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O Guru Ambiental do governo Bolsonaro tem razão?


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          O Brasil é um dos mais importantes países no setor de agronegócio e um dos principais exportadores de produtos como soja e proteína animal. Hoje o país possui em torno de 5,5 milhões de propriedades rurais em seis diferentes biomas (Amazônia, Pantanal, Pampa, Caatinga, Mata Atlântica e Cerrado), englobando cera de 605 milhões de hectares, ou 71% do território Brasileiro, e 53% da vegetação nativa Brasileira. As florestas nativas nessas propriedades armazenam 105 ± 21 Gt de CO2 (21 bilhões de toneladas de dióxido de carbono) e sustentam uma riquíssima biodiversidade. Portanto, essas florestas privadas precisam ser preservadas, tanto para a proteção dos ecossistemas associados quanto para garantir o fornecimento dos serviços florestais e para o combate às mudanças climáticas disparadas pelo aquecimento global (1). As reservas legais, as quais determinam que 20-80% da vegetação nativa nessas propriedades precisam ser preservadas (dependendo do bioma), são um dos principais meios para essa preservação.

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(1) Leitura recomendada: Aquecimento Global: Uma Problemática Verdade


          Mas diversas ameaças rondam esses biomas, e grande parte deles já foram drasticamente devastados, especialmente o Cerrado e a Mata Atlântica. Segundo os dados do Deter (Detecção do Desmatamento em Tempo Real) - sistema integrado ao Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) - o desmatamento na Amazônia em julho deste ano teve um avanço de 278% em relação ao mesmo mês do ano passado, atingindo 2254 km2. Entre janeiro e julho de 2019, registrou-se um aumento de 60% no desmatamento em comparação com o mesmo período de 2018 (Ref.1,19). Como resposta, o presidente Jair Bolsonaro chamou os dados de falsos, levando também à desoneração do diretor do Inpe, o cientista, Físico e professor titular da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Galvão. A demissão gerou grande revolta dentro da comunidade científica e enfrentou críticas inclusive da Agência Espacial Norte-Americana (NASA). O Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, fez uma apresentação em público apontando supostos erros nas análises do Inpe, algo veemente refutado pelo instituto científico e diversos outros especialistas.

          O mais curioso é que Salles foi condenado em primeira instância em dezembro de 2018 por improbidade administrativa, em um processo justamente de fraude ambiental, relacionado a alterações de mapas da várzea do Rio Tietê elaborados pela USP que beneficiou uma empresa mineradora e gerou graves danos ambientais (Ref.2). Na condenação, também foi denunciado por perseguir funcionários da Fundação Florestal. Na época, Salles era Secretário do Meio Ambiente do Governo de Geraldo Alckmin (PSDB), de onde já deixa seu rastro de descaso com o meio ambiente e com a ciência.

          Mas Salles não é a única figura controversa na atual política ambiental Brasileira. Considerado um herói para muitos ruralistas e guru ambiental do presidente Bolsonaro, Evaristo Miranda é alvo também de pesadas críticas da comunidade científica, ao inflamar o público com trabalhos estatísticos considerados por muitos especialistas como distorcidos.

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   EVARISTO MIRANDA, O GURU

          Em 2018, o livro intitulado 'Tons de Verde', editado com o apoio de 15 instituições do agronegócio, trouxe sintetizada a tese "Brasil líder em preservação" escrita por Evaristo Miranda, Doutor em Ecologia e chefe da Embrapa Territorial. Desde então, a obra se tornou o livro de cabeceira de anti-ambientalistas e de indivíduos defendendo um maior desmatamento da Amazônia para a expansão da produção agropecuária. O livro alimenta a frase que acompanha com frequência a família Bolsonaro e os seus seguidores: "Somos o país que mais preserva o meio ambiente."




          De fato, mesmo após o desmatamento ter disparado este ano, com um aumento absurdo em julho, o Palácio do Planalto continua questionando a veracidade desses números e insiste que o Brasil é um "exemplo de preservação" e "tem muito a ensinar" a outros países. Seguem em coro a mesma narrativa os ministros Ricardo Salles, Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). Aliás, um dos argumentos do senador e anti-ambientalista Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), em sintonia com o senador Marcio Bittar (MDB-AC), para acabar com as reservas legais se baseia no mesmo coro:

"Não é demais reafirmar que o Brasil é o país que mais preserva sua vegetação nativa e o produtor rural é personagem central desta preservação, ao bancar do próprio bolso a conservação de um quarto do território nacional."

          De acordo com os dados apresentados na tese de Miranda, o Brasil seria o país que mais preserva o meio ambiente, e isso obviamente recebeu elevado apoio do setor ruralista. O seu tão divulgado livro Tons de Verde inclusive o levou a ganhar o cargo de coordenador de um grupo de trabalho sobre política ambiental do novo governo Bolsonaro. Aliás, Miranda tinha sido originalmente convidado para ser o novo Ministro do Meio Ambiente, mas recusou o cargo, aparentemente recomendando o Ricardo Salles para seu lugar (Ref.5).

          Porém, assim como ocorre com vários outros temas dentro do governo, apenas um lado da história é contado. Os trabalhos e argumentos de Miranda - amplamente disseminados como uma verdade absoluta - são também amplamente contestados no meio acadêmico há vários anos (não, não é algo novo "fabricado" para atacar o presidente Bolsonaro). Várias são as críticas desferidas ao guru ambiental por cientistas, ambientalistas e até mesmo por especialistas dentro da própria Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

          Aliás, um estudo publicado em 2018 por cientistas Brasileiros na Environmental Conservation (Ref.3), da Universidade de Cambridge (Reino Unido), com o título  "Os dados confirmam que o Brasil lidera o mundo em preservação ambiental?", chama os números de Miranda de "estatísticas criativas", "influenciadas por uma narrativa ideológica que distorce a realidade ambiental brasileira".

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   PROTEÇÃO E PRODUÇÃO

          José Augusto Leitão Drummond é professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB) e consultor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sendo autor ou coautor de uma vasta produção acadêmica nas ciências ambientais. Publicou ou organizou 25 livros, 65 artigos em periódicos e 31 capítulos de livros, além de resenhas, traduções, atuações como orientador, trabalhos publicados em congressos ou seminários. Dado o seu histórico acadêmico, o autor tornou-se uma das principais referências Brasileiras das ciências ambientais.

