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Demônio-da-Tasmânia está evoluindo resistência contra um câncer letal e transmissível, apontam evidências

- Atualizado no dia 2 de maio de 2023 -

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          Um raro, letal e transmissível tumor tem atingido brutalmente as populações do icônico Demônio-da-Tasmânia (Sarchophilus harrisii) nas últimas duas décadas, empurrando a espécie para próximo da extinção. Nesse sentido, cientistas no mundo todo têm buscado meios de salvar esses animais, apostando em estratégias de rastreamento e isolamento de casos, e no desenvolvimento de vias terapêuticas para tratar o maior número possível de espécimes afetados. No entanto, nos últimos anos, cada vez mais demônios-da-tasmânia estão sendo encontrados recuperando-se naturalmente do devastador câncer e apresentando remissões espontânea de tumores. Esse aparente e rápido processo evolutivo - marcado por seleção natural - não apenas pode salvar a espécie mas também está abrindo potenciais caminhos para a luta contra o câncer entre humanos. 

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   DEMÔNIO-DA-TASMÂNIA

          Conhecido popularmente como diabo-da-tasmânia ou demônio-da-tasmânia, o S. harrisii é um mamífero marsupial carnívoro da família Dasyuridae, e nativo da Austrália. O 'demônio/diabo' no nome tem origem dos primeiros exploradores Europeus a se estabelecerem na Tasmânia, talvez devido às histórias que eles ouviam sobre gritos sobrenaturais dados por esses animais à noite.

          Com hábitos noturnos e altamente sociais, os demônios-da-tasmânia são hoje os maiores marsupiais carnívoros do mundo, com os adultos medindo cerca de 65 cm sem a cauda (~26 cm) e uma massa em torno de 8 kg. As fêmeas são menores, com um tamanho médio de 57 cm sem a cauda (~24 cm) e massa corporal média de 6 kg. Geralmente, essa espécie traz uma listra branca bem característica no traseiro e no peito, apesar de 16% dos espécimes selvagens não possuírem tal traço fenotípico.

             Talvez os Demônios-da-Tasmânia sejam mais bem reconhecidos pelo popular personagem de desenho animado da Warner Bros 'Taz', criado em 1954. Porém, apesar do personagem animado sugerir um comportamento altamente destrutivo e agressivo, o demônio-da-tasmânia só é agressivo contra outros da mesma espécie. Aliás, esses animais se comportam bem e ficam relativamente calmos quando estão sendo lidados por humanos, tornando até fácil o trabalho dos cientistas de capturá-los no ambiente selvagem e estudá-los em ambientes controlados. 

           A origem evolucionária do gênero Sarcophilus data de até 100 mil anos atrás, com vários registros fósseis sendo encontrados durante a Era do Gelo (Pleistoceno Tardio), e com a maioria deles localizados entre 10 mil e 30 mil anos atrás. Um representante desse gênero já extinto é o S. laniarius, o qual era bem similar ao demônio-da-tasmânia moderno (S. harrisii) mas 15% maior. Duas subespécies conhecidas são englobadas pelo S. harrisii, o S. harrisii harrissi (atual) e o S. harrisii dixonae (extinto).

          Antes encontrados também na extensão 'continental' do território Australiano, hoje os demônios-da-tasmânia estão restritos em ambiente selvagem apenas na ilha da Tasmânia (aliás, é o símbolo dessa ilha-estado). Complicando esse cenário de isolamento, nas últimas duas décadas foi observada uma redução de pelo menos 80% da população total dessa espécie, levando a comunidade científica a reclassificar em 2009 o status de conservação do demônio-da-tasmânia como 'Em perigo de extinção'  (IUCN). É estimado que hoje existam cerca de 15 mil indivíduos restantes.


 

          De longe, a principal causa para esse dramático declínio populacional é a doença do tumor facial do demônio-da-tasmânia (DFTD), a qual é uma devastadora e transmissível forma de câncer - sim, existe câncer contagioso! A segunda maior causa de mortalidade entre os Demônios-da-Tasmânia é o atropelamento em estradas, uma crescente ameaça a pequenas populações.

