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Por que humanos não podem beber água marinha para hidratação?

 
          Cerca de 60-70% da massa corporal humana é constituída de água (H20). Cerca de 2/3 dessa água está dentro das células (fluído intracelular) e o restante preenche os espaços extracelulares e a cama vascular no sistema circulatório (fluído extracelular). Significativa parte dessa água no corpo é perdida de várias formas ao longo do dia, através da urina, suor, processos metabólicos, respiração, entre outros. Isso implica que precisamos diariamente ingerir uma significativa quantidade de alimentos e fluídos ricos em água para repor (hidratação) a água corporal perdida (desidratação), garantindo homeostase fisiológica.

          Porém, nem todo fluído contendo água é hidratante. Um exemplo nesse sentido é água marinha ou com excesso de sais dissolvidos.

           A água dos oceanos contém vários sais minerais dissolvidos, especialmente cloreto de sódio (NaCl). Tipicamente, existe próximo de 35 gramas (g) de sais dissolvidos para cada litro (L) de água marinha, com a salinidade normal variando entre 33 e 37 g/L. A água marinha mais salgada se encontra no Mar Vermelho e na região do Golfo Pérsico (cerca de 40 g/L) devido às altas taxas de evaporação e baixo influxo de água fresca nesses locais.

          Para comparação, a água que nós tipicamente consumimos (água potável) possui uma salinidade em torno de 20 mg/L, quase 1800 vezes menos salgada.

          O principal problema de ingerir uma água muito salgada é o fato dos nossos rins não serem tão eficientes para a eliminação de sais absorvidos em excesso durante a filtragem do sangue. Rins humanos só conseguem produzir uma urina bem menos salgada do que a água marinha. Nesse sentido, acabamos usando mais água para diluir e eliminar o excesso de sais absorvidos do que a água associada à água marinha ingerida. Em outras palavras, se você ingerir apenas água marinha para matar a sede e se hidratar, você perderá muito mais água (intra- e extracelular) e irá piorar o status de desidratação (ficando com mais sede), resultando eventualmente em provável falha respiratória precedida por distúrbios no sistema nervoso central e, finalmente, morte (Ref.4).

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          Por outro lado, existem muitos animais vertebrados que conseguem se hidratar com água marinha ou consumir com segurança quantidades excessivas de sais na alimentação ou de forma acidental, através de uma série de adaptações osmorregulatórias (Ref.5). 

          Os mais notáveis exemplos, obviamente, vêm de animais marinhos, incluindo peixes, répteis, aves (!) e mamíferos. Peixes teleósteos (peixes ósseos da infraclasse Teleostei) bebem água marinha para repor água perdida osmoticamente, com o excesso de sais sendo excretado pela via retal e renal (íons divalentes) e branquial (excesso de NaCl ativamente processado). Esse consumo efetivo de água salgada pode variar em diferentes estágios de vida desses peixes. Por exemplo, enquanto o salmão adulto da espécie Salmo salar bebe água marinha, indivíduos mais jovens não conseguem sobreviver na água do mar (se desenvolvem primeiro em águas de rios para depois migrarem para o oceano). 

          Tartarugas-marinhas (répteis da família Cheloniidae) também bebem água marinha para a hidratação, excretando o excesso de sais a partir de glândulas lacrimais especiais capazes de produzir secreções com concentrações salinas maiores do que a água do mar ("lágrimas" hiperosmóticas), garantindo um ambiente interno hipotônico em relação ao ambiente marinho. Filhotes de tartarugas-marinhas recém-eclodidos dos ovos já são capazes de consumir água marinha para hidratação. No caso da tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), as glândulas de sais possuem uma função osmorregulatória ainda mais importante devido ao alto conteúdo salino da sua dieta, baseada em zooplâncton gelatinoso (Ref.6).

         Existem cerca de 124 espécies de mamíferos marinhos, com o consumo voluntário de água marinha sendo dependente da situação e variando dramaticamente entre diferentes clados. Água nesses animais é ingerida em grande quantidade a partir de alimentos obtidos no mar (ex.: algas, crustáceos e peixes) e a partir do processo de oxidação metabólica (moléculas de água liberadas durante o catabolismo energético de gorduras, carboidratos e proteínas). Muitas espécies, como o Dugongo (Dugongo dugon) e pinípedes, podem produzir urina com uma concentração osmótica significativamente maior do que a água marinha (Ref.7). Ajuda a hidratação desses animais a ausência de glândulas sudoríparas (não produzem suor).

          A maioria dos pinípedes (superfamília de mamíferos aquáticos que incluem focas, leões-marinhos, lobos-marinhos e morsas) provavelmente não bebem voluntariamente água marinha; beber água (marinha ou não) não é essencial para manter o balanço hídrico desses animais, mas pode ser importante em circunstâncias particulares (ex.: fatores climáticos). Dugongos (únicos representantes vivos da família Dugongidae) parecem consumir grande quantidade de água marinha, voluntariamente e/ou acidentalmente. 