          Cursando mestrado, doutorado e pós-doutorado em proeminentes universidades Norte-Americanas, nominadamente no The Evergreen State College (Tesc), nas universidades de Wisconsin e do Colorado, em 2014 publicou uma robusta obra intitulada 'Proteção e produção: biodiversidade e agricultura no Brasil'. O livro traz em seu conteúdo dois compreensivos ensaios sobre as políticas, teorias e epistemologias de temas diversos ligados à sustentabilidade no Brasil.

          Segundo análise da Doutoranda no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB), Juliana Capra Maia, em um estudo publicado na Scielo (Ref.4), no primeiro ensaio, desenvolvido entre os anos de 2009 e de 2013, Drummond discute os usos do território brasileiro a partir de críticas ao relatório intitulado “Alcance territorial da legislação ambiental e indigenista”, de autoria dos pesquisadores da Embrapa Evaristo Miranda (coordenador), Carlos Alberto de Carvalho, Cláudio Aparecido Spadotto, Marcos Cicarini Hott, Osvaldo Tadamoto Oshiro e Wilson Anderson Holler.

           O relatório está disponível na internet desde 2008 (Ref.5), e basicamente sustenta que aproximadamente 70% do território brasileiro está legalmente “fechado à agricultura”, dada a sua destinação a indígenas, quilombolas e à proteção ambiental (áreas de preservação permanente, unidades de conservação, reservas legais). Esse zoneamento do território, derivado da legislação vigente, seria, para os pesquisadores da Embrapa, desproporcional, incompatível com as atividades já consolidadas e limitaria sensivelmente o potencial de crescimento da agropecuária no Brasil, motivo pelo qual defendem sua pronta revisão.

          De acordo com Juliana, Drummond desfere cinco grandes críticas ao trabalho de Evaristo Miranda e colaboradores:

1. Acusa os pesquisadores da Embrapa de terem se agarrado à defesa do crescimento da fronteira da agropecuária (crescimento horizontal), desconsiderando o potencial de aumento da produtividade ou a complexificação das cadeias produtivas agropecuárias, providências que agregariam valor aos produtos finais.

2. Aponta que Miranda e seu colaboradores enfatizaram de forma excessiva determinados conflitos no uso da terra e omitiram outros, chamando a atenção apenas para a incompatibilidade entre agropecuária e áreas ambientalmente protegidas, terras indígenas e terras de quilombolas, ignorando as evidentes incompatibilidades entre atividades agropecuárias e obras de infraestrutura (tais como portos, aeroportos, rodovias, linhas de transmissão de energia elétrica, gasodutos, oleodutos e respectivas faixas de domínio); entre atividades agropecuárias e áreas urbanas (tais como residências ou distritos industriais) ou entre atividades agropecuárias e áreas de mineração.  Segundo Drummond, a infraestrutura, atividades urbanas e minerárias seriam atividades com representativa ocupação do território nacional. O fato de sequer terem sido mencionadas pelos pesquisadores da Embrapa seria sintomático da sua aversão [em específico do Evaristo Miranda], ab initio, às áreas ambientalmente protegidas, às terras indígenas às terras de quilombolas.

3. Salienta que Miranda e colaboradores sequer mencionaram o fato de que as atividades agropecuárias, no Brasil, ainda são praticadas mediante uso de técnicas predatórias. Para confirmar esse argumento, Drummond recuperou dados da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que teria classificado cerca de 200 milhões de hectares das terras brasileiras (isto é, cerca de 23% do território nacional) como áreas abandonadas, sem uso ou subutilizadas. Com essa ordem de práticas produtivas, a necessidade de expansão da fronteira agropecuária tenderia ao infinito. Em outros termos, o dado da Secretaria de Assuntos Estratégicos colocaria em xeque o pressuposto de as atividades agropecuárias consistirem na principal variável estratégica de desenvolvimento do Brasil.

4. Acusa os pesquisadores da Embrapa de não terem diferenciado as unidades de conservação de proteção integral (em que não são permitidas atividades agropecuárias) das unidades de conservação de uso sustentável (em que são admitidas atividades agropecuárias além de residência, caça, pesca, extrativismo). Desse modo, segundo escreve Drummond, "as unidades de conservação fechadas para a agropecuária afetam apenas um terço da área alegada por Miranda e coautores". Além disso, as terras de indígenas e de quilombolas teriam sido equivocadamente classificadas como “áreas fechadas à agropecuária”, quando tais atividades são legalmente permitidas nessas áreas.

5. Salienta que as reservas legais e as áreas de preservação permanente - largamente desrespeitadas em território nacional - foram concebidas como mecanismos de viabilização, não como obstáculos para as atividades agropecuárias. Mesmo assim, contabilizando reservas legais, áreas de preservação permanente e unidades de conservação de proteção integral, o autor chegou à cifra de 54,78% do território nacional abertos à agropecuária, não nos 22,98% alegados por Evaristo Miranda e seus colaboradores.

          Ainda segundo Juliana, Drummond argumenta em sua obra que limitações administrativas às atividades agropecuárias são legítimas, já que limitações equivalentes já existiriam, há décadas, para as cidades e indústrias: altura máxima de prédios, número máximo de andares, taxa máxima de impermeabilização do solo, recuo obrigatório, número mínimo de vagas de garagem, quantidade máxima de gases poluentes que podem ser emitidos e assim por diante. Isso desqualificaria as queixas do grupo de pesquisa liderado por Miranda contra as limitações à agropecuária, ligadas à defesa do interesse público.

          De qualquer forma, Juliana também aponta que Drummond atribui méritos ao relatório, entende que se trata de um trabalho de escopo original (macrozoneamento do território brasileiro), de metodologia inovadora, com inferências ousadas e rico em dados. Porém, ressalta também que a pesquisa estaria enviesada pelo pressuposto de que o Brasil ainda é um país eminentemente agrário e de que, portanto, a agropecuária consistiria na variável estratégica mais relevante para a economia e a sociedade brasileiras. Nesse sentido, as unidades de conservação, terras indígenas, terras de quilombolas, áreas de preservação permanente, reservas legais, entre outras limitações administrativas garantidoras do interesse público, acabam sendo retratadas no relatório como vilãs que criam obstáculos para o desenvolvimento da nação, fazendo o trabalho de Miranda perder boa parte de seu potencial científico e reduzindo-o a uma defesa intransigente em favor da expansão perpétua da fronteira agropecuária no Brasil.

