment of Alopecia Areata: A Time-to-Event Analysis. Drug design, development and therapy, 16, 107–116. https://doi.org/10.2147/DDDT.S342179
  14. Mahasaksiri et al. (2021). Application of Topical Immunotherapy in the Treatment of Alopecia Areata: A Review and Update. Drug design, development and therapy, 15, 1285–1298. https://doi.org/10.2147/DDDT.S297858
  15. Dai et al. (2021). Selective inhibition of JAK3 signaling is sufficient to reverse alopecia areata. JCI insight, 6(7), e142205. https://doi.org/10.1172/jci.insight.142205