Macro-evolução demonstrada experimentalmente após 60 gerações
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Radiação adaptativa ocorre quando os membros de uma única linhagem evoluem diferentes formas adaptativas em resposta a seleções naturais impostas por competidores, predadores ou outros fatores ambientais. Um dos mais clássicos exemplos de radiação adaptativa foi ilustrada por Charles Darwin (1809-1882) ao estudar os famosos tentilhões (aves da família Fringillidae) no arquipélago de Galápagos, onde em cada ilha, e consequente novo ambiente, essas aves carregavam adaptações únicas que aumentavam suas chances de sobrevivência, em específico o formato do bico que se adaptava para diferentes tipos de alimentos (1).
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(1) Leitura recomendada: Corrigindo uma extrapolação dos trabalhos de Darwin: bico das aves vs ecologia alimentar
Nesse sentido, pesquisadores da Universidade de Utah conseguiram engatilhar uma radiação adaptativa ao longo de um experimento de 4 anos e 60 gerações no piolho-de-penas da espécie Columbicola columbae, mostrando em tempo real como micro-evoluções (mudanças na frequência de alelo de geração para geração) levam a macro-evoluções (especiações ao longo de várias gerações), incluindo isolamento reprodutivo. Os resultados obtidos do experimento até o momento - o experimento continua em curso - foram reportados em dois estudos. O primeiro foi publicado no periódico Evolution Letters (Ref.1) e o segundo no PNAS (Ref.2).
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PRIMEIRO ESTUDO: DIVERGÊNCIA NA PIGMENTAÇÃO
Atualmente, os cientistas acreditam que o processo de radiação adaptativa gerou grande parte da biodiversidade da Terra, no entanto, a maioria dos estudos focam em analisar grupos de seres vivos que já se diversificaram dessa forma. Nesse sentido, um time de pesquisadores, liderados por Sarah Bush - professora de Biologia Evolutiva na Universidade de Utah, EUA - resolveu usar pombos isolados em "ilhas" e de diferentes cores de penas, para demonstrarem que os descendentes de uma única população de piolhos-de-pena rapidamente se adaptam em resposta à principal defesa dos pombos: a limpeza das penas, onde os bicos são usados para a retirada de detritos e parasitas.
Basicamente, os pesquisadores encontraram que esse sistema de limpeza dos pombos fomenta uma rápida e divergente camuflagem nesses insetos via forte seleção fenotípica. Utilizando aves da espécie Colombia livia (popularmente conhecidas como 'pombo-comum', 'pombo-doméstico', ou 'pombo-das-rochas'), ao longo de 4 anos e ~60 gerações (parasitas), os piolhos estudados evoluíram diferentes cores de transmissão vertical (ou seja, cores definidas por novos alelos no genoma) que cobrem um espectro de cores de todo o gênero Columbicola que compreende espécies encontradas em cerca de 300 espécies de aves ao redor do mundo.
"As mudanças de cores que nós vimos são tão claras quanto a mais clara espécie e tão escuras quanto a mais escura espécie em todo o gênero Columbicola, o qual vêm evoluindo há milhões de anos," disse Sarah Bush, em entrevista para o jornal da sua Universidade (Ref.3). "As mudanças e seleções que ocorreram dia após dias possuem os mesmos padrões que nós vemos ao longo de milhões de anos."
O estudo, de fato, é o primeiro a mostrar na prática que mudanças evolucionárias que ocorrem dentro de uma única espécie (microevolução) ecoa mudanças nas cores entre diferentes espécies que divergiram ao longo de milhões de anos (macroevolução). Essa simulação de escala macroevolucionária também indica que seleções mediadas por hospedeiros ativam rápida divergência na radiação adaptativa de parasitas, estes os quais estão entre os mais diversos grupos de organismos na Terra. Os resultados dessa primeira parte do experimento foram publicados em março deste ano no periódico Evolution Letters. É mais um estudo se acumulando em anos recentes a demonstrar um evento de macro-evolução via acompanhamento em tempo real (2) - lembrando que 'micro-evolução' e 'macro-evolução' são ambos processos evolutivos de mesma natureza, apenas representando eventos em escalas temporais diferenciadas.