          O mais engraçado é que o contrário é o que mais ouvimos do governo, de que os ruralistas estariam sendo demonizados e sendo tratados como vilões no Brasil. De fato, Bolsonaro e aliados seguem a mesma narrativa de Miranda, glorificando a agropecuária agressiva como única forma de salvação do país, e já vimos o presidente até mesmo gritando em público que "o Brasil é dos ruralistas".

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   BRASIL, LÍDER DE PRESERVAÇÃO?

          Na sua mais recente obra (Tons de Verde), Miranda afirma que as áreas de mata nativa dentro de propriedades privadas somam 218 milhões de hectares e representam 25% do território do Brasil, fazendo do produtor rural "a categoria que mais preserva no país". Sua equipe da Embrapa estimou em R$ 3,1 trilhões o capital imobilizado nessas áreas por não serem usadas para plantação ou criação de gado - e em R$ 20 bilhões o custo de sua preservação. Fora do seu livro, Miranda também já chegou a comparar a manutenção da reserva legal com o trabalho escravo imposto aos negros durante Brasil Colônia, em discurso no VI Fórum de Agricultura da América do Sul, na cidade de Curitiba, em 2018:

        "O maior trabalho escravo da história do Brasil. Cinco milhões de pessoas obrigadas, sem ganhar nada, a fazer esse trabalho, sob coação, sob ameaça de perda de crédito."

          Para começar, temos um erro crasso nos dados expostos por Miranda. Os R$ 3,1 trilhões mencionados correspondem a um valor fruto de uma extrapolação hipotética, ou seja, caso os produtores rurais utilizassem com extrema eficiência e produtividade toda a extensão das terras, considerando que essas também exibissem sempre aptidão agrícola máxima. Isso não existe, é fantasia, é distorção sensacionalista e descarada dos fatos. Diversas características e fatores - naturais e antropogênicos - impedem a utilização total de um solo. É como se um cidadão afirmasse que seu lote vale milhões porque é possível construir um prédio nele. Aliás, o que mais tem no Brasil são áreas livres para o agronegócio muito mal aproveitadas.

          Quanto aos "escravos", Miranda está sendo mais do que desonesto. O Cadastro Ambiental Rural (CAR), é uma exigência do novo Código Florestal, aprovado em 2012, e sendo resultado de uma exaustiva negociação política que durou três anos. Essa modificação - a qual atualizou a legislação ambiental de 1965 - foi implementada justamente para beneficiar a bancada ruralista, a qual se revoltou com um decreto de 2008 que determinava multas para todos os desmatamentos irregulares. Nesse sentido, a modificação diminuiu as exigências de recuperação ambiental das áreas devastadas e anistiou os desmates feitos antes de 2008. Para compensar essa mordomia toda, os proprietários de terras precisavam provar que desmataram antes de 2008 e entrar em programas de recuperação, auto-declarando quanto tinham de vegetação remanescente em suas áreas, quanto era reserva legal e quanto era área de preservação permanente, para os dados serem depois confirmados com análises técnicas, incluindo monitoramento por satélite. O CAR é onde essas informações ficam armazenadas.

          Então, onde está a "coação", se o registro no CAR é autodeclaratório e feito em troca de um benefício do Estado (isenção de multa)? Ora, e quem não desmatou ilegalmente não perde nada. E isso porque precisamos entrar no problema mais grave relacionado a esse registro.

          Os cálculos do Miranda das áreas preservadas dentro das propriedades privadas foram feitos a partir do que os próprios proprietários declararam ao realizar o CAR. O novo Código Florestal prevê que o dono de terras é obrigado a preservar parte da área de vegetação nativa em sua propriedade (reserva legal). Na Amazônia, o percentual que precisa ser destinado para essa reserva é de 80% da propriedade, no cerrado é de 35% e nos demais biomas 20% (2). Até dezembro de 2016, Miranda e seu grupo de pesquisa analisaram todas as propriedades registradas no CAR, algo que engloba aproximadamente 71% das quase 5,5 milhões de propriedades rurais no país. Essas áreas correspondiam a 20,5% do território Brasileiro, e já as áreas protegidas em áreas nas Unidades de Conservação, administradas por autoridades públicas, compreendem 13% do território nacional. O estudo de Miranda foi publicado em 2017 - e posteriormente integrado ao seu último livro - no periódico Ciência & Cultura (Ref.6), sob o título 'Meio Ambiente: A Salvação Através da Agricultura'.

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(2) Para saber mais, acesse: Floresta Amazônica: Preservá-la não é ideologia, é futuro

          O prazo do cadastro no CAR que vencia em maio de 2015 vinha sendo exaustivamente adiado ao longo dos governos anteriores, impedindo a fiscalização e regularização dos que desmataram além do permitido em lei (desmatamento ilegal). Para piorar, Bolsonaro editou uma medida provisória em junho deste ano extinguindo o prazo, deixando os produtores livres para cumprir essa exigência quando quisessem (coincidência o desmatamento ter aumentando assombrosamente nos últimos meses, sob o descaso do governo?).
     
          Nesse sentido, um estudo publicado em 2018 no periódico Environmental Conservation (Ref.3), e realizado por Vacchiano et al, acusou Miranda e colaboradores de produzirem "estatísticas criativas", mascarando o verdadeiro status de conservação ambiental do Brasil e empurrando para debaixo do tapete diversas ameaças aos seus biomas. O estudo citou justamente o grave problema da auto-declaração de propriedade rural, apontando em específico que no banco de dados no CAR referente ao estado do Mato Grosso do Sul, apenas 952 (0,73%) das 128663 propriedades registradas no SIMCAR possuíam o CAR validado pelo Departamento do Meio Ambiente até agosto de 2018, e isso quase dois anos depois da coleta de dados de Miranda.