          A DFTD e as estradas ameaçam seriamente a sobrevivência a longo prazo dessa espécie, com severos impactos ecológicos previstos. Com a brusca diminuição e talvez eventual desaparecimento das populações do demônio-da-tasmânia, outros predadores como raposas e gatos podem se disseminar sem controle, ameaçando a fauna nativa e única da Tasmânia.

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   CÂNCER TRANSMISSÍVEL

          Desenvolvimento e progressão de câncer representa um processo evolucionário e ecológico no qual células que adquirem vantagens seletivas via modificações genética e/ou epigenética são capazes de se proliferar de forma autônoma, evitar reconhecimento imune e se propagar sem controle via expansão clonal. Porém, ao invés de morrer com o 'hospedeiro' como esperado de um típico câncer, existem raras células cancerígenas capazes de transmissão entre 'hospedeiros', persistindo na população através de contínuo contágio. Embora muitos cânceres sejam induzidos por agentes infecciosos (ex.: vírus) (1), para ser realmente transmissível as células cancerígenas precisam se mover entre indivíduos - de forma similar a agentes infecciosos e caracterizando uma "metástase interindividual". 

         Apenas três cânceres transmissíveis de ocorrência natural têm sido observados até o momento na natureza: tumor facial nos demônios-da-Tasmânia, tumor venéreo transmissível canino, e um tipo de leucemia entre moluscos marinhos bivalves.  

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(1) Para mais informações: Importante lista de carcinógenos agora soma 256 substâncias

> Em raros casos, pode existir transmissão vertical de células cancerígenas em humanos. Para mais informações: Cientistas reportam dois raríssimos e inéditos casos de transmissão materna de câncer no Japão

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            Além de ambientes e comportamentos específicos facilitando a transmissão (ex.: conflitos agressivos entre os demônios-da-Tasmânia), três condições são necessárias e suficientes para a passagem direta de células cancerígenas vivas entre hospedeiros vertebrados ou invertebrados:

- Propriedades do tecido tumoral que promovem liberação de um grande número de células cancerígenas;

- plasticidade das células tumorais permitindo sobrevivência durante transmissão e crescimento em um novo hospedeiro;

- e um hospedeiro ou tecido hospedeiro 'permissível' à invasão das células cancerígenas.

            A necessidade de confluência entre esses pré-requisitos - ao longo de um processo evolucionário (ex.: seleção Darwiniana) - provavelmente explicam o porquê do estabelecimento de cânceres transmissíveis ser algo tão raro em ambiente natural (Teoria da Tempestade Perfeita) (Ref.10). Basicamente, células multicelulares precisam retornar a um estado 'unicelular' e "egoísta", emergindo como uma nova "espécie" de parasita unicelular cujas linhagens celulares somáticas são capazes de sobreviver além da morte do hospedeiro.

           Os cães (Canis familiaris) são afetados pelo tumor venéreo transmissível (TVT). O TVT acomete usualmente a genitália externa de cães de ambos os sexos. A transmissão das células tumorais ocorre geralmente pelo coito, por meio do transplante de células tumorais para o hospedeiro susceptível que apresente a mucosa da genitália lesada. Quanto à localização, nos machos, o TVT comumente qualquer parte do pênis e do prepúcio, nas fêmeas pode envolver a vagina e vulva. O comprometimento cutâneo ocorre após traumatismo e implantação mecânica das células tumorais, com o desenvolvimento de lesões de até 6 cm de diâmetro, as quais podem se apresentar com a superfície ulcerada e hemorrágica, sem o envolvimento da epiderme. As tumorações são friáveis e apresentam secreção sero-sanguínea, cor de carne, aspecto de couve-flor ou nodular, com possível presença de infecção bacteriana secundária.

           É sugerido que o TVT emergiu entre 4-11 mil anos, com o mais recente ancestral comum das linhagens atuais desse tumor datado em algumas poucas centenas de anos atrás (Ref.13-14). Na ausência de tratamento, os tumores frequentemente regridem após 1-3 meses, e se regressão é completa então o hospedeiro se torna imune a subsequentes reinfecções (2). Existe substancial diferença entre o genoma das células de TVT e do genoma dos cães, sugerindo uma origem de outros canídeos (ex.: lobo).

