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Devemos eliminar a multa para o transporte de crianças sem cadeirinha?


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          Na última terça-feira (04/06), o presidente Jair Bolsonaro entregou à Câmara dos Deputados um projeto de lei mais do que polêmico, o qual altera trechos do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) (Ref.1). Sob a justificativa de acabar com a indústria das multas, Bolsonaro entregou um texto que basicamente fomenta um trânsito mais perigoso, ao dificultar a suspensão do direito de dirigir diante de infrações (aumentando de 20 para 40 pontos na carteira o requisito para essa ação), ao aumentar o prazo para a renovação da CNH (exame de aptidão física e mental) de 5 para 10 anos (no caso de idosos, de 3 para 5 anos), ao anular a necessidade dos condutores das categorias C, D e E de se submeterem a exames toxicológicos para a renovação da CNH, ao retirar o status de multa gravíssima para motociclistas que usam capacete sem viseira ou óculos de proteção, ao diminuir drasticamente a fiscalização via radares, entre outros.

           Mas entre  as controversas mudanças previstas no projeto de lei, a que mais chama a atenção é em relação ao transporte de crianças. De acordo com o CTB, as crianças  com idade inferior a 10 anos devem ser transportadas nos bancos traseiros, onde resolução do Contran, de 2008, determina obrigatório o uso do bebê-conforto, cadeirinhas ou assento de elevação para crianças de até 7 anos e meio. Entre sete anos e meio e 10 anos, a criança deve apenas usar o cinto de segurança no banco de trás. O artigo 168 do CTB diz que a infração é gravíssima, com perda de 7 pontos na carteira, e há multa R$ 293,47, além de retenção do veículo até a regularização da situação.

          Na proposta do presidente, não existiria mais multa e retenção do veículo, e a punição para o transporte irregular de crianças seria feita apenas com advertência por escrito e perda de pontos na carteira. Considerando que o projeto de lei também aumenta substancialmente o limite de pontos na CNH para a suspensão do direito de dirigir, temos um fortíssimo incentivo para o transporte irregular e mais do que perigoso de crianças nos carros.

          Segundo pseudo-justificou Bolsonaro: "Todo mundo que é pai e mãe é responsável. Está mexendo com o seu filho. Precisa estar na lei algo para o seu filho ser protegido? Nem precisava de lei. Quem tem responsabilidade sabe disso, vai lá e bota a cadeirinha atrás e leva o bebê ali atrás. Continua valendo a infração para pontuação, apenas tirei o dinheiro. Vamos ver se o pessoal vai começar a multar como multa. Ou é apenas a multa pela multa?" Também com base no achismo disse que "advertência é mais do que suficiente."

          Especialistas são virtualmente unânimes ao criticarem essa mudança, a qual é mais uma tomada pelo governo sem base em evidências científicas, visando apenas agradar o eleitorado em detrimento da segurança pública.

          E por que é tão perigoso retirar a falta da cadeirinha do status de infração gravíssima?

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   FATOR DE PROTEÇÃO

           Diversos estudos nacionais e internacionais já mostraram que o uso de cadeirinhas ou assento de elevação são fatores de proteção essenciais para a prevenção de mortes durante acidentes de trânsito, assim como o uso de cintos no banco de trás (algo que infelizmente tende a ser negligenciado) (1). Segundo a National Highway Traffic Safety Administraion (NHTSA), o uso apropriado de cadeirinha do tipo bebê-conforto é 71% efetivo na redução do risco de morte de bebês com menos de 1 ano de idade. Outros estudos encontram efetividades superiores a 80% para a redução no risco de graves danos e de 28% na redução de mortes para crianças em geral com o uso desses assentos infantis. A Academia Americana de Pediatria (APP) recomenda o uso universal desses acessórios para todos os bebês desde 1974. Aqui no Brasil, com base nas evidências científicas, o uso da cadeirinha passou a ser obrigatório em 2008. Dados do Ministério da Saúde mostram que, de 2008 a 2017, as mortes de crianças que estavam em veículos diminuíram 12,5% após a medida.

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(1) Para saber mais, acesse:  Não subestime o uso do cinto de segurança no banco de trás!