          Ainda segundo o estudo, quando comparado o CAR em 75 grandes propriedades rurais que juntas cobrem 187 mil hectares na área rural de Rondonópolis (MT), os reportes mostraram-se longe do minimamente confiável. O estado é o principal produtor de soja, algodão e carne bovina no Brasil e seu território superior a 900 mil km2 engloba três dos seis biomas Brasileiros (Amazônia, Pantanal e Cerrado). Rondonópolis está situado no Cerrado e através de técnicas de geoprocessamento para mapear as áreas de Reserva Ambiental e Áreas de Preservação Permanente (APP) efetivas nas 75 propriedades analisadas, os pesquisadores encontraram que em 85% delas seus proprietários declaram ter Reservas Legais maiores do que a real. E em relação às APPs, a soma de todas declaradas era de 29,78 hectares. Porém, quando os pesquisadores mediram as áreas, encontraram que elas eram 21 vezes maiores do que o reportado.

          Em outras palavras, todos os dados estatísticos de Evaristo nesse tópico são baseados em auto-declarações mais do que incertas dos proprietários rurais, as quais podem exibir flutuações gritantes.

           Somando-se a esse grave problema de falha metodológica - ou de provável análise tendenciosa -, os pesquisadores levantaram outro importante ponto. A mera existência de vegetação em uma área não é indicativo que ela está preservada em termos de biodiversidade. Cerca de 88% da fragmentada Mata Atlântica, por exemplo, está completamente desprovida das quatro maiores espécies de mamíferos neo-tropicais a esse bioma, representando um grave desequilíbrio ecológico. Em torno de 55% do cerrado foi transformado em áreas de agricultura nos últimos 50 anos, uma taxa descontrolada de devastação que ignora 12 mil espécies de plantas, 1200 de peixes, 837 de aves e 199 de mamíferos (137 espécies de animais desse total estão hoje ameaçadas de extinção), e apenas 2,2% de áreas nesse bioma são legalmente protegidas apesar da enorme biodiversidade. No semiárido Brasileiro, o qual engloba o bioma da Caatinga (exclusivo do Brasil), a desertificação já atinge quase 13% da sua área.

          Na Amazônia Peruviana - algo que provavelmente se reflete aqui no Brasil -, um estudo recente publicado na Nature (Ref.7) apontou uma preocupante contaminação de chumbo no ambiente oriunda principalmente de projéteis de armas de fogo. E, claro, temos as taxas de desmatamento na Amazônia Legal que voltaram a subir drasticamente este ano (desmatamentos ecologicamente não planejados), planos para a construção de novas mega-hidrelétricas, entre outras ameaças (3).

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(3) Leitura recomendada: Floresta Amazônica: Preservá-la não é ideologia, é futuro
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          Outra inconsistência na narrativa do Miranda. As Unidades de Conservação e as terras indígenas englobam 216 milhões de hectares, o que representa cerca de 25% do território Brasileiro. Porém, essas áreas protegidas têm uma distribuição assimétrica no Brasil: desses 216 milhões de hectares, 90% (196 milhões de hectares) estão na Amazônia, frequentemente em áreas remotas e sem nenhum interesse para a agropecuária, como o Parque Nacional Montanhas de Tumucumaque, no Amapá – que sozinho tem 3,8 milhões de hectares. Excluindo a Amazônia, apenas 5% do território nacional está sob áreas protegidas. E 90% da produção agropecuária acontece fora da Amazônia. (Ref.8)

          Isso porque não estamos fazendo referência aos vários projetos de lei visando enfraquecer de forma preocupante as leis ambientais que estão sendo empurrados por políticos cuja base de apoio figuram pesadamente os ruralistas, como o PSL, partido do presidente Bolsonaro. Além dos ataques ao Código Florestal, diversos agrotóxicos foram liberados e tiveram o risco de toxicidade rebaixado com bases não-científicas. Ainda na política, tivemos a quase absorção do Ministério do Meio Ambiente pelo Ministério da Agricultura, a comissão de mudanças climáticas abolida (4), e o controle do setor de desmatamento agora nas mãos do Ministério da Agricultura. Houve também tentativas de mover a demarcação de terras indígenas da FUNAI para a Agricultura, visando facilitar o desmatamento. O Inpe foi atacado pelo presidente, e teve o seu diretor exonerado (5).

          O Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) foi amordaçado e suas ações foram drasticamente enfraquecidas. Apesar de 95% do desmatamento nos três primeiros meses deste ano terem sido realizados de forma ilegal (Ref.9), nenhum culpado foi punido, especialmente porque o Ibama precisa agora dar um aviso antes de realizar a fiscalização. As falas do presidente contra os órgãos de fiscalização ambiental, generalizando todos como 'indústria das multas', também vêm fomentando atos violentos de madereiros, grileiros e ruralistas contra o Ibama.

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(4) O presidente Bolsonaro nega a existência do aquecimento global antropogênico e escolheu um Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que considera o aquecimento global uma "invenção da ideologia Marxista". Recomendo a leitura: Aquecimento Global: Uma Problemática Verdade

(5) Para saber mais, acesse: Grupo de cientistas lança manifesto em defesa ao Inpe
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          E a simples existência do CAR não protege a flora nativa nas propriedades rurais. Em 2014, quase 25% do desmatamento na Amazônia ocorreu nas propriedades rurais registradas do Mato Grosso, e a maior parte desse desmatamento foi ilegal.

          Em entrevista para o veículo jornalístico BBC News Brasil (Ref.10), o pesquisador da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Raoni Rajão, reforça essa falsa ideia de forte preservação ambiental no Brasil propagada por Miranda. Autor de vários estudos sobre conservação ambiental publicados em periódicos de alto fator de impacto, como a Science e a Nature,  Rajão concorda que a cobertura de vegetação nativa no Brasil possa superar 60% (apesar das áreas de vegetação nas propriedades rurais calculadas por Miranda serem mais do que incertas), mas que esse índice isoladamente não atesta que o Brasil seja líder de preservação.

          "Esse número não é alvo de controvérsia. O uso que é feito dele é que é controverso. A foto pode ser boa, mas o filme é muito ruim. O país está perdendo rapidamente sua riqueza (florestal)", critica Rajão. "O que faz o Brasil ter 60% de floresta, e não 30% ou 40%, é que a entrada (mais intensificada) na Amazônia foi a partir da década de 1970. Se for ver o percentual de floresta que tem em São Paulo, Santa Catarina, Paraná, vai ver que o índice é menor que na França, na Alemanha."

