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"Dogma" na reprodução celular desafiado: Ácido retinoico não é necessário para a meiose em mamíferos

 
          Células germinativas exibem a capacidade única de gerar gametas haploides (sexuais), eventualmente dando origem a um embrião após o evento de fertilização. Para o caso de mamíferos, tem sido tradicionalmente estabelecido que o processo de iniciação meiótica para a geração desses gametas haploides é dependente do ácido retinoico, apesar de evidências nos últimos anos questionarem esse cenário. Nesse sentido, dois estudos publicados em 2020 trouxeram forte - e talvez conclusiva - evidência de que o ácido retinoico é totalmente dispensável na iniciação e progressão meiótica. Até o momento, os resultados dos dois estudos não foram refutados.

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   MEIOSE E ÁCIDO RETINOICO

          A reprodução sexual depende da formação de gametas haploides (células reprodutivas que possuem apenas um cromossomo de cada tipo no núcleo) através do processo de meiose, o qual troca cromossomos parentais replicados através de recombinação homóloga durante a prófase meiótica, seguida de duas rodadas de sucessivas divisões para gerar gametas haploides carregando nova constituição genética. Ultimamente, o processo meiótico é vital para a criação de variância dentro das espécies eucarióticas (presença de complexas células com núcleo).

> Para mais informações sobre o processo meiótico, sugestão de leituraPartenogênese: É possível nascimento virgem em humanos?

           Para iniciar a meiose, células germinativas precisam ativar um programa genético meiótico especializado que implementa os intricados eventos cromossômicos durante a fase de prófase da meiose. Desde leveduras até mamíferos, estruturas cromossômicas meiose-específicas exibem alta conservação evolutiva, incluindo complexo agrupamento sinaptonêmico para sinapses cromossômicas e recombinação homóloga através de formação e subsequente reparo das quebras meióticas das cadeias duplas de DNA. Além disso, vários genes associados a esses eventos são frequentemente relacionados ou conservados em termos evolutivos. 

           Porém, apesar de características fundamentais da meiose serem altamente conservados entre as espécies, os sinais responsáveis pela iniciação da meiose, e sua regulação, são divergentes em uma variedade de organismos. Eucariontes unicelulares geralmente entram em meiose apenas quando "pressionados" for fatores ambientais. Por exemplo, os processos meióticos e mitóticos em leveduras são governados pela abundância relativa de nutrientes no ambiente. Quando as condições de crescimento são ótimas, mitose é o processo de divisão padrão para as leveduras, já que permite um rápido crescimento utilizando os nutrientes disponíveis. No entanto, em resposta à restrição de nutrientes, mecanismos de sinalização nas leveduras (ex.: expressão do gene indutor de meiose 1, IME1) levam à ativação de programas meióticos capazes de gerar descendentes que possuem maior resiliência à nova pressão aplicada.

            Já em células germinativas de mamíferos, é tradicionalmente aceito que a iniciação meiótica requer ácido retinoico, o metabólito mais biologicamente ativo da vitamina A. O ácido retinoico é um morfógeno essencial para o crescimento e o desenvolvimento em animais cordados. A gametogênese (formação de gametas) pode ser caracterizada por três etapas distintas denominadas multiplicação (mitose), crescimento e maturação (meiose), englobando a oogênese e a espermatogênese. Na oogênese (ou ovogênese) em fêmeas, o ácido retinoico é sintetizado primariamente nos dutos mesonéfricos, aos quais os ovários embriônicos são anexados. Na espermatogênese em machos, o ácido retinoico é produzido tanto por células meióticas quanto por células somáticas nos testículos.



          É proposto que o ácido retinoico - ou ácido trans retinoico (tretinoína) - induz o programa genético meiótico primariamente ao ativar o gene Stra8 (gene estimulado por ácido retinoico 8). Em específico, é comumente defendido que o ácido retinoico e sua enzima de degradação CYP26B1 atuam de forma crucial no controle da iniciação de meiose nas gônadas de fêmeas e de machos, respectivamente. Por outro lado, é também sabido que apenas o ácido retinoico ou o Stra8 não é suficiente para a iniciação meiótica em mamíferos, deixando uma importante lacuna a ser esclarecida (Ref.4). Existe também controversa evidência in vivo desde 2011 de que a iniciação meiótica ocorre mesmo na ausência de enzimas sintetizantes de ácido retinoico. De fato, apesar do quase "dogma" da dependência entre meiose e ácido retinoico - algo ainda prevalente na literatura acadêmica recente e livros acadêmicos de Biologia -, evidência experimental de apoio é oriunda apenas de experimentos in vitro e ex vivo.

