Afinal, 'Pé de COVID' é real? COVID-19 causa manifestações cutâneas?
Lesões na pele similares a úlceras de frio (geladuras) – especialmente nos pés – de pacientes com COVID-19 têm se mostrado um sintoma comumente associado a doença, afetando todos os grupos de idade, com especial maior frequência entre os indivíduos mais jovens. Essas manifestações cutâneas, apelidadas de “COVID Toes” (Pés de COVID), são descritas como eritematosas até máculas púrpuras, pápulas, e/ou vesículas, e é reportado que até 6% dos pacientes com COVID-19 apresentam esses sinais clínicos, dependendo da população analisada. Porém, qual é a real relação entre COVID-19 e esses sintomas cutâneos?
COVID-19 E A PELE
No geral, não só o COVID Toes mas diversas manifestações cutâneas estão associadas com a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2). As manifestações cutâneas mais comuns são exantema maculopapular, seguida de vermelhidão papulovesicular, urticária, dolorosas pápulas acrais vermelho-roxeadas, livedo reticular e petéquia (!). A maioria dessas lesões se manifestam no tronco, mas aproximadamente 20% dos pacientes têm experienciado manifestações cutâneas nas mãos e nos pés, estas as quais, sim, são tipicamente chamadas de ‘COVID Toes’ (Ref.1-2). Lesões similares a úlceras de frio (geladuras) são as mais frequentemente reportadas, representando quase metade dos casos analisados de 1600 pacientes com suspeita de COVID-19 e apresentando manifestações cutâneas em um estudo de revisão (Ref.13).
(!) Para fotos ilustrando essas manifestações cutâneas (associadas com a COVID-19), acesse: Advances in Wound Care
Um estudo compreensivo de revisão sistemática publicado em novembro de 2020 no periódico International Journal of Dermatology (Ref.3) analisou dados de 2560 pacientes com COVID-19 apresentando também manifestações dermatológicas. Entre as manifestações mais frequentes, os pesquisadores encontraram lesões similares a urticárias do frio (geladuras) (51,5%), vermelhidões eritematosos maculopapulares (13,3%) e exantema viral (7,7%). A média de idade pediátrica dessas manifestações era de 12,9 anos e nos adultos de 34,2 anos. Em alguns casos, as manifestações dermatológicas foram o único sintoma da infecção pelo SARS-Cov-2. Um estudo de revisão subsequente, publicado em dezembro de 2020, encontrou que vermelhidões em diferentes formas são manifestações comuns em crianças sofrendo com a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica associada à COVID-19 (Ref.4), um achado corroborado por um estudo clínico conduzido no Hospital Infantil da Philadelphia, EUA (Ref.28).
Em uma revisão sistemática mais recente, publicada no periódico Skin Health and Disease (Ref.6), pesquisadores encontraram que as manifestações dermatológicas da COVID-19 variam drasticamente de paciente para paciente e podem representar o primeiro sinal da doença. Além disso, reforçaram que os sinais dermatológicos podem também representar o único sintoma da infecção viral em alguns pacientes. Nesse sentido, especialistas têm recomendado que dermatologistas e outros profissionais de saúde fiquem atentos a sinais cutâneos nos seus pacientes durante a pandemia, orientando testagem e isolamento nos casos de manifestações cutâneas idiopáticas (com causa desconhecida).
A localização das lesões similares a geladuras – as quais podem se apresentar como máculas eritematosas/purpuras, pápulas, nódulos ou placas – já foi observada nos pés em 82% dos pacientes e nos dedos em 30% dos pacientes. Essas lesões são geralmente sintomáticas, com os pacientes reportando coceira, inchaço, dor, dor ao toque, e queimação. Dor e queimação são os sintomas pediátricos e adultos mais reportados. Não parece existir uma relação direta entre a simples presença de lesões cutâneas e a severidade da COVID-19, mas existe evidência limitada de uma alta correlação entre o tipo de lesão e a severidade da doença. Pacientes com lesões similares a geladura são os que tendem a apresentar menores taxas de mortalidade e lesões vasculares estão associadas com as maiores taxas de mortalidade (Ref.7-8), porém essa relação permanece ainda em grande parte especulativa.