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(2) Leitura recomendada: Nova espécie de ave surge em Galápagos, e os cientistas acompanharam o processo evolutivo
"As pessoas vem tentando criar na prática uma ponte entre micro- e macro-evolução há um bom tempo," disse Dale Clayton, professor de Biologia Evolutiva na Universidade de Utaha e co-autor do estudo. "Este estudo, de fato, faz isso. É uma grande conquista."
PIOLHOS, PENAS E POMBOS
Os piolhos-de-penas dependem das penas para se locomoverem com eficiência, e, portanto, a transmissão entre hospedeiros individuais geralmente depende de contato entre as aves, como via interação de uma mãe e seus filhotes no ninho. Existe também a possibilidade desses parasitas serem transportados de uma ave para outra através de outros parasitas mais móveis e menos específicos, como os mosquitos. Assim, de forma periódica, esses piolhos acabam pulando de hospedeiro para hospedeiro de diferentes espécies.
As aves, por sua vez, combatem os piolhos-de-penas ao removê-las com o bico durante regulares limpezas de pele. Durante muito tempo, a hipótese mais defendida é que esses parasitas conseguem escapar em grande parte dessas limpezas ao imitarem o máximo possível as cores de penas dos seus hospedeiros específicos. De fato, aves com penas claras possuem espécies de piolho-de-pena claras, e aves com penas mais escuras possuem espécies de piolho-de-pena mais escuras. Nesse sentido, isso explica a grande divergência de espécies dentro do gênero Columbicola (radiação adaptativa). Porém, essa hipótese, apesar de muito sólida, nunca tinha sido testada experimentalmente.
Para entenderem como essa radiação adaptativa ocorreu nesses parasitas, os pesquisadores resolveram usar pombos-domésticos, os quais apresentam uma grande variedade de cores devido a sucessivas seleções artificiais ao longo dos séculos pela nossa sociedade. Antes dos experimentos, os pesquisadores livraram todos os pombos de piolhos, ao acomodá-los em ambientes com condições de baixa umidade (<25% umidade relativa) por mais de 10 semanas. Esse método mata os piolhos e seus ovos, evitando o uso de inseticidas e potencial interferência destes nos experimentos (os quais foram realizados sob umidades entre 35% e 60%).
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Para demonstrarem primeiro que os piolhos-de-penas tinham maiores chances de sobrevivência quando possuíam cores similares aos seus hospedeiros, os pesquisadores utilizaram uma única população desses parasitas da espécie C. columbae, a qual teve metade dos seus membros escolhidos aleatoriamente e pintados ou de branco ou de preto. Pombos naturalmente pretos ou brancos, então, foram isolados em 16 gaiolas, e receberam cada um 30 piolhos pintados de branco e 30 piolhos pintados de preto. Além disso, metade dos pombos, escolhidos aleatoriamente, tiveram seus bicos modificados (sem danos ao pássaro) para dificultar o serviço de limpeza. Os resultados do experimento inicial corroboraram a hipótese: piolhos em pombos com o bico normal foram retirados com larga maior frequência do que em pombos com bicos modificados, e nos pombos pretos ou brancos, piolhos pretos ou brancos respectivamente (conspícuos) eram retirados com substancial maior diferença do que piolhos com cores que camuflavam bem sua presença entre as penas dos pombos (crípticos). Piolhos conspícuos eram 40% mais prováveis de serem retirados. Isso pode ser visto no esquema abaixo.
Após essa fase inicial, os pesquisadores partiram para o estudo evolutivo a longo prazo. Para isso, eles selecionaram 96 pombos-domésticos criados em cativeiro: 32 brancos, 32 pretos, e 32 "cinzas" (expressando outras cores intermediárias e funcionando como controles). Em seguida, 2400 piolhos-de-pena da espécie C. columbae capturados de pombos-domésticos 'selvagens' foram distribuídos entre os pombos (25 para cada ave). Inicialmente, todos os piolhos possuíam a cor mais escura característica da espécie. Novamente, metade dos pombos aleatoriamente tiveram seus bicos modificados para dificultar a limpeza das penas. Além disso, centenas desses piolhos também foram colocados em pombos-domésticos 'selvagens' capturados.