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   ÁCIDO RETINOICO: CRUCIAL OU DISPENSÁVEL?

          Em ratos, células germinativas primordiais (CGPs) são especificadas no epiblasto em torno de 6,25 dias pós-coito e colonizam as gônadas ao redor de 10,5 dias pós-coito. Nesse estágio, as gônadas começam a se diferenciar como testículos em embriões XY (sexo masculino) ou como ovários em embriões XX (sexo feminino). Em paralelo, células germinativas perdem pluripotência (não são mais capazes de diferenciação), se transformando ou em pró-espermatogônia nos testículos ou oogônia nos ovários, ambos os quais passam eventualmente por divisões meióticas para a formação de gametas sexuais.

          Assim como nos mamíferos em geral, as sinalizações responsáveis, por exemplo, de instruírem as oogônias a realizarem a transição de mitose para meiose são ainda debatidas, mas é amplamente aceito que o gene Stra8 é crucial para essa transição. 

          Junto com colaboradores, cientistas Franceses do Instituto de Biologia Valrose da Université Côte d'Azur, em Nice, e do IGBMC da Universidade de Estrasburgo, conduziram dois estudos complementares publicados em 2020 na Science Advances (Ref.2-3) testando a hipótese de que o ácido retinoico é essencial para engatilhar o processo de meiose. Para isso, os pesquisadores realizaram experimentos em fetos de ratos fêmeas, através de duas metodologias de modificação genética nesses animais: (i) inibindo a síntese endógena do ácido retinoico (perda de função dos genes Aldh1a1, Aldh1a2, Aldh1a3) e (ii) removendo os receptores de ácido retinoico (RARs). 



          Inesperadamente, os oócitos mutantes em ambos os casos expressaram de forma robusta genes meióticos, incluindo a expressão do gene Stra8. No caso da remoção das enzimas sintetizantes de ácido retinoico houve apenas uma redução de ~30% nos níveis de RNA mensageiro (mRNA) associados ao gene Stra8, mas como as modificações genéticas resultavam em mortalidade fetal, não foi possível verificar se ratos mutantes adultos seriam capazes de reprodução normal. No caso da remoção dos receptores RARs, foi possível gerar adultos dos ovários geneticamente modificados, demonstrando produção normal de gametas sexuais mesmo sem intervenção do ácido retinoico.

          Somados, os dois estudos fortemente indicam que a iniciação meiótica não precisa em nenhuma extensão do ácido retinoico.

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   CONCLUSÃO

          Considerando os resultados de ambos os estudos - e evidências prévias conflitantes -, fica evidente que o ácido retinoico não é necessário para iniciar o processo meiótico em mamíferos. Isso abre duas possibilidades alternativas que precisam ser exploradas. Ou outra molécula sinalizadora é a real protagonista nesse processo ou células germinativas são programadas para automaticamente entrarem em meiose, sendo inibidas por uma ou mais moléculas sinalizadoras ainda não descritas. Melhor esclarecimento dessa questão é especialmente importante no campo de estudos reprodutivos e otimização de técnicas laboratoriais de fertilização.

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. McClurg et al. (2021). Meiosis initiation: a story of two sexes in all creatures great and small. Biochemical Journal,  478 (20): 3791–3805. https://doi.org/10.1042/BCJ20210412
  2. Chassot et al. (2020). Retinoic acid synthesis by ALDH1A proteins is dispensable for meiosis initiation in the mouse fetal ovary. Science Advances, Vol 6, Issue 21. https://doi.org/10.1126/sciadv.aaz1261
  3. Vernet et al. (2020). Meiosis occurs normally in the fetal ovary of mice lacking all retinoic acid receptors. Science Advances, Vol 6, Issue 21. https://doi.org/10.1126/sciadv.aaz1139
  4. Zhang & Wang et al. (2021). Nutrient restriction synergizes with retinoic acid to induce mammalian meiotic initiation in vitro. Nat Commun 12, 1758. https://doi.org/10.1038/s41467-021-22021-6