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Por que opioides são tão temidos e tão necessários?


- Atualizado no dia 26 de novembro de 2023 -

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         Segundo dados da ANVISA, a venda de medicamentos no Brasil gerou um faturamento de R$ 131,2 bilhões em 2022. E, infelizmente, boa parte desse estrondoso valor ocorre em detrimento da saúde da população Brasileira, devido ao grande uso de medicamentos sem receita médica ou mesmo sem necessidade médica, e muitas vezes de forma abusiva ou inadequada (como usar antibióticos contra viroses). Os medicamentos para emagrecimento são um dos campeões de venda, acompanhados de perto pelos analgésicos. Entre os analgésicos, e olhando agora para o contexto global, os opioides têm ganhado nos últimos anos um preocupante destaque, especialmente para as agências de saúde dos EUA, país onde existe um enorme e letal abuso desses fármacos. Porém, um curioso fenômeno inverso tem historicamente ocorrido aqui no Brasil em relação a essa classe de medicamentos.

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   CRISE DOS OPIOIDES

         Cerca de 80% de todo o consumo de morfina no mundo é feito pela população dos EUA, um número mais do que estrondoso quando consideramos que os Norte-Americanos representam apenas pouco mais de 5% da população mundial. A morfina, assim como outros opioides, é uma substância derivada dos alcaloides constituintes do ópio, os quais são extraídos da planta conhecida como papoila-dormideira (Papaver somniferum). Outros dois conhecidos representantes dessa família é a perigosa heroína e a ainda mais perigosa fentanila. Praticamente todos os opioides são obtidos através da modificação química da morfina - uma exceção importante, por exemplo, é a fentanila, a qual é completamente sintética -, sendo que muitos são utilizados como medicamentos anestésicos e analgésicos de alta intensidade por agirem nos receptores opioides neuronais, os quais estão relacionados com a sensação de dor.

           Existe eficácia comprovada com relação ao uso de opioides a curto prazo em dores neuropáticas e musculoesqueléticas. Porém, diferente dos analgésicos comuns, os opioides causam extrema dependência química caso o seu uso não seja cuidadosamente monitorado por profissionais da área de saúde. Eles são apenas indicados para casos moderados e severos de dor, com enfoque nesse último, especialmente antes, durante ou depois de cirurgias, e durante o tratamento de cânceres. Existe eficácia comprovada com relação ao seu uso a curto prazo em dores neuropáticas e musculoesqueléticas.

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> A dor crônica é uma condição de saúde multidimensional definida como uma dor que persiste ou recorre por mais de três meses, não sendo considerada um sintoma, mas doença, impactando diretamente na qualidade de vida1 . Estima-se que a dor crônica acomete 34,5% da população em geral, ou seja, aproximadamente três em cada 10 pessoas. No Brasil, esses números não se mostram muito diferentes já que cerca de 37% da população brasileira refere possuir esse tipo de dor (Ref.19). Opioides são uma possível via de tratamento para dores crônicas, porém ainda existem controvérsias sobre a eficiência e a segurança desses fármacos no uso a longo prazo. Somado a isso também existe a questão dos efeitos adversos relacionados ao uso de opioides, entre eles: constipação, retenção urinária, efeito cardiovascular e alguns efeitos sobre o sistema imune.
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          Os efeitos dos opioides (ou opiáceos) são um chamativo mortal para futuras vítimas. Sua ação é rápida e gera forte estado de euforia, relaxamento e grande alívio de dor. Além disso, essas substâncias são altamente viciantes e o pior: geram um tolerância fortíssima nos usuários frequentes, sendo necessárias doses cada vez maiores para satisfazer o dependente. Não é à toa que existam tantos casos de médicos e enfermeiros envolvidos no consumo abusivo de morfina dentro dos hospitais, lugares onde concentram-se a maior parte desses medicamentos. A causa para a forte tolerância não está ainda totalmente esclarecida, mas seus efeitos são devastadores.