          Diferentes países adotam legislações diferentes para a questão do uso das cadeirinhas, mas a maior parte trata o acessório como essencial para a segurança no trânsito, com 84 nações impondo legalmente sua obrigatoriedade. Nos EUA, todos os estados requerem que as crianças sejam transportadas nas cadeirinhas ou nos assentos de elevação até que elas alcancem uma altura ou uma massa corporal mínima. A maior parte das crianças alcançam dimensões corporais suficientes para a passagem ao banco normal traseiro (com cinto) entre 8 e 12 anos. No Reino Unido, o governo recomenda que todas as crianças até os 12 anos de idade utilizem esses acessórios de segurança. No Brasil, a lei já é frouxa ao permitir uma idade inferior a 8 anos de idade para a obrigatoriedade desses acessórios.


          Em entrevista  ao Jornal Nacional (Ref.6), especialistas criticaram bastante a intenção de mudança no CTB referente ao transporte seguro das crianças. Segundo Edson Liberal, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, “esse é um assunto que não se discute, não tem mais discussão. A literatura já está mais do que consolidada no sentido de mostrar a eficácia e a eficiência em relação ao uso desse dispositivo.” Em relação específica à extinção das multas, Dirceu Rodrigues Alves, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET), afirmou: “Vai haver um relaxamento, vão deixar de obrigar as crianças a usarem a cadeirinha e, logicamente, os acidentes vão acontecer. E uma criança solta dentro do veículo é igual a acidente fatal. O sujeito precisa ser punido e punido severamente pelo ato cometido. A multa é um fator educativo, é um motivo para que ele sinta que errou.”

          De fato, estudos de revisão sistemática e meta-análise já mostraram que não basta apenas promover programas educativos para aumentar o uso e a aderência desses acessórios de proteção no trânsito. Por comodidade ou crenças pessoais, muitos pais, mesmo sabendo da importância dos assentos, frequentemente não os usam. As causas são diversas, como eventuais resistências e choros das crianças e bebês posicionados nesses assentos, preço do acessório, ou mesmo a errônea ideia de que segurar o bebê no braço enquanto dirigindo é uma prática ainda mais segura (um problema sério na China, Coreia, Itália e em Singapura). Punições mais pesadas ajudam a encorajar o uso desses dispositivos e incentivam os pais a buscarem formas de posicionarem com conforto as crianças nesses assentos - incluindo orientação de profissionais - e a investirem financeiramente nesses acessórios.

            Além disso, as multas e detenção dos veículos fortemente estimulam os pais a buscarem mais informações sobre as cadeirinhas e os assentos de elevação, fomentando organicamente a conscientização sobre a importância desses acessórios e a disseminação de boas informações a mais pessoas.

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   COMPRA E USO DO ACESSÓRIO

           Mas não basta apenas comprar qualquer cadeirinha ou assento de elevação e colocar a criança ou o bebê. Existem vários tipos desses acessórios, e o melhor é pedir a orientação de um profissional de saúde nessa hora. Além disso, é preciso fazer o uso responsável desses acessórios para usufruir sempre o maior fator de proteção possível e prevenir acidentes associados ou não ao trânsito. Um estudo publicado em 2015 no The Journal of Pediatrics (Ref.7), analisando 291 famílias Norte-Americanas, encontrou, por exemplo, que quase todos os recém-nascidos nessa amostra estavam sendo colocados de forma incorreta nas cadeirinhas, reduzindo significativamente o fator de proteção.

          Entre algumas importantes dicas que podemos listar, estão:

- Quando seu bebê nasce, é necessário a presença de uma cadeirinha para trazê-lo do hospital até a sua casa;

- Bebês prematuros com menos de 37 semanas podem precisar ser avaliadas por um profissional de saúde no primeiro uso da cadeirinha para verificar sua adaptabilidade e segurança, incluindo principalmente a análise do risco de dessaturação, apneia ou bradicardia. O propósito primário é identificar aqueles bebês que irão ter problemas cardiorrespiratórios quando colocados em uma posição vertical no assento especial. Mas não existe um consenso na literatura acadêmica sobre a questão.

- Sempre use a cadeirinha para colocar seu filho pequeno quando usar o automóvel, independentemente da distância a ser percorrida;

- Leia com atenção o manual de instruções do acessório para o uso apropriado e seguro;

- Cadeirinhas e assentos de elevação devem sempre ser usados no banco traseiro. Caso inexista banco de trás no veículo, esses acessórios devem ser colocados na parte da frente apenas se não existirem airbags frontais ou laterais, ou caso o sistema de airbag tenha sido desligado.