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(2) Existem três fases distintas do ciclo de 'vida' do TVT: estágios progressivo, estável e regressivo. O estágio progressivo geralmente dura por algumas semanas, seguido por uma fase estável durando de semanas a meses e resultando em uma perda de aproximadamente 80-90% das células - com 10-20% das células cancerígenas permanecendo com potencial de transmissão. A fase regressiva durante entre 2 e 12 semanas e resulta no desaparecimento do tumor, ou em reentrada no crescimento progressivo levando a metástase. Diferentes células da massa tumoral podem estar em diferentes fases em um dado intervalo de tempo.

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            Neoplasia disseminada - um tipo de leucemia - têm sido observada sendo transmitida horizontalmente em várias espécies de moluscos bivalves marinhos ao redor do mundo, incluindo ostras, mexilhões e mariscos. Esse tipo de leucemia transmissível é caracterizada por amplificação anormal de células na hemolinfa, perda de habilidades fagocíticas, expressão de um novo antígeno na superfície celular, e sequestro da proteína de supressão tumoral TP53. A disseminação global da leucemia transmissível - representada por múltiplas linhagens - provavelmente foi medida por atividade antropogênica (ex.: transporte marítimo). O mecanismo exato de transmissão da neoplasia disseminada é incerto, mas evidência acumulada suporta disseminação através de células cancerígenas livres liberadas na coluna de água marinha por animais infectados (Ref.15).


Transmissão cancerígena entre moluscos marinhos bivalves foi primeiro confirmada na espécie Mya arenaria, popularmente chamada de amêijoa de casca mole. Células cancerígenas nesses moluscos podem ser transmitidas entre indivíduos de uma mesma espécie ou de espécies distintas. Ref.16


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   TUMOR FACIAL E SELEÇÃO NATURAL

          A doença do tumor facial do demônio-da-tasmânia (DFTD) é um câncer transmissível que tem causado declínios populacionais locais de até 95% e um declínio geral superior a 80% entre os demônios-da-tasmânia nos últimos 23 anos. Primeiro detectado no nordeste da Tasmânia em 1996, o DFTD têm sido quase 100% fatal desde então e em breve englobará todo o alcance territorial dos demônios-da-tasmânia, não deixando nenhuma população sem casos de infecção - casos ainda não alcançaram territórios mais ao oeste. 

           O DFTD engloba duas linhagens celulares de câncer transmissível: a linhagem tumoral original (DFT1) e a linhagem DFT2, esta última descoberta em 2014. A linhagem DFT2 resulta em similares sintomas em relação ao DFT1 - grandes tumores ao redor da boca, rosto e pescoço -, mas com uma origem independente a partir de um macho (o DFT1 possui origem de uma fêmea) (!). A transmissão de ambos (DFT1 e DFT2) ocorre via mordidas durante brigas entre os demônios-da-tasmânia, e quando os tumores aparecem ao redor da boca, esses animais acabam morrendo dentro de três a seis meses, especialmente devido à progressiva incapacidade de se alimentarem por conta própria.



           Devido ao fato das populações de demônios-da-tasmânia terem sofrido notáveis processos de deriva genética na forma de bottleneck (O que é a deriva genética?) no passado e possuírem naturalmente baixa variabilidade genética inter- e intra-populacional, eles acabaram suscetíveis à ampla disseminação do DFTD.

          Com base nessa substancial escassez de variação genômica entre esses animais, modelos epidemiológicos haviam sugerido uma suscetibilidade universal à doença e declínios populacionais muito mais acentuados do que aqueles observados hoje. Nesse sentido, populações preditas de serem extintas na Tasmânia continuam persistindo em pequenos números. Mais notavelmente, vários demônios-da-tasmânia com DFTD confirmada no noroeste da Tasmânia estão sendo recapturados nos últimos anos ou expressando uma substancial remissão ou um completo desaparecimento natural e espontâneo dos tumores.