          O uso constante dos opioides já causa dano em qualquer concentração, principalmente nas funções neurológicas do indivíduo. Com concentrações maiores e maiores a longo prazo, todo o corpo passa a sofrer danos, desde hormonais até imunológicos, podendo causar uma pane total no organismo (1). Nos EUA, mais de 130 pessoas morrem por dia por causa do vício com opioides, sendo o cantor Prince sua vítima de maior destaque nos últimos anos. A morfina, a fentanila e a heroína são os atuais líderes de fatalidades, sendo a overdose a causa de morte mais comum. Nos últimos 20 anos, o número de mortes causadas por overdose de opioides triplicou nos EUA. Em 2021, quase 108 mil mortes por overdose de drogas foram registradas nos EUA, e próximo de 81 mil dessas mortes foram causadas especificamente por opioides - um aumento de 15% em relação ao ano de 2020 (Ref.21). Na América do Norte, o problema também afeta de forma preocupante o Canadá, com uma taxa de 6,4 mortes causadas por opioides para cada 100 mil habitantes (Ref.22). 



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(1) A indústria farmacêutica ganha ainda mais lucro com a venda de medicamentos que irão tentar minimizar os efeitos da dependência dos opioides vendidos pela mesma indústria. E é preciso lembrar também que o problema do abuso desses medicamentos nos EUA não vem apenas do desleixo médico ou farmacêutico. A intensa venda de opioides sem prescrição no mercado ilegal é outro grande responsável pela crise.
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            A situação nos EUA é tão séria que pesquisas sugerem que a nova tendência por lá observada nos últimos, onde a população branca está morrendo mais do que a população preta -  mesmo considerando as diferenças socioeconômicas -, possui uma das causas o abuso dos opioides. A lógica funciona assim: os médicos - brancos em sua esmagadora maioria - receitam livremente esses opioides para pacientes brancos, muitos sob o provável financiamento das empresas farmacêuticas. Mas, quando chega um paciente preto, grande parte dos médicos tende a não receitar opioides para esse paciente por causa de um estereótipo preconceituoso, ou seja, de que o preto irá vender o medicamento no tráfico ou consumi-lo como uma droga recreativa. Assim, para não se envolverem em qualquer suposto problema com a lei e terem, provavelmente, sua relação de lucro com as empresas farmacêuticas cortadas, muitos médicos estariam empurrando esses medicamentos de alto potencial de dependência mais para os brancos.

          A crise dos opioides nos EUA teve início com a OxyContin, o nome de marca do opioide oxicodona, a qual rapidamente se tornou um fenômeno de vendas para pessoas brancas reclamando ou em risco de dor (>US$1 bilhão de vendas anuais) após sua controversa aprovação em 1995 pelo FDA. Purdue Pharma, Johnson & Johnson, CVS, Walgreens, and Walmart e outros fabricantes e distribuidores de opioides naturais e semi-sintéticos - mais notavelmente oxicodona e hidrocodona - saturaram comunidades rurais com prescrições de altas doses de pílulas analgésicas, criando um "cinturão virtual de opioides" com mais de 90 municípios se estendendo desde West Virginia até Kentucky (Ref.25). 

           Com dezenas de milhares de de mortes anuais devido a overdoses com esses opioides, o governo Norte-Americano, ao redor de 2010, começou a implantar políticas para sufocar o suprimento de OxyContin e outros opioides semi-sintéticos, incluindo a criação de programas de monitoramento para prescrições e impondo restrições sobre quantas pílulas analgésicas médicos eram permitidos de prescrever e para quem. Porém, essas políticas se mostraram um grande fracasso porque não foram acompanhadas pela expansão de acesso a tratamentos comprovados para transtornos de uso de substâncias e meios alternativos para o controle de dor em pessoas dependentes de opioides. Muitas pessoas foram forçadas a buscar drogas ilegais nas ruais, notavelmente heroína, para amenizar sintomas de abstinência e lidar com a dor, colocando-as em um grande risco para letais overdoses e doenças transmitidas por agulhas infectadas, como HIV/AIDS e hepatite C. 

            Por fim, em 2013-2015, fornecedores de drogas de rua começaram a misturar fentanila - um opioide sintético que é 50 vezes mais potente que a heroína e relativamente barato em relação a outros potentes opioides - junto à heroína e outras drogas ilegais. Doses tão pequenas quanto 2 mg de fentalina podem ser fatais. A partir desse ponto, fentanila passou a ser misturada em drogas diversas - desde heroína até Ecstasy - no mercado ilegal, dramaticamente agravando a crise previamente instalada de opioides e levando-a das áreas rurais para as áreas urbanas. Nesse sentido, a população preta nos EUA começou também a ser fortemente afetada, mudando o cenário de "problema de pessoas brancas".