          Também em entrevista para a BBC Brasil (Ref.10), a especialista em biodiversidade Nurit Bensusan, do Instituto Socioambiental (ISA), criticou Miranda: "O Evaristo faz mágica com os números, de má-fé. Não é verdade que preservamos demais, mas se fosse, seria bom. A biodiversidade é fronteira (econômica) a ser explorada, mas não estamos investindo nisso."

          Já um levantamento da variação ao longo do tempo pelo MapBiomas (Ref.9) revela que 20% da floresta que existia em propriedades privadas foi desmatada ou degradada entre 1985 e 2017. No mesmo período, a perda de mata nativa em unidades de conservação e terras indígenas foi inferior a 1%, enquanto nas demais áreas públicas ficou abaixo de 5%. Ou seja, longe do discurso de que os proprietários rurais são os grandes protetores dos biomas Brasileiros.

          Além do distorcido discurso já denunciado por Drummond, Rajão e por Vacchiano et al., de que quase 70% dos biomas do Brasil são preservados - correspondendo a uma área de 48 países da Europa, algo que Miranda não cansa de repetir - Miranda defende que o país é líder em preservação ao usar um banco de dados gerenciado pela ONU, o World Database on Protected Areas (Ref.11), o qual compara o desempenho dos dez maiores países em extensão territorial em proteger legalmente áreas de biomas diversos. Nesse ranking, o Brasil realmente é líder, com 29-30% do território protegido, considerando unidades de conservação e terras indígenas. A média dos outros países nessa lista, como EUA, China e Canadá, fica em torno de 10%.

          Mas, saindo dessa lista, quando olhamos territórios ao redor de todo o mundo, existem 51 nações com mais áreas protegidas do que o Brasil. Todos os nossos vizinhos Amazônicos (Peru, Equador, Colômbia, Bolívia) possuem mais de 40% do território protegido, Venezuela com 54%, o Congo com 41%, Grécia com 35%, Nova Zelândia com 32%., a Alemanha, 38% A Rússia, mesmo não englobando necessariamente áreas florestais legalmente protegidas, possui 48% do seu território coberto por florestas (uma área verde quase do tamanho do Brasil). Aliás, na Rússia, quando somadas as áreas de estepes (campos naturais) e alagados, a cobertura nativa chega a 70% do país. E mesmo outros países altamente industrializados ficam próximos de nós, como a França - um dos dez maiores produtores de alimentos do mundo - que tem 26% de território protegido, Reino Unido e Japão têm 29%, a Austrália, 20%.

          Nesse mesmo caminho, enquanto o novo governo grita a toda oportunidade que os países desenvolvidos acabaram com todas as suas florestas e que por isso não teriam direito de criticar a política ambiental no Brasil, os dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) não corroboram esse discurso de suposto descaso ambiental das potências mundiais com o meio ambiente. Segundo a FAO, a área da União Europeia coberta por florestas subiu de 35% para 38% de 1990 a 2015. No mesmo período, o índice passou de 33% para 34% nos Estados Unidos, enquanto na China aumentou de 16,7% para 22,3%. Já no Brasil, houve queda de 65,4% para 59% no mesmo intervalo.



          E é válido também lembrar que o Brasil está longe de ter a maior proporção territorial de florestas, como vem sendo afirmado por aí em meio às Fake News. Países em desenvolvimento como a Guiana, Suriname e o Congo possuem, respectivamente, 84%, 90-93% e 65% dos seus territórios cobertos por florestas, enquanto o Brasil provavelmente não ultrapassa muito os 60%. Países desenvolvidos como a Finlândia, Suécia e Japão possuem, respectivamente, 73%, 68% e 68% dos seus territórios cobertos por florestas. E grande parte desses países com alta proporção de florestas vem ganhando cada vez mais massa florestal, ao contrário do Brasil.

          Nesse sentido, outro mito bastante disseminado é o de que a Europa praticamente não tem mais florestas porque devastou todas elas. Porém, isso vem de uma distorção e de uma meia-verdade. Na Europa, as atividades humanas já vem desferindo grande impacto no meio ambiente há milênios, devido à ascensão de diversas civilizações altamente complexas, vastos Impérios e sucessivas guerras de grande escala, especialmente no século XX. Isso levou à devastação de quase todas as florestas primárias na Europa Ocidental. As florestas primárias (nativas) hoje cobrem apenas 0,7% do território de 32 países (1,4 Mha), e florestas não perturbadas por humanos (sem clara presença antropogênica) em apenas 4% do território (7,3 Mha) (Ref.20). Além disso, as florestas primárias estão altamente fragmentadas, com virtualmente nenhuma delas se estendendo por mais de 500 km2 contínuos. No entanto, o território total da Europa hoje é coberto por mais de 33% de florestas, a maior parte dessa cobertura constituída por florestas semi-naturais (reflorestamento e regeneração assistida) (Ref.21).

           Na Europa Ocidental, com exceção do Reino Unido, da Holanda e da Irlanda - os quais possuem 10-13% de cobertura de florestas - o restante dos países praticamente possui um mínimo de 30% de cobertura florestal. Para citar alguns exemplos , a Alemanha possui 33%, França com 31%, Portugal com 35%, Espanha com 37%, Áustria com 47%, Montenegro 61%, e as já citadas Suécia (68%) e Finlândia (73%). A área das florestas Alemãs cresceu em mais de 1 milhão de hectares nas últimas 5 décadas. Já o Brasil perdeu em menos de 3 décadas mais de 6% da sua área florestal. No mapa interativo abaixo, temos uma visão geral da cobertura florestal ao redor do mundo e sua variação desde 1990.




         Miranda também costuma citar como justificativa para um maior desmatamento, além da falácia continuamente repetida "nós temos áreas de preservação demais", que países estrangeiros, como os EUA, agem para que não desmatemos com o intuito de proteger o agronegócio próprio, eliminando o Brasil como um competidor. Porém, a massa florestal Amazônica é essencial para a produção de chuvas no território Brasileiro (7), e destruí-la mais seria contra-produtivo.

           Para o engenheiro agrônomo André Guimarães, em entrevista para a BBC Brasil (Ref.10), um dos representantes da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, parte dos produtores rurais já entendeu que, na verdade, é o desmatamento que ameaça sua atividade. A coalizão reúne dezenas de associações do agronegócio e organizações ambientais.

