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O que é a Síndrome de Arlequim?

           Uma mulher de 37 anos de idade apresentou-se ao hospital com um histórico de 4 meses de recorrentes episódios de notável rubor apenas no lado direito do seu rosto após exercício físico e banho quente (Fig.1). Ela explicou que esse rubor se resolvida após cada episódio seguindo 1 hora de descanso. A paciente não reportou nenhum histórico médico relevante.

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          No exame médico, não foi encontrada nenhuma anormalidade: especificamente, o sistema nervoso da paciente - incluindo seus nervos cranianos - estavam intactos. Investigação laboratorial de rotina - incluindo contagem sanguínea total, fígado, concentrações de eletrólitos, função da tireoide, marcadores tumorais, taxa de sedimentação dos eritrócitos, concentração de proteína C-reativa e função renal - não revelou nada significativo. Uma tomografia computacional (CT) de alta resolução do peito da paciente, um ultrassom da artéria carótida, e um MRI melhorado da sua cabeça, pescoço e medulas cervical e torácica, e plexo cervicobraquial também não revelaram nada de significativo.

          Considerando os sintomas da paciente e a ausência de qualquer patologia explicando sua apresentação clínica, os médicos responsáveis concluíram um diagnóstico de Síndrome de Arlequim.

          Após o diagnóstico, e uma explicação da condição à paciente, os médicos decidiram não oferecer qualquer tratamento, já que ela não parecia estar particularmente incomodada com a anômala manifestação cutânea. Após liberação do hospital, e subsequente acompanhamento, a paciente reportou que continuava corando em apenas metade do rosto, mas sem qualquer outra reclamação.

         O relato de caso foi reportado e descrito em 2021 no periódico The Lancet (Ref.1).


   SÍNDROME DE ALERQUIM

          A Síndrome de Arlequim é uma rara condição caracterizada por rubor facial e transpiração (suor) unilaterais induzidos por exercício físico, calor e fatores emocionais. A maioria dos casos são idiopáticos, ou seja, sem uma causa (patológica ou não) identificada (!). No entanto, uma extensiva avaliação médica é necessária em ordem de descartar possíveis causas já estabelecidas para a condição, como infarto do cerebelo, esclerose múltipla, siringomielia, doenças da tireoide, neurinoma mediastino superior, schwannoma (um tumor benigno) no ápice pulmonar, neuropatia diabética, síndrome de Guillain-Barré, síndrome de Bradbury-Eggleston, bócio tóxico, tumor de Pancoast, e dissecação da artéria carótida interna.  

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(!) A síndrome de arlequim é primária em natureza na maior parte das vezes, e é mais comum em indivíduos do sexo feminino. Em cerca de 1/6 dos pacientes, no entanto, a condição é causada por uma doença ou lesão estrutural (síndrome de arlequina secundária). O tipo iatrogênico, ocorrendo após procedimentos cirúrgicos, têm sido cada vez mais reportado na literatura acadêmica, e o dano neurológico pode ocorrer em qualquer local ao longo do fluxo simpático do rosto. Um exemplo são cirurgias na medula espinal (Ref.2). Em casos primários, é geralmente adquirida, mas pode ser congênita em até 6% desses casos (Ref.3); variantes no gene SCN10A têm sido associadas à condição (Ref.4). Casos pediátricos são pouco reportados, e, aparentemente, mais comuns no sexo masculino (Ref.5).

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          O rosto é inervado pelas fibras simpáticas que se originam do hipotálamo (neurônios de primeira ordem) e de sinapses no chifre lateral da medula espinal com os neurônios pré-gangliônicos (segunda ordem). As fibras vasomotoras e as sudomotoras saem da medula espinal em T2-3 e passam através da cadeia simpática no sentido de formar sinapses no gânglio cervical superior. As fibras pós-gangliônicas (neurônios de terceira ordem) então procedem dentro do plexo da artéria carótida interna para chegar nos seus efetores. Lesões ou distúrbios nos caminhos dessas fibras podem levar a falhas no processo de sudorese (produção de suor) e de vascularização (responsável, por exemplo, pela ruborização facial).

> Leitura recomendadaPor que ficamos corados?

          Nesse sentido, distúrbio unilateral da inervação simpática do rosto levando a uma inabilidade da vasculatura facial de dilatar em resposta a um estímulo normal é pensado de ser a causa da síndrome do arlequim, ou seja, uma ausência unilateral de suor e rubor. Tipicamente, enquanto um lado do corpo ou face fica muito corado ou com bastante sudorese, o outro permanece anidrótico  (sem suor) e pálido (ou com reduzido rubor facial). Paradoxalmente, pacientes apresentam suor e ruborização compensatórios no lado simpaticamente enervado e não afetado. Geralmente a anomalia se manifesta apenas no rosto, mas braços e troncos podem também ser afetados.

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           A mais notável característica da denervação simpática cutânea hemifacial associada à síndrome é a delimitação de uma linha quase perfeita dividindo o lado afetado (com excesso de ruborização e suor/hiperidrose) daquele não afetado.