           Mais de 12 milhões de pessoas estão dependentes em opioides nos EUA, e morrem em números bem maiores do que os índices nacionais registrados para os acidentes com veículos motores. Mais de 97 milhões de pessoas no território Norte-Americano tomaram analgésicos prescritos em 2015 e, destes, cerca de 12 milhões o fizeram sem supervisão de um médico, a maioria opioides. Em 2016, os Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) nos EUA reportaram 42 mil mortes decorrentes de overdose com opioides. Em 2017 foram registradas 70 mil mortes derivadas de overdoses medicamentosas, sendo 68% delas envolvendo um opioide prescrito ou ilícito. De 1999 até 2017, é estimado um total de quase 400 mil mortes provocadas pelo uso indevido desses fármacos.


            Até 2016, o opioide isolado que mais vinha matando nos EUA era a heroína, mas desde então a fentanila tomou o posto. Esse opioide é completamente sintético, ou seja, não é uma derivação química direta do ópio. Como mencionado, a fentanila é uma droga muito potente, e está sendo usada em adulteração com outras drogas nas ruas de forma descontrolada. Como é puramente sintética, é difícil rastreá-la e mais fácil consegui-la ilegalmente.


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(!) Existe um debate no meio acadêmico sobre se os derivados da maconha podem ser alternativas de prescrição mais seguras aos opioides, com o potencial de diminuir as mortes por overdose. Enquanto que as evidências de suporte até o momento não são conclusivas, elas são promissoras (Ref.16-17). Em específico, um estudo publicado no periódico Economic Inquiry (Ref.18) encontrou que a legalização da maconha em diferentes estados dos EUA nas últimas duas décadas reduziu a mortalidade anual associada aos opioides de 20% a 35%, especialmente em relação aos opioides sintéticos. Para saber mais sobre a maconha (riscos e benefícios), acesse: Fumo e uso recreativo da maconha: lobo sob pele de cordeiro
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           Em 2017, as agências de saúde chegaram a recomendar que o governo do presidente Donald Trump declarasse uma situação de emergência nacional (Ref.12). Na época, já eram mais de 2 milhões de norte-americanos com problemas graves associados aos opioides e um número de mortes, já citado, cerca de seis vezes maior do que registrado em 1999. Desde então uma epidemia de opioides foi oficialmente decretada e diversos esforços governamentais têm sido feitos para resolver ou pelo menos amenizar a situação, incluindo abrir investigações contra a indústria farmacêutica. De fato, os especialistas afirmam que a crise não acabará a menos que exista um freio na quantidade dos opioides legais prescritos e frequentemente vendidos de forma suspeita e sem controle pelas companhias farmacêuticas, e os quais tendem a iniciar a dependência nas pessoas e levá-las às drogas mais fortes não-prescritas ou ilícitas.

           Em um caso notável, a Johnson & Johnson, uma das maiores companhias farmacêuticas do mundo, foi julgada em 2019 em um processo legal multibilionário encaminhado pelo estado Norte-Americano de Oklahoma (Ref.14). Os Procuradores acusaram a companhia de fazer propaganda falsa ao vender analgésicos (mascarando os riscos de dependência) e de fornecer opiáceos em excesso ao mercado, ajudando a fomentar a epidemia de opioides e tornando-se a principal protagonista por trás da crise. O estado de Oklahoma argumentou que a Johnson &Johnson criou um grave problema que custará entre US$12,7 bilhões e US$17,5 bilhões para ser resolvido nos próximos 20-30 anos. A companhia negou as acusações e afirmou que sempre comercializa seus produtos de forma responsável. Foi o primeiro dos 2 mil casos trazidos para tribunal pelos governos estadual, local ou tribal contra firmas farmacêuticas nos EUA. Acusações similares pelo estado de Oklahoma foram feitas às companhias farmacêuticas Teva Pharmaceuticals e a Purdue Pharma, mas ambas concordaram em pagar ao estado US$85 milhões e US$270 milhões, respectivamente, fechando acordos para evitar desgaste da imagem pública.
             
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> No dia 6 de agosto de 2019 o tribunal ordenou que a Johnson & Johnson pagasse US$572 milhões pela sua parte de responsabilidade por fomentar a crise de vício em opioides no estado de Oklahoma que levou à morte de 6 mil pessoas desde o ano de 2000, segundo os advogados do estado. A Advocacia Geral de Oklahoma afirmou que a J&J construiu sua marca e bilionário valor de mercado, conscientemente, em cima da dor e sofrimento de pessoas inocentes, via estratégias irresponsáveis e gananciosas de marketing e de venda. Porém, em 2021, após apelo DA Johnson & Johnson à decisão, o tribunal derrubou o caso (Ref.26).  