         "Nossa agricultura é fortemente dependente de chuvas, mais de 90% não é irrigável. A floresta é o que mais se assemelha a uma fábrica de água. Se subtrair vegetação nativa, tem menos evapotranspiração, ou seja, as plantas jogam menos umidade para a atmosfera e há menos chuva. Isso já está acontecendo em algumas regiões do cerrado e da Amazônia", alerta Guimarães. "Comparação com outros países é inócua. Nós precisamos da nossa floresta para produzir."

          Segundo o climatologista Carlos Nobre, pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, a floresta Amazônica é essencial para resfriar a região central do Brasil e diminui as temperaturas nas terras tropicais em mais de 1°C, além de aumentar os níveis de chuva (15-25% em comparação com um cenário sem floresta).

          "As taxas de desmatamento na Amazônia brasileira aumentaram em mais de 40% e as taxas de desmatamento na Colômbia estão aumentando. Isso é muito preocupante", disse Nobre em entrevista ao Jornal da USP (Ref.18). "A floresta amazônica pode estar mais perto de um ponto de inflexão do que presumimos antes. Se o desmatamento total exceder 20% a 25% da área florestal total da bacia – atualmente é de 16% a 17% – pode haver uma transformação irreversível de mais de 60% da floresta amazônica para um tipo muito degradado de savana, liberando mais de 50 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera."

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(7) Para entender melhor como a massa florestal Amazônica controla o regime de chuvas no Brasil, acesse: Floresta Amazônica: Preservá-la não é ideologia, é futuro

           Aliás, o PIB do agronegócio brasileiro subiu 75% e a produção de carne e soja na Amazônia cresceram no período em que o desmatamento na floresta caiu 80%, entre 2004 e 2012 (8), o que reforça que não é preciso desmatar para produzir mais no Brasil. Basta preservar o meio ambiente, aproveitar melhor as terras já disponíveis, investir em tecnologias que otimizem a produtividade e seguir os resultados de diversos estudos relacionados com o tema. A própria Embrapa tem trabalhos mostrando que preservação ambiental pode e deve caminhar lado a lado com a produtividade no agronegócio. Isso sem contar as atividades diversas que podem ser realizadas nas áreas protegidas de forma sustentável, como produção de sementes, mel, extração controlada de madeira, borracha, óleos diversos, açaí, entre outros, as quais movimentam bilhões de reais todos os anos. E essa produtividade sustentável poderia gerar muito mais caso recebesse maior investimento de pessoas e tecnologias.

          Um estudo publicado em 2018 no periódico Nature Sustentability (Ref.16) buscou estimar o valor dos serviços que a floresta Amazônica fornece para o Brasil, englobando produtos diretos (madeira, sementes, borracha, etc.) e indiretos (como o fornecimento de chuva via evapotranspiração, polinização, equilíbrio ecológico e o sequestro de carbono via fotossíntese). No caso da evapotranspiração, a massa florestal Amazônica fornece água em abundância que irriga lavouras, pastagens, e mesmo reservatórios para a geração de hidroeletricidade em várias regiões do Brasil. No caso das emissões de gases estufas, o país ganha com isso no mercado de carbono, e historicamente cada tonelada de dióxido de carbono (CO2) sequestrado ou não emitido para a atmosfera rende US$5,00 (no Brasil isso é feito principalmente via o Fundo Amazônia, doado em maior parte pela Noruega).

          Os resultados do estudo mostraram que as áreas de mais alto valor (variando de US$56,7 até US$737 ha-1ano-1) mostraram ocupar 12% do território, de um total de 350 milhões de hectares. Ou seja, em apenas 12% do seu território a floresta pode fornecer entre US$7 e US$31 bilhões/ano em valor de serviços prestados ao país. Para valores variando de US$17,3 até US$56,7 ha-1ano-1, a área correspondente ocupa um total de 35%, fornecendo entre US$2 e US$7 bilhões/ano.

          Apenas cumprindo o Acordo de Paris, onde nossas emissões de gases estufas precisam ser cortadas em 37% abaixo dos níveis de 2005 até 2025, o Brasil pode ganhar quase US$50 bilhões. E isso tudo mesmo com escassos investimentos para otimizar a produtividade sustentável da Amazônia. Imagina se houvesse real investimento nessa área, ao invés da psicopatia anti-ambiental de só querer devastar.

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(8) Fica a sugestão de leitura, onde o Observatório do Clima desmentiu várias desinformações sendo propagados pelo Evaristo Miranda: Agromitômetro: Evaristo de Miranda

         E, reforçando, é falacioso sugerir que o Brasil possua pouca área disponível para o Agronegócio. O Brasil é o terceiro maior país em área de produção agropecuária, ficando atrás apenas da China e dos EUA. São 245 milhões de hectares dedicados à lavoura e às pastagens no país, quase 1,5 vezes a área agropecuária de toda a Europa. Somando os campo naturais, são 295 milhões de hectares disponíveis para a agropecuária, equivalente a 34% do território nacional, algo próximo da área total do planeta voltada para as atividades agropecuárias  (37%). E mais: quase 90% das áreas desmatadas desde a década de 1980 estão sub-utilizadas ou abandonadas, uma gigantesca oportunidade de reaproveitamento dessas terras sendo, portanto, perdida.

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   EMBRAPA: VOZ ÚNICA?

          A Embrapa é uma instituição pública de pesquisa com mais de 10 mil empregados, onde cerca de 2500 deles são cientistas. Miranda é apenas um deles. O instituto tem atuado de forma decisiva para o progresso do agronegócio nos mercados internacionais através da criação de novas tecnologias e emprego das mais avançadas ferramentas biotecnológicas para aperfeiçoar a produção agrária no Brasil. Seus esforços permitiram o desenvolvimento de diferentes novas variedades de soja com diferentes fotoperíodos e que são melhor adaptados às variações de luminosidade no Hemisfério Sul, transformando a soja em uma planta tropical e também adaptada à latitude zero.

          Porém, quando se trata de políticas e planejamento ambiental, o instituto é dividido. Diferente do que boa parte do público pensa, Miranda não é uma voz única nesse tópico dentro da Embrapa.

          O engenheiro agrônomo Eduardo Assad, pesquisador da estatal desde 1987 - e um dos mais respeitados da Embrapa - e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), durante um seminário do MapBiomas, no ano passado, afirmou que existem vários pesquisadores que procuram se afastar de Miranda (Ref.13).

