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Por que a água fica com um gosto ruim depois de fervida?


- Atualizado no dia 3 de janeiro de 2022 - 

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         Muitos já devem ter tido uma desagradável experiência após beber uma água que foi previamente fervida: um 'gosto' bem estranho e/ou ruim é percebido. Mas por que será que a água perde o seu frescor e palatabilidade após ser aquecida até o ponto de ebulição? Aliás, considerando esse fenômeno, nos deparamos mais uma vez a secular questão: afinal, a água possui um gosto ou não?

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   TEMPERATURA E SABOR DA ÁGUA

         A água, como todos devem saber, é a substância mais importante para a vida no nosso planeta, compondo a maior parte do corpo dos seres vivos e cobrindo cerca de 71% da superfície terrestre. E uma das suas principais características para ocupar esse papel tão crucial é a sua alta capacidade de solvatação. São inúmeros os compostos inorgânicos e orgânicos que podem ser dissolvidos na água, incluindo gases como oxigênio (O2), dióxido de carbono (CO2), nitrogênio (N2), entre outros. Por causa disso, ela é uma substância conhecida por ser um 'solvente universal'.

         Pois bem, em condições normais de temperatura e pressão, uma amostra de água em contato com a atmosfera normalmente conterá uma boa quantidade de gases dissolvidos. Aliás, isso é o que permite a vida de seres aeróbicos nas águas dos mares, rios e lagos, ou seja, eles aproveitam o gás oxigênio dissolvido na água para a respiração. A capacidade da água de dissolver os gases depende basicamente da temperatura e da pressão. Quanto maior a temperatura, menos gases dissolvidos. Quanto maior a pressão, mais gases dissolvidos. Em outras palavras, segue a Lei de Henry.




        Nesse sentido, quando você aquece uma amostra de água na sua casa, o ar dissolvido nela irá expandir e bolhas contendo seus gases começarão a se formar. Quando a força de flutuação das bolhas ultrapassar a tensão superficial da água, elas irão subir até a superfície e estourar, liberando o ar para fora do líquido. No momento em que a água atingir seu ponto de ebulição (~100°C considerando uma pressão de 1 atm), e começar a formar bolhas de vapor de água, praticamente todo o ar que antes estava ali dissolvido já terá sido perdido. Se você parar a fervura da água, você terá um líquido praticamente sem gases misturados. Esse é um procedimento comum de desaeração. Caso você reaqueça essa água desareada (sem ar dissolvido) não verá mais bolhas iniciais se formando, apenas no ponto de ebulição, quando bolhas de vapor de água se formarem.

         Bem, qualquer sensação de paladar que você experiencia ao beber uma água dependerá, a princípio, das substâncias nela dissolvida, como sais, açúcares, flavorizantes, etc. O mesmo é válido para o ar ali dissolvido! Mesmo que o aquecimento não retire os sais e outros compostos geralmente presentes na água de consumo humano, ele irá tirar o ar dissolvido, o que afetará o modo como esse líquido será percebido na sua boca. Por isso sentimos aquele gosto estranho após beber água que foi previamente fervida, e por isso também a água tende a ter um 'gosto' diferenciado em diferentes temperaturas.

         Para muitas pessoas, e situações, ferver a água é essencial para torná-la segura para o consumo. Tal procedimento mata os microrganismos e parasitas nocivos ali presentes. Porém, como explicado, a fervura irá alterar drasticamente a qualidade gustativa da água. Para voltar com o gosto normal da água após esta esfriar, basta agitá-la bastante ou transferi-la seguidas vezes de um recipiente para outro. Isso irá novamente misturar e dissolver o ar atmosférico em seu interior, recuperando a sua palatabilidade tradicional. Em caso de pressa, pitadas de sal de cozinha podem disfarçar o sabor estranho.

         Para finalizar, essa relação entre dissolução de gases na água e temperatura é uma das grandes preocupações trazidas junto com o Aquecimento Global (1). Águas em lagos, rios e mares mais quentes seguram menos oxigênio gasoso dissolvido, afetando negativamente a vida ali presente.
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   ÁGUA TEM GOSTO?