           Investigando as variáveis genéticas associadas com a regressão do DFTD nesses casos, um número de estudos publicados desde 2016 (Ref.3-5) têm encontrado variações regulatórias em genes associados com angiogênese e risco de câncer, e indicando um rápido processo evolutivo de luta dos demônios-da-tasmânia contra o câncer, dentro de apenas 2-6 gerações. Um estudo publicado em 2016 na Nature (Ref.5) foi o primeiro a trazer robusta evidência dessa rápida evolução de resistência ao DFTD, ao realizar uma ampla análise genômica de 294 espécimes coletados de três localizações ao longo da Tasmânia. Os pesquisadores identificaram duas regiões genômicas nos cromossomos 2 e 3 com evidência de forte seleção positiva, ambas contendo genes (5 entre 7 genes de interesse) relacionados a funções imunes ou risco de câncer. Foram observadas mudanças consistentes nas frequências de alelos (mutações em nucleotídeos únicos) na ordem de 2,5% pré- e pós-alastramento da DFTD.

          Dado que o câncer associado ao DFTD tem sido quase universalmente letal dentro de 6 meses e que a prevalência rapidamente alcançou mais de 50% dos animais em idade reprodutiva, a pressão seletiva imposta pelo DFTD é muito alta, explicando a rápida resposta evolucionária via seleção natural sendo observada. Ou seja, os cientistas estão acompanhando um processo evolutivo ao vivo fomentado por uma relação patógeno-hospedeiro.

Demônio-da-Tasmânia com um tumor facial. Foto: Max Stammnitz

          Em 2021, analisando quase 16 mil loci (locais genéticos) ao longo da história evolutiva de clados diretamente ligados à origem dos demônios-da-Tasmânia (últimos 65-85 milhões de anos), e incluindo as últimas 6-8 gerações desses animais, pesquisadores em um estudo publicado no periódico Proceedings of the Royal Society B (Ref.9) reforçaram que processos únicos, genomicamente amplos e rápidos de seleção natural estão ocorrendo nessa espécie como resposta ao letal câncer transmissível que tem assolado populações desde a década de 1990. Sobreposição histórica de genes adaptativos de interesse - sugerindo seleção recorrente contra cânceres - não foi significativamente observada. 

          Os resultados do estudo são consistentes com evolução poligênica e rápida, facilitada por seleção em variações genéticas já presentes previamente à chegada da doença (aumento da frequência de alelos pré-existentes). Segundo os autores, a escala de tempo do processo seletivo seria muito curta para mutações ou fluxo genético atuarem de forma substancial na resposta contra o DFTD, e as variações genéticas identificadas estão presentes em distintas populações geograficamente isoladas. Além de confirmarem assinatura de seleção positiva nos cinco genes previamente mencionados (no caso, CRBN, ENSSHAG00000007088, THY1, USP2, C1QTNF5), eles encontraram também envolvimento de genes associados com o sistema nervoso periférico, sugerindo seleção para mudanças comportamentais, ou realçando a importância e vulnerabilidade de reparo nervoso periférico pelas células de Schwann, dada a prevalência de mordida e envolvimento dessas células na origem do DFT. Associado a variações responsáveis por regressão tumoral nos demônios-da-Tasmânia, o estudo encontrou apenas seleção alélica no gene JAKMIP3, o qual expressa uma cinase Janus de ligação proteica microtubular.

          Nesse contexto, um estudo publicado em 2020 na Science (Ref.8) realizou uma análise filodinâmica - englobando mais de 11 mil genes ao longo do genoma das células tumorais - para caracterizar em maiores detalhes a história epidemiológica do DFTD. Os resultados mostraram que a doença causada pela linhagem DFT1 está se tornando endêmica entre esses animais e exibindo um declínio da taxa de transmissão (número efetivo de reprodução inicialmente de ~3,5 caiu para ~1). Os achados sugerem que, se deixada evoluir naturalmente, a DFT1 pode ser extinto ou mesmo coexistir nas populações de demônio-da-Tasmânia - este último cenário sendo bem mais provável do que extinção da espécie. Um dos fatores apontados no estudo contribuindo para a menor transmissibilidade da doença, além de seleção natural, é a menor densidade populacional desses animais em meio selvagem (maior distanciamento social) resultante da agressiva primeira onda epidêmica.