Os 96 pombos-domésticos criados em cativeiro - e previamente livrados de quaisquer parasitas - que foram expostos aos piolhos foram mantidos isolados em aviários contendo 4 outros pombos-domésticos de mesma cor, dois deles com bicos modificados. O ambiente laboratorial foi simulado o máximo possível para corresponder ao ambiente natural, incluindo fotoperíodo de 12 horas escuro/claro, com todos os pássaros recebendo alimentação e água adequados. Isso foi facilitado pelo fato do ciclo de vida inteiro dos piolhos-de-pena ocorrer no hospedeiro, ou seja, cada pombo ("ilha") já é um ambiente natural completo. Ao longo do experimento, os pombos que eventualmente morriam (ocorrência rara no decorrer do estudo) tinham seus piolhos retirados e transferidos para um novo pombo de mesma cor livre de parasitas dentro de 24 horas.
O experimento continuou por 4 anos, e, considerando que cada geração de piolhos-de-pena demora cerca de 24,4 dias para emergir, o período experimental total representou cerca de 60 gerações em relação à população inicial desses parasitas. A cada 6 meses, amostras aleatórias de piolho eram recolhidas e visualmente analisadas, registrando as mudanças fenotípicas observadas.
Os resultados desse experimento mostraram que as cores dos piolhos nos pombos brancos e pretos em relação àqueles presentes nos piolhos "cinzas" mudaram drasticamente. Nos pombos brancos, os piolhos adquiriram gradualmente uma coloração cada vez mais clara. Nos pombos pretos, houve um substancial escurecimento, mas de forma não tão intensa quanto os piolhos nos espécimes aviários brancos (já que a espécie C. columbae já é relativamente escura). Entre os pombos, de quaisquer cores, com os bicos modificados, não houve mudança perceptível nas cores dos piolhos. Os pombos com bicos modificados também tinham uma quantidade muito maior de piolhos, corroborando a primeira fase experimental.
Para demonstrarem que o processo evolutivo testemunhado envolveu de fato mudanças no genótipo dos piolhos, os pesquisadores transferiram piolhos cujas populações expressaram mudanças dramáticas de cores para pombos livres de parasitas. Após algumas gerações, os pesquisadores mostraram que os descendentes também carregavam as mesmas cores adquiridas.
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SEGUNDO ESTUDO: ISOLAMENTO REPRODUTIVO
Concluída a primeira parte das análises experimentais, os pesquisadores voltaram o foco para as modificações nas dimensões corporais dos piolhos ao longo das várias gerações, com o objetivo de acompanhar possíveis processos evolutivos no tamanho dos piolhos colocados para parasitarem pombos de diferentes tamanhos. Além da mudança de coloração corporal, os piolhos podem ter o tamanho corporal tão modificado em relação à população inicial, que isso pode dificultar o acasalamento entre indivíduos de diferentes populações finais, um passo inicial importante - mas nem sempre necessário - para uma especiação. De fato, considerando o comportamento de cópula desses insetos, o tamanho corporal parece atuar de forma crucial na biologia reprodutiva do C. columbae..
Como estratégia para se protegerem das limpezas de penas dos pássaros, além da pigmentação corporal os piolhos-de-pena procuram se esconder nos espaços entre as barbas adjacentes das penas. A limpeza seleciona (favorece) aqueles parasitas pequenos o suficiente para se encaixarem nesses espaços, e também fomenta seleção positiva em traços anatômicos críticos para a locomoção no hospedeiro. Quando os piolhos são colocados em penas de hospedeiros maiores, eles passam a expressar uma menor velocidade de corrida, provavelmente devido à maior distância entre as barbas de penas maiores. Portanto, quando os piolhos se encontram em maiores hospedeiros aviários, a limpeza de penas irá favorecer indivíduos maiores que sejam melhores em correr em grandes penas. No entanto, mesmo na ausência de limpeza, um maior tamanho corporal é favorecido por causa da vantagem reprodutiva: piolhos maiores depositam mais ovos do que os menores.
No balanço das pressões seletivas, a seleção de um corpo menor para os espaços entre barbas é contra-atacada pela seleção de uma locomoção mais rápida e maior fecundidade em grandes parasitas. Essas forças seletivas opostas explicam a forte correlação entre tamanhos corporais de diferentes espécies de pombos e seus parasitas específicos do gênero Columbicola, um padrão macro-evolucionário conhecido como Regra de Harrison.