          Lontras-marinhas (Enhydra lutris) são os únicos mamíferos marinhos conhecidos que comprovadamente bebem água marinha de forma voluntária e ativa, como um meio de excretar nitrogênio (ureia), sendo capazes de produzir uma urina mais concentrada em íons Na+ e Cl- do que o ambiente marinho onde habitam.

          Apesar de muitas fontes na internet sugerirem que baleias (dentadas e verdadeiras) bebem voluntariamente água marinha, relativamente pouco é ainda conhecido sobre os processos de osmorregulação nesses animais. Água marinha parece constituir 1-2% do volume ingerido em grandes baleias-verdadeiras (família Mysticeti), mas evidências indicam que não parece existir necessidade para que baleias consumam mais água marinha do que aquela acidentalmente ingerida junto com o alimento (ex.: krill) (Ref.5). É ainda incerto se outros cetáceos, como golfinhos, bebem voluntariamente água marinha, mas não parece existir necessidade para tal.

          Ursos-polares (Thalarctos maritimus) possuem várias adaptações para conservar a água corporal e produzem a maior parte da água necessária para a sobrevivência através de oxidação metabólica. É ainda incerto se existem outras fontes importantes de água além da alimentação rica em gordura, incluindo ocasional consumo voluntário de água marinha.  

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> Leitura recomendadaO pelo do urso-polar não é branco e, sim, transparente! 

          Por fim, é interessante mencionar que alguns vertebrados terrestres também parecem ser capazes de consumir água marinha para hidratação. Um exemplo notável nesse sentido é o rato-canguru (roedor do gênero Dipodomys), o qual consegue utilizar água marinha para sobreviver ao secretar periodicamente grandes quantidades de eletrólitos (sais) pela urina, mesmo sob excesso simultâneo de ureia (experimentos laboratoriais) (Ref.9). Algumas espécies de ratos-cangurus não precisam beber água no seu habitat natural, obtendo-a através de vegetais e insetos consumidos e do metabolismo de carboidratos (Ref.10).


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> Interessante mencionar que o volume de água requerido pelo corpo humano para a formação de urina irá depender também da quantidade de ureia na circulação sanguínea, um subproduto orgânico nitrogenado do metabolismo de aminoácidos e um dos principais constituintes da urina. Nesse sentido, é recomendado que náufragos não consumam um excesso de proteínas (ex.: carnes) para não aumentar o grau de desidratação do corpo e reduzir as chances de sobrevivência até um possível resgate.

> Muitos répteis marinhos possuem glândulas para a excreção do excesso de sais, porém não bebem água do mar para a hidratação e dependem do consumo de água "doce" (chuva, rios, etc.) para se hidratarem adequadamente. Essas glândulas não são tão desenvolvidas quanto aquelas observadas em tartarugas-marinhas e servem apenas para compensar a grande quantidade de sais ingeridos junto aos alimentos marinhos e água marinha acidentalmente ingerida. Podemos citar como exemplos nesse sentido as cobras-do-mar (subfamília Hydrophiinae) e a iguana-marinha (Amblyrhynchus cristatus). (!) O mesmo talvez é válido para muitas aves marinhas, através de glândulas nasais que excretam o excesso de sais. É ainda incerto se certas aves, como o albatroz da espécie Phoebastria irrorata, bebem água do mar visando hidratação.

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REFERÊNCIAS

  1. https://www.weather.gov/jetstream/seawater 
  2. https://oceanservice.noaa.gov/facts/drinksw.html
  3. Chakraborty et al. (2019). Health Implications of Drinking Water Salinity in Coastal Areas of Bangladesh. International journal of environmental research and public health, 16(19), 3746. 
  4. Elkinton & Winkler (1944). Physiologic Effects of Drinking Undiluted Sea Water. War Medicine, Vol. 6, No. 4, pp.241-6.
  5. Rash & Lillywhite (2019). Drinking behaviors and water balance in marine vertebrates. Marine Biology, 166(10). https://doi.org/10.1007/s00227-019-3567-4
  6. Perrault et al. (2019). Evidence of accumulation and elimination of inorganic contaminants from the lachrymal salt glands of leatherback sea turtles (Dermochelys coriacea). Chemosphere, 217, 59–67. https://doi.org/10.1016/j.chemosphere.2018.10.206
  7. Edmondson & Kolosov (2022). Review of osmoregulation mechanisms of vertebrate marine animals, the Dugong dugon, Dermochelys coriacea, Pygoscelis adeliae, and Rachycentron canadum, following ion-loading from food consumption. Cougar JUGR, Vol. 1, No. 1. https://journals.calstate.edu/cjugr/article/view/2589
  8. https://baleinesendirect.org/en/do-whales-drink-salt-water/
  9. Schmidt-Nielsen & Schmidt-Nielsen (1950). DO KANGAROO RATS THRIVE WHEN DRINKING SEA WATER? American Journal of Physiology-Legacy Content, 160(2), 291–294. https://doi.org/10.1152/ajplegacy.1950.160.2.291
  10. Longland & Dimitri (2021). Kangaroo rats: Ecosystem engineers on western rangelands. Rangelands, 43(2), 72–80. https://doi.org/10.1016/j.rala.2020.10.004