           No entanto, os autores alertaram que a linhagem DFT2 estava se espalhando em significativa extensão, trazendo potencial novo risco à medida que a população desses animais for se recuperando.

   (!) ORIGEM DO CÂNCER

          Em um estudo publicado recentemente na Science (Ref.17), pesquisadores conduziram uma análise evolucionária e comparativa entre o genoma de referência do demônio-da-Tasmânia e o DNA sequenciado de 78 tumores DFT1 e 41 tumores 41 DFT2. Os resultados mostraram que o DFT1 emergiu em 1986, cerca de 10 anos antes de ter sido primeiro detectado em uma fêmea no nordeste da Tasmânia. Esse espécime parece ter atuado como um super-disseminador, passando suas células tumorais para pelo menos outros 6 espécimes - e eventualmente resultando nas seis principais variantes do DFT1. Já o DFT2 não parece ter emergido até 2011, cerca de 3 anos antes de ser primeiro detectado em um macho no sudeste da Tasmânia; apesar de geneticamente similar ao DFT1, o DFT2 mostrou ter uma taxa de mutação três vezes mais rápida - incluindo substituições, rearranjo, inserções de elementos transponíveis e alterações no número de cópias. Vários loci (locais genômicos) nas duas variantes mostraram sinais de seleção positiva (traços adaptativos), incluindo perda do cromossomo Y e inativação do gene MGA, mas sem seleções comuns - indicando caminhos evolutivos distintos.

           Os autores do estudo, em concordância com evidências prévias, reforçaram que a linhagem DFT2 representa uma séria ameaça para o demônio-da-Tasmânia, devido à alta taxa de mutação - diferente da linhagem DFT1 que parece ter se tornado endêmica e associada com menor taxa de mortalidade.

   POTENCIAL TERAPÊUTICO

          Além de oferecer uma esperança de preservação dos demônios-da-tasmânia, a evolução de resistência ao DFT1 pode também a ajudar os cientistas a desenvolverem estratégias terapêuticas visando cânceres na nossa espécie (Homo sapiens). Em um estudo publicado no periódico Genetics (Ref.6), pesquisadores da Universidade do Estado de Wahington e do Centro de Pesquisa do Câncer Fred Hutchinson revelaram que uma mutação pontual pode ser a principal chave que ativa a regressão das células tumorais nesses animais, através da ação do gene de supressão tumoral RASL11A, também presente nos humanos. 

          No estudo, os pesquisadores realizaram um sequenciamento genômico amplo de 12 tumores identificados em 11 demônios-da-tasmânia coletados no noroeste da Tasmânia, com 8 deles exibindo regressão tumoral e quatro sem regressão. Três tumores em regressão foram examinados com intervalos de vários meses e re-sequenciados. Foram sequenciados 15 genomas totais ao longo dos 12 tumores individuais. Os tumores em regressão exibiram reduções de volume iguais ou superiores a 15%, com um número de casos de completa remissão.

           Os pesquisadores apresentaram várias linhas de evidência que o gene de supressão tumoral RASL11A contribui para a regressão espontânea e natural de tumores. No sequenciamento genômico, eles identificaram diferenças genotípicas quase fixas entre tumores regredidos e não-regredidos em uma região regulatória para o gene RASL11A. Em uma segunda parte do estudo, os pesquisadores usaram uma análise transcriptômica para demonstrar que o RASL11A era silenciado em tumores não-regredidos mas ativado em tumores regredidos por um alelo associado à região de regulação do gene, consistente inclusive com dados da expressão do RASL11A em cânceres humanos de próstata e de cólon. Na última parte do estudo, os pesquisadores usaram vetores virais geneticamente modificados para infectarem in vitro células tumorais em proliferação e ativarem o RASL11A. Células tumorais em proliferação infectadas mostraram regressão, mas o mesmo não foi observado em células não-infectadas.