De fato, as lesões similares a geladuras e manchas vermelhas nas mãos e nos pés têm sido mais frequentes em crianças e jovens adultos, estes os quais estão associados na maioria dos casos com uma progressão mais leve ou assintomática da COVID-19. Essas lesões ("geladuras") geralmente se resolvem dentro de 1-3 semanas (Ref.17). Erupções cutâneas maculopapulares associadas com a COVID-19 geralmente se resolvem dentro de uma média de 8 dias (Ref.18).
MECANISMO FISIOLÓGICO
Não é ainda claro o mecanismo que leva às manifestações cutâneas ligadas à COVID-19 (!). É sugerido que a grande liberação de citocinas inflamatórias causada pelo vírus pode levar a efeitos hemostáticos, causando danos vasculares e subsequentes alterações cutâneas. Porém, danos diretos pela infecção viral também são possíveis. Em julho de 2020, um estudo publicado no periódico British Journal of Dermatology (Ref.9) foi o primeiro a estabelecer uma relação direta entre o SARS-CoV-2 e manifestações cutâneas. No estudo, os pesquisadores demonstraram a presença de partículas virais em células endoteliais e nas glândulas sudoríparas de biópsias das partes afetadas pelas lesões na pele, via análise imunohistoquímica e microspia eletrônica. Segundo concluíram os pesquisadores, essas lesões avermelhadas podem ser fruto dos danos vasculares e isquemia secundária causadas pelo vírus.
Vasculite ocorre quando existe uma robusta inflamação resultante de complexos imuno-mediados que se depositam ao redor de vasos sanguíneos, causando destruição, deposição de fibrina e formação de trombos. A apresentação dermatológica de vasculite geralmente ocorre cerca de 1 semana após o gatilho causal. Em contraste, vasculopatia é causada por um estado hipercoagulado que leva a trombose e a necrose. Várias das manifestações dermatológicas da COVID-19 consistem em uma sobreposição de ambos (vasculite e vasculopatia), espelhando também duas características bem estabelecidas da doença (trombótica e inflamatória) (Ref.10). É proposto que por causa do mecanismo de infecção do SARS-CoV-2 – através do receptor ACE2 mediado pela enzima TMPRSS2 -, existe interferência no sistema renina-angiotensina-aldosterona com subsequente aumento da vasoconstrição, e processos pró-inflamatórios e pró-trombóticos angiotensina II (Ref.11). A robusta liberação da citocina IFN-I como resposta imune à infecção pode também engatilhar lesões na pele em pacientes suscetíveis (Ref.12), e entra em concordância com o caso descrito do paciente da Ref.27.
Em um estudo de revisão, quase 70% dos pacientes com manifestações cutâneas e suspeitos de estarem com COVID-19 apresentavam também vasculite ou trombose (Ref.13).
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(!) ATUALIZAÇÃO (06/10/21): Em um estudo publicado no periódico British Journal of Dermatology (Ref.), analisando 63 voluntários com sintomas de lesões causadas pela COVID-19 (50 deles com 'Pés de COVID'), pesquisadores concluíram que os mecanismos envolvidos por trás dessas lesões envolvem uma resposta imune com altos níveis de certos autoanticorpos (anticorpos citoplásmicos IgA anti-neutrófilos) assim como o interferon Tipo I, uma proteína crucial para a resposta antiviral. Além do sistema imune, disfunções em células endoteliais que revestem os vasos sanguíneos também parecem atuar de forma crítica para o desenvolvimento das lesões.