          "Existe uma Embrapa muito séria e existe um grupo dentro da Embrapa que não é respeitado nem dentro da Embrapa. [A Embrapa Territorial] Está a serviço do que tem de pior na política ambiental e rural brasileira", disse Assad, atribuindo o espaço de Miranda no órgão desde a década de 1980 a "apoio político".

          Assad explicou ainda que Miranda chefia apenas um dos 16 laboratórios de sensoriamento remoto da Embrapa, embora ele, Miranda, se apresente como sendo o chefe de todo o sensoriamento da organização. Assad também afirmou que, ao longo dos últimos 30 anos, Miranda vem publicando números falseados, feitos para agradar quem o corteja. Assad conta como Miranda muitas vezes publica várias "atualizações" de seus dados, até eles baterem com o que a ciência demonstra, mas que, em vários casos, mantém os dados errados. E isso, de fato, foi exposto várias vezes neste artigo. Assista ao vídeo abaixo para melhor entender a visão do pesquisador.


            


           Aliás, Assad e mais de 100 outros pesquisadores da Embrapa assinaram em maio deste ano uma nota técnica contra o projeto de lei absurdo de Flávio Bolsonaro que tenta acabar com a reserva legal nas propriedades rurais (leia aqui a nota na íntegra), algo fomentado pelas ideias de Miranda.

          Um robusto estudo coordenado por Eduardo Assad (“Invertendo o sinal de carbono da Agropecuária Brasileira - Uma Iniciativa do Potencial de Mitigação de Tecnologias do Plano ABC de 2012 a 2023”), e publicado em julho de 2015 pelo Observatório ABC (1), mostrou que entre 2012 e 2023, é possível chegar a 1,8 bilhão de toneladas de CO2 equivalente, somando emissões evitadas e carbono armazenado no solo, apenas pela adoção de três das tecnologias preconizadas pelo ABC (recuperação de pastagens, integração lavoura-pecuária e integração lavoura-pecuária-floresta) em 52 milhões de hectares de pastos degradados. Ou seja, utilizando tecnologias de ponta desenvolvidas na Embrapa, é possível produzir muito mais sem necessidade de desmatar mais, apenas recuperando e/ou melhor aproveitando áreas degradadas, abandonadas ou subutilizadas no país.

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(1) Acesse o documento do estudo aqui.

          A Embrapa calcula que, até 2025, seja possível aumentar a produção de proteína animal em 35% e, ao mesmo tempo, reduzir em 25% a área de pecuária no Brasil. Essa redução de 450 mil km² – uma cidade de São Paulo e meia – seria muito importante não só para a agropecuária, mas sobretudo para que o país cumpra a meta de restaurar 12 milhões de hectares de floresta estabelecido no Acordo de Paris.

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   TERCEIRA VIA AMAZÔNICA

           Carlos Afonso Nobre, notável cientista climático, metereologista do INPE e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Mudanças Climáticas, defende que é preciso apostar na bioeconomia baseada no uso dos ativos biológicos e biomiméticos para desenvolver a Amazônia. Pesquisando sobre as mudanças climáticas e a Amazônia há mais de quatro décadas, Nobre afirma que se o desmatamento continuar avançando e as temperaturas na Amazônia ultrapassarem um aumento de 4°C, o bioma corre o risco de se transformar em uma savana. Hoje o aumento de temperatura já alcançou 1,5°C. Diferente do discurso do governo, Nobre insiste que a questão climática não pode ser tratada como algo de segundo plano e que o desenvolvimento sustentável precisa ser encarado como obrigatório no atual contexto do século XXI (Ref.24-25). Segundo Nobre é preciso zerar o desmatamento no bioma Amazônico.

           Nesse caminho, Nobre propõe um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, uma economia de floresta em pé, na qual o valor maior são os produtos da biodiversidade. Pega o exemplo do açaí, um produto que há 20 anos não era nada e hoje já representa US$ 1,5 bilhão para a economia do bioma.

          "Os ativos biológicos na Amazônia são muito superiores do que se substituíssem a floresta por pastagem para a pecuária, por grãos para a agricultura ou por extração de minérios. Mas, para isso, precisamos realmente fazer as novas tecnologias chegarem à Amazônia e adicionarem valor às cadeias produtivas. Eu dei o exemplo do açaí porque já é uma realidade, mas levantamos uma lista com mais de mil produtos com potencial, como a castanha, o guaraná, a andiroba, a copaíba, o pau-rosa. Nossa proposta também é muito preocupada com o bem-estar e a prosperidade das populações amazônicas. Não é como a mineração, em que apenas se tira o valor da Amazônia e o leva para outro lugar. Outro setor do nosso projeto é a alta tecnologia biológica. Queremos capacitar populações para que elas próprias façam o genoma das espécies que dominam, com base no conhecimento tradicional. Fariam o genoma de dezenas de milhares de espécies, e isso no futuro teria um enorme potencial econômico a partir dos recursos biológicos e genéticos", disse nobre em uma entrevista para a National Geographic Brasil (Ref.25).

          Essa proposta de desenvolvimento sustentável da Amazônia - apelidada de Terceira Via Amazônica, ou Amazônia 4.0 (número que faz referência a utilização das tecnologias modernas da quarta revolução industrial) - já está sendo trabalhada por Nobre e sua equipe. No vídeo abaixo, em uma palestra sua na blastU, Nobre detalha melhor o seu projeto.

          


           Comentando sobre a alteração do Código Florestal de 2012, Carlos Nobre também é bastante crítico (Ref.25):

           "A maior preocupação que tenho é o fato de que a lei, com o novo Código Florestal, perdoou a ilegalidade de todos os desmatamentos até julho de 2008. Se de tempos em tempos, de dez em dez anos, passar uma lei que torne legal um desmatamento originariamente feito de forma ilegal, isso transmite para o setor agressivo, conservador, atrasado da agropecuária a noção de que não existe legislação. Que eles podem invadir terra pública, que podem desmatar, que podem roubar madeira. Que um dia aquilo tudo será perdoado, as multas irão desaparecer, as terras serão legalizadas… Ou seja, é uma sinalização de que não é importante nem necessário acompanhar o Código Florestal de hoje, que ainda é rigoroso em muitos aspectos. Ninguém interpretou ainda qual a força dessa bancada no novo Congresso, mas ela tem sido historicamente muito forte no Brasil. É uma fraqueza da democracia, em um país em que as leis têm uma duração curta e são modificadas por interesses de poderosos política e economicamente."