          E quando você for escolher uma cadeirinha pela primeira vez:

- O assento deve acomodar as dimensões da criança e conseguir ser apropriadamente instalado no seu veículo. É recomendado levar a criança e o carro visados na hora da compra para testar o acessório quanto ao conforto, adaptabilidade e à segurança;

- O melhor é comprar um acessório novo, já que os usados frequentemente não virão com instruções e podem apresentar danos que os tornem não-seguros;

- NÃO USE um acessório fora da data de validade, porque pode estar comprometido;

- NÃO USE um acessório que tenha sido retirado do mercado. Verifique se existe aprovação dos órgãos competentes (INmetro, por exemplo) para o produto.


          É válido reforçar aqui que esses acessório devem ser usados apenas para o seu único propósito de transportar crianças dentro de um veículo. NÃO DEIXE seus filhos dormindo nesses assentos. Por comodidade, e desconhecimento de riscos associados, muitos pais costumam deixar o bebê dormindo nesses assentos fora ou dentro do carro parado. Nos EUA, um estudo mostrou que 62,9% das mortes de bebês ligadas ao sono ocorrem nesses assentos. O estudo, publicado em maio deste ano no periódico Pediatrics (Ref.9), analisou quase 12 mil mortes de bebês reportadas entre 2004 e 2014, e encontrou que aproximadamente 3% delas - 348 mortes - ocorreram em dispositivos de assento, a maioria cadeirinhas e quase sempre quando os bebês não estavam viajando nos carros (apenas 0,2% quando o carro estava em movimento). Mais da metade das mortes nas cadeirinhas ocorreram quando o bebê foi deixado dormindo nelas dentro de casa (2).

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(2) Leitura recomendada: Alerta: pais não devem comprar posicionadores de dormir para o bebê

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   CONCLUSÃO

          Não existe justificativa científica ou lógica - em termos de segurança pública - para a aprovação de um projeto de lei que diminui drasticamente as punições para pais que transportam seus filhos pequenos em veículos sem a cadeirinha. Ao invés de empurrar projetos que visam somente o aumento de popularidade, gritando aos quatro ventos o "fim da indústria das multas", o presidente precisa focar em ações que melhor conscientizem os motoristas e tornem o trânsito mais seguro. No caso das cadeirinhas, por exemplo, um estudo realizado em um hospital-maternidade na Grécia mostrou que disponibilizar um empréstimo para a compra desses acessórios mostrou-se bastante efetivo em termos de custo-benefício, ajudando pais em pior situação financeira a adquirirem o item de segurança e diminuindo os gastos com sérios danos em acidentes de trânsito (Ref.11). Já o projeto de lei do governo apenas incentiva ainda mais os pais a não comprarem o acessório.

          Mais uma vez o governo está atropelando as evidências científicas e ignorando a literatura acadêmica para promover ações governamentais irresponsáveis. Ao gritar "fim da indústria das multas ambientais" (2) e "fim da indústria das multas no trânsito", isso apenas alavanca a indústria do desastre.

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(2) Para saber mais, acesse: Floresta Amazônica: Preservá-la não é Ideologia, é Futuro


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://g1.globo.com/carros/noticia/2019/06/04/regras-de-transito-veja-o-que-o-projeto-de-lei-de-bolsonaro-quer-alterar.ghtml 
  2. https://medlineplus.gov/ency/patientinstructions/000670.htm 
  3. https://www.gov.uk/child-car-seats-the-rules 
  4. https://www.qscience.com/content/papers/10.5339/qfarc.2018.SSAHPD557#abstract_content
  5. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6107397/
  6. https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/06/05/projeto-tira-multa-de-motorista-com-crianca-sem-cadeirinha-mas-mantem-perda-de-pontos.ghtml
  7. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0022347615014596
  8. http://www.smj.org.sg/sites/default/files/OA-2018-331-epub.pdf
  9. https://pediatrics.aappublications.org/content/early/2019/05/17/peds.2018-2576
  10. https://injuryprevention.bmj.com/content/early/2019/01/23/injuryprev-2018-042989.abstract
  11. Kedikoglou S, Belechri M, Dedoukou X, et al. A maternity hospital-based infant carrestraint loan scheme: public health and economic evaluation of an intervention for the reduction of road traffic injuries. Scand J Public Health 2005; 33:42-9.