CONTROVÉRSIA
Apesar de uma clara associação entre o aumento abrupto de sintomas dermatológicos ao redor do mundo e a COVID-19, muitos cientistas ainda são céticos ou cautelosos em relação ao real envolvimento do SARS-CoV-2 nessas manifestações dermatológicas (Ref.19-21). Isso se deve principalmente ao fato de que várias lesões na pele associadas à COVID-19 têm emergido em muitos pacientes que testam negativo tanto no RT-PCR (detecção do vírus SARS-CoV-2) quanto nos testes sorológicos (detecção de anticorpos SARS-CoV-2-específicos). Um estudo analisando 40 casos consecutivos de pacientes com lesões típicas do COVID Toes encontrou PCR negativo para todos os casos, e apenas 30% testando positivo para os testes sorológicos (Ref.22).
Podemos citar também um estudo Brasileiro analisando retrospectivamente os dados clínicos de 3982 pacientes com COVID-19 em um único hospital, com manifestações dermatológicas sendo observadas em apenas 98 deles mas nenhuma correspondendo aos sintomas reportados do COVID Toes (Ref.23). Outro exemplo nesse sentido é o massivo surto epidêmico que atingiu New York, EUA, no ano passado, mas com quase ausência de reportes dermatológicos COVID-19-associados no período entre março e junho (Ref.24). O mais recente estudo sobre a questão, investigando detalhadamente 23 casos e publicado no periódico PNAS (Ref.) também não encontrou uma associação específica entre infecção com o SARS-CoV-2 e as manifestações cutâneas.
Alguns pesquisadores sugerem inclusive uma ligação entre o COVID Toes com as mudanças no estilo de vida induzidas pelas medidas de lockdown (quarentena total) em um número de países, e não necessariamente à infecção viral. Em vários países do Sul Europeu e em um número de estados Norte-Americanos implementaram estritas medidas de lockdown, com crianças e jovens adultos ficando mais tempo em casa, com um comportamento mais sedentário, o que pode ter levado a um tipo de estase de capilaridade sanguínea, assim como uma maior exposição do pé descalço ao ambiente doméstico mais frio (Ref.25). Aliás, nos países Nórdicos, não houve perceptível maior reporte (‘surtos’) de manifestações cutâneas ao longo da pandemia (Ref.26). Nesses países do Norte Europeu as restrições impostas à população foram mais brandas, especialmente na Suécia.
Por outro lado, fica sem aparente explicação o porquê de apenas um relativo pequeno número de pessoas (a nível populacional) estarem reportando as lesões cutâneas, e, em muitos casos, associados, de fato, com a COVID-19 - como suportam os estudos mais recentes (Ref.29). Fatores como sexo, idade e genética certamente interferem nesse sentido, mas até que ponto? Estudos futuros analisando um maior acumulado de dados serão necessários para um melhor esclarecimento da questão. Até lá, alguns especialistas recomendam que mesmo após diagnóstico positivo de COVID-19, manifestações cutâneas nos pacientes sejam também investigadas de forma independente para eliminar outras causas.
> Corroborando a natureza sistêmica da COVID-19, a infecção com o SARS-CoV-2 pode produzir sintomas respiratórios, gastrointestinais, orais, neurológicos e até mesmo oculares. Para mais informações, acesse: Quais os sintomas da COVID-19?
> Mais recentemente, foi confirmado que o SARS-CoV-2 também infecta a cavidade oral. Para mais informações, acesse: Dois estudos confirmam que o novo coronavírus infecta a boca, incluindo gengiva e glândulas salivares
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- https://www.mdpi.com/2077-0383/10/2/191/htm
- https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/dth.14788
- https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/ijd.15168
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- https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0093775420300518
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- Jamshidi et al., 2021. Skin Manifestations in COVID-19 Patients: Are They Indicatores for Disease Severity? A Systematic Review. Frontiers in Medicine, Volume 8, Article 634208
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- Gehlhausen et al. (2022). Lack of association between pandemic chilblains and SARS-CoV-2 infection. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 119(9), e2122090119. https://doi.org/10.1073/pnas.2122090119