         Acredite ou não, mas esse questionamento vem sendo feito pela humanidade há milhares de anos. O famoso filósofo Grego Aristóteles (384-322 a.C.) uma vez escreveu: "A substância natural água por si tende a não ter gosto." Segundo Aristóteles, a água seria apenas um veículo de sabor, mas sendo naturalmente insípida em sua forma pura. De fato, como já vimos, a água carrega sabores e/ou gostos diferenciados dependentes das substâncias nela dissolvidas. Mas será que a água pura (H20) realmente não possui gosto?

          Nossa língua contém inúmeras saliências chamadas de papilas gustativas, as quais sentem os cinco gostos básicos: salgado, azedo, doce, amargo e umami (2). Porém, apesar de insetos e anfíbios terem comprovadamente células nervosas específicas para a percepção da água, até pouco tempo atrás não existiam claras evidências de tais receptores nervosos no sistema sensorial ligado ao paladar dos mamíferos (incluindo a espécie humana), apesar desses animais conseguirem eficientemente diferenciar água de outros fluídos sendo ingeridos. Mas fortes evidências científicas geradas por um estudo publicado em 2017 mudaram esse cenário e parecem refutar Aristóteles (Ref.8).
         O estudo, realizado por neurocientistas do Instituto de Tecnologia da Califórnia, em Pasadena, e liderado pelo pesquisador Yuki Oka, encontrou células receptoras de gosto (TRCs, na sigla em inglês) na língua de ratos que respondem fortemente na presença de água. Para chegar nessa conclusão, os pesquisadores utilizaram diferentes ratos geneticamente modificados que faltavam um ou outro tipo de TRC. Para cada rato modificado, os pesquisadores testavam a água para ver qual deles não iria mais responder a esse líquido. Finalmente eles encontram um conjunto de TRCs já bem conhecido e responsável pelo gosto ácido/azedo que respondia vigorosamente à exposição de água (3). Quando dada a opção de beber água ou um silicone sintético sem gosto similar em termos de fluidez, os roedores que não possuíam os TRCs para o ácido não mais davam preferência para a água, sugerindo que essas células ajudam na distinção da água de outros fluídos na língua dos mamíferos.

(3) O ácido - englobado no gosto azedo - é detectado na língua por um conjunto de TRCs que expressam o canal PKD2L1, este o qual também é responsável pela detecção de CO2 e sais.

         No próximo passo do estudo, o time de pesquisadores resolveu verificar se essas células, quando ativadas, levariam os ratos a beberem água, através de uma técnica chamada de optogenética. Para isso, eles criaram ratos geneticamente modificados que expressavam uma proteína sensitiva à luz nos seus TRCs associados à sensação do ácido. Após treinarem os ratos para beberem água de um bico, os pesquisadores trocaram a água que saía dali por uma fibra óptica que levava luz azul para a língua dos ratos que se aproximassem para matar a sede. O resultado: mesmo não existindo mais água saindo, os ratos continuaram lambendo o bico como se real água estivesse saindo! Alguns ratos com mais sede chegavam a lamber até 2 mil vezes o bico a cada 10 minutos, algo que eles nunca fariam caso não existisse água saindo dali. Ou seja, as células receptoras de ácido estavam sendo ativadas pela luz da fibra ótica, criando a ilusão de que água estivesse realmente sendo bebida. Isso também indica que os TRCs para o ácido não só estão ligados ao gosto azedo mas também à percepção da água.

         Apesar da ilusão, os ratos "beberam" muito mais água a cada visita ao bico do que teriam bebido caso água de verdade estivesse saindo dali. Mesmo na presença da luz azul junto com real água, os ratos paravam de beber dentro de poucos minutos. Isso mostra que não basta apenas ativar o 'sexto sentido' de gosto da água para convencer o cérebro que o corpo estava de fato consumindo água. Temperatura, pressão e outras partes por onde a água percorre no caminho para o sistema digestivo parecem ser importantes para a sensação de sede parar. Além disso, ratos em um ambiente com falta de alimento ou com falta de sais minerais para o consumo não mais eram afetados pela ilusão, significando que as respostas associadas à sensação gustativa da água também dependem do estado fisiológico desses animais.