          "É importante dizer que o setor moderno da agricultura e da pecuária já se coloca fortemente contra o avanço do desmatamento e das queimadas, porque já se deu conta de que isso é prejudicial para os próprios negócios. Não só no sentido de diminuir a atratividade dos produtos brasileiros em mercados ambientalmente rigorosos, como o europeu, mas também porque manter o máximo possível de biomas originais traz benéficos para a produção agrícola e pecuária."

          "A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tem experimentos recentes que mostram um enorme aumento da produtividade nos sistemas chamados “integração lavoura-pecuária-floresta”. Quando se coloca um sombreamento, o gado produz muito mais leite e muito mais carne. Isso já era algo conhecido, mas agora finalmente começa a ser disseminado entre os pecuaristas e agricultores do setor moderno, que escuta a ciência e a tecnologia."

           "Infelizmente, temos um setor numericamente expressivo que ainda possui uma visão de expansão continuada da fronteira agrícola, sobretudo da pecuária. Estão muito mais preocupados com a posse da terra do que com uma visão empresarial de produtividade. É um pouco daquela mentalidade da colonização que ocorreu nos Estados Unidos, marcada pela força da violência, das armas, a expulsão das comunidades indígenas que eram as reais proprietárias da terra. Nesse cenário, quadrilhas criminosas tomam terras públicas e depois as vendem a pecuaristas."

          Em uma publicação escrita para a Science Advances (Ref.26) em 2018, Carlos Nobre e Thomas E. Lovejoy  (pesquisador na Universidade de George Manson, EUA) alertaram que um ponto catastrófico de não retorno para o bioma Amazônico pode ser alcançado caso o desmatamento ultrapasse 20-25% da sua área original, caso as mudanças climáticas e as taxas atuais de queimadas sejam levadas em consideração. Secas mais severas registradas em 2005, 2010 e 2015-2016 e inundações severas de 2009, 2012 e 2014 na região Amazônica podem já indicar sintomas de que todo o sistema está oscilando. Eles lembraram também que o Brasil se comprometeu a reflorestar 12 milhões de hectares até 2030 na Conferência das Partes de 2015 em Paris, porém até o momento as áreas de ocupação florestal continuam ficando cada vez mais negativas.

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   CONCLUSÕES

          Combater o desmatamento, promover recuperação florestal, mudar práticas agrícolas e frear a degradação das terras no mundo inteiro não só são medidas de preservação ambiental e de combate às mudanças climáticas, como também são importantes aliados para o fomento da produtividade. Muitos ruralistas querem destruir para produzir porque consideram essa a forma mais fácil para grandes lucros, sem necessidade de significativo investimento. Porém, isso traz prejuízos de todos os lados, a curto, médio e longo prazo, desde danos no comércio internacional até a perda de cruciais serviços oferecidos pelas florestas e pelos biomas em geral. Para produzir mais no Brasil, NÃO é preciso desmatar mais. Já existe espaço mais do que suficiente para isso, incluindo áreas já desmatadas ou sub-aproveitadas/degradadas. Falta apenas força de vontade e respeito com as próximas gerações.


REFERÊNCIAS
  1. http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/deter 
  2. https://www.conjur.com.br/dl/juiz-nega-liminar-mantem-ricardo-salles.pdf 
  3. Vacchiano, M. C., Santos, J. W., Angeoletto, F., & Silva, N. M. (2018). Do Data Support Claims That Brazil Leads the World in Environmental Preservation? Environmental Conservation, 1–3.  
  4. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922016000300877
  5. https://revistagloborural.globo.com/Colunas/bruno-blecher/noticia/2018/12/quem-e-o-guru-ambiental-de-bolsonaro.html
  6. http://www.alcance.cnpm.embrapa.br
  7. Miranda EE (2017a) Meio ambiente: a salvação pela lavoura. Ciência e Cultura 69 (4): 38–44
  8. https://www.nature.com/articles/s41893-019-0338-7
  9. http://www.observatoriodoclima.eco.br/agromitometro-evaristo-de-miranda/
  10. http://mapbiomas.org/
  11. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49081586
  12. https://data.worldbank.org/indicator/ER.LND.PTLD.ZS?end=2014&locations=BR&name_desc=false&start=1990
  13. http://www.fao.org/3/a-i4793e.pdf
  14. https://www.youtube.com/watch?v=FgVAlNOdtkY
  15. Ferrante L and Fearnside PM (2019) Brazil’s new president and ‘ruralists’ threaten Amazonia’s environment, traditional peoples and the global climate. Environmental Conservation page 1 of 3.
  16. Strand, J., Soares-Filho, B., Costa, M. H., Oliveira, U., Ribeiro, S. C., Pires, G. F., … Toman, M. (2018). Spatially explicit valuation of the Brazilian Amazon Forest’s Ecosystem Services. Nature Sustainability, 1(11), 657–664.
  17. https://g1.globo.com/natureza/blog/andre-trigueiro/noticia/2019/01/17/video-sugerindo-que-brasil-ja-tem-areas-protegidas-demais-viraliza-nas-redes-e-gera-polemica-na-comunidade-cientifica.ghtml
  18. https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-ambientais/relatorio-do-ipcc-proteger-florestas-barra-mudanca-climatica-e-garante-agricultura/
  19. https://jornal.usp.br/atualidades/conflito-sobre-dados-da-amazonia-derruba-diretor-do-inpe/
  20. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/ddi.12778
  21. https://www.unece.org/fileadmin/DAM/timber/meetings/20151102/ToS_Meeting/8-StEF15-MARTIN.pdf
  22. https://ourworldindata.org/forests 
  23. http://www.fao.org/3/y1997e/y1997e0x.htm
  24.  http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/581635-amazonia-4-0-a-criacao-de-ecossistemas-de-inovacao-e-o-enraizamento-de-uma-nova-bioeconomia-entrevista-especial-com-carlos-nobre
  25. https://www.nationalgeographicbrasil.com/entrevista/2019/01/entrevista-carlos-nobre-clima-amazonia-bolsonaro-governo
  26. https://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaat2340