> Também em 2021, a Johnson & Johnson e as três maiores distribuidoras de medicamentos nos EUA - McKesson Corp (MCK.N), Cardinal Health Inc (CAH.N) and AmerisourceBergen - concordaram em pagar até US$26 bilhões para encerrar milhares de processos relacionados aos opioides movidos por múltiplos estados Norte-Americanos (Ref.27).
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   DOAÇÕES DE ÓRGÃOS

          Como a maioria das mortes causadas pelos opioides englobam indivíduos com menos de 45 anos, houve inclusive um efeito colateral positivo em meio a essa tragédia: aumento no número de órgãos cardíacos em bom estado de saúde doados, resolvendo parte do problema enfrentado no campo de transplantes dos EUA.

           Um estudo publicado em 2019 no periódico The Annals of Thoraci Surgery (Ref.15), acompanhando dados de órgãos doados e transplantados de 2000 até 2017, mostrou que dos 15904 órgãos cardíacos transplantados de doadores adultos nesse período, 10,8% deles foram oriundos de indivíduos que morreram de overdose por opioides, seguindo mortes por impacto (30,5%), hemorragias/derrames (22,1%) e feridas por armas de fogo (18,3%). Em 2017, as mortes por overdose responderam por mais de 20% dos órgãos transplantados em 11 estados, enquanto que em 2000 a mais alta taxa (5,6%) foi encontrada em apenas um estado (os outros possuíam menos de 1% dos doadores). Os doadores cardíacos que morreram por overdose (opioides), em específico, representaram 14,2% do total em 2017, hoje a porcentagem é de 16,9% (um aumento de 14 vezes a taxa de 2000).

          Muitos dos doadores cardíacos que morreram de overdose tinham menos do que 40 anos, não possuíam diabetes, hipertensão e, portanto, vêm representando doadores de alta qualidade, garantindo uma potencial maior longevidade para os receptores. Outros órgãos desse tipo de doador também tiveram aumentos expressivos, já representando 7% de todos os pulmões transplantados de 2010 até 2017. Existe, no entanto, a questão do aumento de infecções pelo vírus da Hepatite C - onde o vírus é transmitido entre os usuários de drogas injetáveis -, mas como os mecanismos analíticos de inspeção médica melhoraram bastante nas últimas décadas e como a doença já é curável, esse não é um problema preocupante frente ao bom estado dos órgãos doados.

          Nos EUA, mais de 36500 transplantes foram realizados em 2018, representando um contínuo e elevado aumento nas últimas décadas. Aproximadamente 3400 desses procedimentos foram transplantes cardíacos. Na média, 18 pacientes morrem todos os dias no país esperando um transplante em 2017. A necessidade por novos doadores continua alta.

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    E NO BRASIL?

          Indo no sentido oposto da tendência Norte-Americana, o Brasil é um dos países que menos consomem opioides no mundo, gerando, inclusive, preocupações nas agências de saúde contrárias àquelas refletidas para os EUA. Como mencionado no início, o abuso de medicamentos aqui é um grande problema, especialmente aqueles voltados para o emagrecimento (muitos deles de tarja preta). Já no caso dos opioides, o consumo chega a ser muito menor do que o recomendado pelo consenso médico! Sim, enquanto possuímos uma média de consumo de 5 mg por pessoa, países desenvolvidos possuem uma média superior a 20 mg!

          É meio confuso, mas o nível de desenvolvimento de um país (IDH) está diretamente associado ao consumo de opioides, ou seja, quanto maior o consumo, até um certo limite, maior o IDH. Sim, porque o uso de opioides dentro dos hospitais é de extrema importância para tratar quadros graves de dor, principalmente relacionados à cirurgias e a tratamentos de cânceres. Quanto melhor o conforto do paciente, melhor o prognóstico da doença e melhor a qualidade de vida do mesmo. Então, por que aqui no Brasil, o consumo não aumenta?