         No entanto, os pesquisadores ainda não sabem ao certo como os receptores nas papilas gustativas ligados ao ácido respondem à água, e o que os ratos realmente experienciam quando isso ocorre. Mas eles acreditam que quando a água arrasta a saliva depositada em cima da língua - um muco ácido, contendo íons bicarbonatos - isso muda o pH dentro das células receptoras, levando à ativação dessas TRCs. De fato, eles encontraram que lavar a saliva da boca com água ativa as TRCs via o caminho PKD2L1. Um óleo, por exemplo, por ser um composto orgânico pouco polar, não consegue arrastar e dissolver bem a saliva (composta por 99% de água), o que acaba não gerando uma significativa mudança de pH e ativação das TRCs associados ao ácido.

         Os resultados do estudo, publicados na Nature Neuroscience, podem explicar como os mamíferos em geral conseguem diferenciar a água de outros fluídos. Bem, e com uma papila gustativa diretamente associada ao processo, é mais do que justo concluir que a água parece, sim, possuir um gosto.

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CURIOSIDADE: Água pesada faz referência a uma água onde os hidrogênios (H) na molécula de H2O são substituídos por átomos de deutério (D2O). Deutério (D) é o isótopo do hidrogênio, no caso, um variedade de hidrogênio contendo um nêutron a mais no núcleo atômico. A substituição de H por D na molécula de H2O possui apenas pequenos efeitos nas propriedades físicas e químicas da água (1) e, nesse sentido, é esperado que não exista diferença gustativa entre D2O e H2O. Porém, um estudo publicado em 2021 no periódico Communications Biology (Ref.9) mostrou que o paladar humano é capaz de diferenciar entre água pesada e água normal, com a primeira exibindo um gosto mais doce. Análises subsequentes mostraram que essa percepção gustativa da água pesada era mediada pelo receptor gustativo TAS1R2/TAS1R3, nosso principal receptor do gosto doce (2). O estudo também corrobora reportes anedóticos da década de 1930 sobre um alegado gosto "doce" da água pesada.

(1) A mais notável e esperada diferença entre D2O e H2O é a densidade 10% maior do primeiro líquido, já que um deutério é cerca de duas vezes mais massivo do que o hidrogênio. Um efeito mais sutil é a formação de ligações de hidrogênio (ou deutério) no D2O comparado com o H2O, resultando em um pequeno aumento do ponto de congelamento e de ebulição (3,8°C e 1,4°C) a nível do mar, e um pequeno aumento de 0,44 no pH  (ou pD) da água pura. Por outro lado, a água pesada pode ser muito tóxica para diversos organismos vivos dependendo da sua concentração: água corporal contendo ~40-50% de água pesada é tipicamente letal para plantas e animais; danos na divisão celular e no metabolismo em geral ocorrem a partir de 25% da água corporal substituída por água pesada. 

(2) Leitura recomendada: Temos um "mapa de gostos" na língua?
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   CONCLUSÃO

         O gosto ruim na água é causado pela retirada de ar nela dissolvido durante a fervura. Já sobre a antiga questão sobre a presença ou não de gosto na água areada (água naturalmente encontrada para o consumo, sem brusco aquecimento), evidências científicas recentes parecem comprovar que, de fato, ela possui um gosto na língua dos mamíferos.



REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://pdfs.semanticscholar.org/9654/4bfb438a4aa37a96fcc13d3cfef57c12734f.pdf
  2. https://water.usgs.gov/edu/dissolvedoxygen.html
  3. http://www.westminster.edu/about/community/sim/documents/stemperatureeffectsondissolvedoxygeninwater-comp_000.pdf 
  4. https://sealevel.jpl.nasa.gov/files/archive/activities/ts3ssac4.pdf
  5. https://www.cdc.gov/healthywater/emergency/drinking/making-water-safe.html
  6. http://city.milwaukee.gov/water/customer/FAQs/tasteandodor/Why-does-boiled-water-taste-flat.htm
  7. https://sites.psu.edu/siowfa14/2014/10/24/what-is-the-taste-of-water/
  8. https://www.nature.com/articles/nn.4575
  9. Abu et al. (2021). Sweet taste of heavy water. Communication Biology 4, 440. https://doi.org/10.1038/s42003-021-01964-y
  10. https://www.mcgill.ca/oss/article/controversial-science-health-quackery/should-one-worry-about-reboiling-water-coffee-or-tea