Nesse sentido, em paralelo com o experimento anterior, os pesquisadores usaram pombos (C. livia) de diferentes tamanhos, transferindo piolhos de espécimes selvagens (pequenas dimensões) para pombos-gigantes-domésticos (cerca de três vezes maiores). Nos pombos-gigantes, o espaço inter-barbas é tipicamente 20% maior. Piolhos foram também transferidos para pombos selvagens que serviram de controle. Ao longo dos 4 anos e 60 gerações, os pesquisadores mostraram que os piolhos ao longo das gerações foram ficando maiores em relação aos piolhos no grupo de controle, e testes no meio do estudo confirmaram que o tamanho corporal é uma característica genética e hereditária.
Confirmando a evolução de maiores tamanhos corporais de populações convivendo com pombos maiores, os pesquisadores resolveram analisar se essa divergência anatômica interferia no comportamento sexual dos piolhos. Durante a copulação entre indivíduos mostrando "típicos" dimorfismos, machos usam suas antenas para agarrarem o metatórax das fêmeas enquanto alinham a ponta dos seus abdômens com o abdômen das fêmeas. Em contraste, quando machos são ou muito grandes ou muito pequenos em relação às fêmeas, eles mostram grande dificuldade na copulação. Isso sugere que o tamanho corporal maior adquirido pelos piolhos no experimento pode dificultar a copulação com os piolhos menores no grupo de controle.
Após uma série de testes reprodutivos, os pesquisadores mostraram que, apesar de virtualmente todos os piolhos machos tentarem copularem com quaisquer indivíduos fêmeas de ambos as populações (controle e pombos-gigantes), indivíduos que eram muito pequenos ou muito grandes em relação às fêmeas alvos, tiveram dificuldade na cópula. Na média, pares não-combinantes (tamanhos corporais extremos), gastaram 70% menos tempo copulando do que pares combinantes (tamanhos corporais dimórficos equivalentes), e também produzindo significativamente menos ovos e filhotes. Além disso, os pesquisadores notaram um aumento na competição entre os machos pelas fêmeas quando as populações com indivíduos de diferentes tamanhos eram colocadas juntas.
Somando todas as observações experimentais - detalhadas esta semana em um estudo publicado na PNAS (Ref.2) -, foram mostradas que modificações corporais evoluíram nos piolhos como uma resposta à mudança de hospedeiro, e que isso foi suficiente para o estabelecimento de um fator favorecendo um isolamento reprodutivo entre as populações obtidas após 60 gerações nos pombos-gigantes domésticos e aquelas vivendo nos pombos selvagens. Ou seja, um primeiro passo para a especiação. Se os piolhos continuassem aumentando de tamanho, eles poderiam ficar grandes o suficiente para completamente isolar reprodutivamente as populações, resultando na formação de novas espécies. Aliás, mesmo sem precisarem crescer mais, as diferenças de tamanho evoluídas no experimento já são capazes de promover um menor fluxo genético e, portanto, facilitar a emergência de distintos alelos adaptativos entre as populações parcialmente isoladas.
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(3) Leitura recomendada: Evolução Biológica é um FATO CIENTÍFICO
O experimento também é consistente com trabalhos teóricos e empíricos sugerindo que a especiação ecológica evolui rápido quando seleção divergente age em um único traço morfológico (nesse caso, tamanho corporal) que governa tanto sucesso reprodutivo quanto sucesso de sobrevivência. Também reforça que o processo de especiação pode ocorrer na mesma escala de tempo que a divergência adaptativa.
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CONCLUSÃO
O robusto experimento evolutivo trás fortes evidências que corroboram a Teoria da Especiação Ecológica e ainda demonstra que mudanças tipicamente macro-evolutivas podem ser obtidas através de micro-evoluções fomentadas pela seleção natural e em um relativamente curto intervalo de tempo. Unindo os dois estudos associados, pudemos ver populações de piolhos mudando drasticamente traços morfológicos (pigmentação e dimensões corporais), incluindo como resultado um processo inicial de isolamento reprodutivo, que retratam em detalhes como espécies bem diferentes podem emergir através de um ancestral comum.
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/evl3.104
- https://www.pnas.org/content/early/2019/06/07/1901247116
- https://unews.utah.edu/feather-lice/