            Segundo os pesquisadores, o alelo de regressão na região reguladora do gene RASL11A pode ter efeitos benéficos ou maléficos para as células tumorais do DFTD. Ao suprimir os tumores causados pela doença, a taxa de transmissibilidade pode aumentar, já que diminui as taxas de mortalidade entre os demônios-da-tasmânia infectados. Por outro lado, ao reduzir o tamanho dos tumores, o potencial de infecção entre os demônios-da-tasmânia pode diminuir substancialmente. Isso implica que a fixação desse e de outros alelos de resistência ao DFTD pode levar ou a uma co-evolução "saudável" entre o hospedeiro e o patógeno - como visto entre cães e o CTVT, ou entre os morcegos e os coronavírus -, ou à uma completa extinção futura da doença.

          A regressão espontânea de tumores em cânceres humanos ocorre em aproximadamente 1 a cada 60-100 mil casos (~0,001%), ou seja, é um fenômeno raríssimo. Como pesquisas com humanos para explorar essas regressões naturais são profundamente limitadas por questões éticas, estudar essa aparente evolução de resistência ao DFTD dos demônios-da-tasmânia pode ajudar a desenvolver estratégias terapêuticas que induzem regressões naturais das células tumorais humanas, como demonstrado in vitro via ativação do gene RASL11A. Isso eliminaria a necessidade de tratamentos muito tóxicos, como quimioterapia e radioterapia.

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   CONCLUSÃO

           As evidências acumuladas apontam que os demônios-da-Tasmânia estão evoluindo resistência ao devastador DFTD - em particular à linhagem DFT1. E os processos evolutivos associados à luta dos demônios-da-tasmânia contra o DFTD podem não apenas salvar a espécie como também representar potenciais soluções para a nossa luta contra o câncer em humanos. Porém, essa espécie ainda continua em perigo de extinção, e outras ameaças - como os crescentes casos de atropelamento e as mudanças climáticas - podem se somar de forma preocupante aos drásticos declínios populacionais causados pelos tumores faciais. Somando-se a isso, a linhagem DFT2 continua impondo incerta mas potencialmente séria ameaça devido à sua alta taxa de mutação.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://ielc.libguides.com/sdzg/factsheets/tasmaniandevil/taxonomy
  2. https://www.zoo.org.au/fighting-extinction/local-threatened-species/tasmanian-devil/
  3. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30645971/
  4. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30321343/
  5. https://www.nature.com/articles/ncomms12684
  6. https://www.genetics.org/content/215/4/1143
  7. https://journals.plos.org/plosbiology/article?id=10.1371/journal.pbio.3000926
  8. https://science.sciencemag.org/content/370/6522/eabb9772
  9. https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rspb.2021.0577
  10. Ujvari et al. (2016). The evolutionary ecology of transmissible cancers. Infection, Genetics and Evolution, 39, 293–303. https://doi.org/10.1016/j.meegid.2016.02.005
  11. https://www.scielo.br/j/cr/a/Z5GLgjJdcbtWNyxtftMs4gx/
  12. https://www.scielo.br/j/cab/a/sb4HzJ4dNfXDdWTfjWfkC6C/
  13. Rebbeck et al. (2009). Origins and Evolution of a Transmissible Cancer. Evolution, 63(9), 2340–2349. https://doi.org/10.1111/j.1558-5646.2009.00724.x
  14. Ujvari et al. (2020). Transmissible Cancers in an Evolutionary Perspective. iScience, Volume 23, Issue 7, 101269. https://doi.org/10.1016/j.isci.2020.101269
  15. Garcia-Souto et al. (2022) Mitochondrial genome sequencing of marine leukaemias reveals cancer contagion between clam species in the Seas of Southern Europe. eLife 11:e66946. https://doi.org/10.7554/eLife.66946
  16. Giersch et al. (2022). Survival and Detection of Bivalve Transmissible Neoplasia from the Soft-Shell Clam Mya arenaria (MarBTN) in Seawater. Pathogens, 11(3), 283. https://doi.org/10.3390/pathogens11030283
  17. Stamminitz et al. (2023). The evolution of two transmissible cancers in Tasmanian devils. Science, Vol. 380, Issue 6642, pp. 283-293. https://doi.org/10.1126/science.abq6453