          

          A síndrome, primeiro descrita em 1988, não deve ser confundida com a Síndrome de Horner - uma ptose unilateral, miose reativa ipsilateral e anidrose hemifacial -, apesar de ambas compartilharem locais similares de lesão e algumas manifestações clínicas. Porém, existem casos onde ambas podem se manifestar ao mesmo tempo (Ref.7). A maioria dos pacientes com síndrome do arlequim não precisam de tratamento médico ou cirúrgico, exceto, claro, se existe uma doença como fator causal. Alguns indivíduos afetados benignamente pela condição podem se sentir envergonhados em público por causa da estranha manifestação sintomática (Ref.8).           

           Em casos idiopáticos com significativo estresse psicológico ou outros problemas debilitantes para o paciente, tratamento medicamentoso ou cirurgia podem ser considerados. Na alternativa cirúrgica, uma simpatectomia contralateral é recomendada (Ref.11). No caso de medicamentos, já foi reportada significativa melhora com o uso combinado de oxibutinina e propranolol (Ref.9). Injeção com toxina botulínica também tem sido sugerida (Ref.10).

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> IMPORTANTE: Mudança de cor corporal do tipo "arlequim" é uma entidade associada com várias condições além da síndrome de arlequim. Podemos citar a "ictiose arlequim" como um exemplo, uma grave ictiose congênita recessiva devido a uma mutação no gene ABCA12 (Ref.10). Na verdade, o nome 'arlequim' faz mais sentido com essa última condição - em relação ao aspecto da pele do indivíduo afetado - do que propriamente com a síndrome de arlequim.

> Arlequim faz referência à personagem do teatro Veneziano - especificamente na Commedia dell'arte Italiana - com uma máscara e roupa de carnaval formada por retalhos de tecido multicoloridos, geralmente na forma de losangos. Era similar a um bobo da corte e tinha como objetivo divertir o público. Mas o público de hoje provavelmente possui maior familiaridade com o termo quando faz referência a uma personagem fictícia de quadrinhos da DC Comics conhecida como Harley Quinn (Arlequina aqui no Brasil), inimiga do Batman e aliada do vilão Coringa. Aliás, faria mais sentido se a síndrome do arlequim se chamasse 'síndrome de Arlequina', porque o aspecto dos afetados lembra muito o traje clássico da personagem (inspirado em parte na roupa típica do arlequim).
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Chen & Zhou (2021). Must be sympathetic nervous system with unilateral facial flushing in harlequin syndrome. The Lancet, 397(10271), 318. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(21)00087-8 
  2. Zeyad et al. (2021). Iatrogenic Harlequin syndrome after thoracic spine surgery: a case report and literary review. Authorea. https://doi.org/10.22541/au.162543706.64565482/v1
  3. Vidal et al. (2016). Congenital Harlequin syndrome as an isolated phenomenon: A case report and review of the literature. European Journal of Paediatric Neurology, 20(3), 426–430. https://doi.org/10.1016/j.ejpn.2016.02.004
  4. Morice-Picard et al. (2022). SCN10A variants associated with congenital Harlequin Syndrome. British Journal of Dermatology. https://doi.org/10.1111/bjd.21011
  5. Beullens et al. (2021). Harlequin syndrome in a pediatric population: a case series. Acta Neurologica Belgica, 121(3), 625–631. https://doi.org/10.1007/s13760-021-01593-6 
  6. Algahtani et al. (2017). Idiopathic Harlequin Syndrome Manifesting during Exercise: A Case Report and Review of the Literature. https://doi.org/10.1155/2017/5342593 
  7. Elnahry et al. (2021). Concomitant Congenital Horner and Harlequin Syndromes: Case Report and Review of Literature. Journal of Pediatric Neurology 2021; 19(03): 177-179. https://doi.org/10.1055/s-0040-1709461
  8. Hans-Bittner et al. (2018). Do you know this syndrome? Harlequin syndrome. Anais Brasileiros de Dermatologia, 93(4). https://doi.org/10.1590/abd1806-4841.20187549
  9. Naharro-Fernández et al. (2021). Successful treatment of idiopathic Harlequin Syndrome with oxybutynin and propranolol. Australasian Journal of Dermatology. https://doi.org/10.1111/ajd.13665
  10. Douvali et al. (2021). Harlequin syndrome in a young girl: An opportunity to rethink the terminology. Pediatric Dermatology, 38(4), 984–985. https://doi.org/10.1111/pde.14681
  11. Kirk et al. (2023). Video-assisted thoracoscopic sympathectomy for Harlequin syndrome, European Journal of Cardio-Thoracic Surgery, Volume 63, Issue 2. ezac577. https://doi.org/10.1093/ejcts/ezac577
  12. Laiseca et al. (2018). Harlequin syndrome in a paediatric patient: a diagnostic challenge. Neurología, Vol. 33, Issue 7. https://doi.org/10.1016/j.nrleng.2016.04.011