           A OMS (Organização Mundial de Saúde) deixa claro: o consumo de opioides por um país é de suma importância para o setor médico, mas deve ser rigidamente controlado para abusos e casos de dependência desses medicamentos não se tonarem um problema de saúde pública. Assim, fica fácil entender porque o consumo de opioides está relacionado ao grau de desenvolvimento de um país: quanto mais desenvolvido for o país, melhor ele saberá lidar com o uso de opioides. Já países menos desenvolvidos, como o Brasil, ficam com medo de liberarem um maior uso desse medicamentos, prevendo desastrosas consequências no número de dependentes químicos entre a população. Até os médicos do sistema de saúde Brasileiro ficam receosos em fornecer esses medicamentos, o que pode fazer muitos pacientes sofrerem, desnecessariamente, com fortes dores provocadas por doenças diversas. Soma-se a isso o despreparo de grande parte dos nossos profissionais de saúde em saber diagnosticar, com precisão, o nível de dor do paciente. Assim, analgésicos não muito eficientes para um determinado caso são receitados de forma incorreta, com a tendência sempre de manter os opioides como última opção.

             No Brasil, os opioides são principalmente empregados no tratamento da dor aguda intensa e da dor crônica em pacientes oncológicos, mas têm sido subutilizados pelos profissionais de saúde na prática clínica em geral. Outro uso comum, mas muito restrito, é a codeína em prescrições dentárias. Os pacientes no Brasil mostram insatisfação com o manejo da dor, em especial quando comparados aos pacientes de países desenvolvidos, onde a prescrição de analgésicos opioides é maior e a preços muito mais acessíveis (Ref.7). De certa forma, a falta de conhecimento e treinamento sobre o uso de opioides entre os profissionais de saúde , associados a políticas públicas inadequadas e restritivas fazem com que esses profissionais vejam os opioides como alternativa apenas em "último caso" - um fenômeno apelidado de "ópio-ignorância" e "opiofobia".

            Essa preocupação não é algo de completa ignorância por parte dos governos 'subdesenvolvidos', especialmente quando analisamos a atual crise pela qual vêm passando os EUA em relação ao uso indiscriminado de opioides. Porém, isso não é também desculpa para manter os pacientes em dor desnecessária. A função do governo é essa: garantir a melhor qualidade de vida possível para a sua população, considerando sempre os riscos e tomando as melhores decisões administrativas. Para isso, é necessário um maior investimento da educação básica e superior, formando cidadãos mais conscientes e profissionais da saúde mais preparados, além da diminuição da burocracia necessária para se conseguir os opioides (INCA). Mesmo com todas as restrições legais brasileiras, existe um pequeno número de casos de abuso e dependências desses medicamentos aqui no país, especialmente da codeína (2).

          Por outro lado, no Brasil existe uma significativa parcela de pessoas com idade mais avançada afetada por dores crônicas usando opioides como tratamento de longo prazo, o que levanta preocupação para abusos e usos inadequados. E devido à quase ausência de heroína e outros opioides potentes como a fentanila no cenário de abuso de drogas no país, políticas para o cuidado de pessoas com transtorno do uso de opioides ainda inexistem. 

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(2) Os opioides associados aos tratamentos médicos podem ser divididos em duas categorias: fortes e fracos. Os fortes possuem potentes efeitos analgésico e de dependência, como a morfina, a metadona e a oxicodona. Os fracos possuem moderados efeitos analgésico e de dependência, como a codeína e o tramadol.

> É importante destacar que houve um aumento de ~500% nas vendas de fármacos opioides de 2009 até 2015 no Brasil. Esse aumento de vendas não foi alimentado pela fentanila, mas por codeína e um rápido crescimento nas prescrições de oxicodona (quase ausente antes de 2010). Codeína e oxicodona continuam os principais representantes de uso e abuso de opioides no Brasil. Existe, porém, preocupação de especialistas sobre a possível mistura de fentalina no suprimento de cocaína - um crescente problema nos EUA - em mercados ilegais no Brasil, aproveitando em particular a pandemia de COVID-19 e o crescente uso esse potente fármaco em pacientes com quadros severos da doença (Ref.24) (!).

Curiosidade: Heroína foi uma droga produzida pela gigante farmacêutica Bayer no final do século XIX. Para mais informações: Qual a relação entre Bayer e heroína?
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   (!) COVID-19: MOTIVO DE PREOCUPAÇÃO?

            Opioides são cruciais analgésicos e sedativos usados para o cuidado adequado de pacientes com COVID-19 severa, a maioria dos quais são tratados em unidades de tratamento intensivo (UTIs). Medicamentos como a fentanila têm sido amplamente usados em infusões intravenosos para sedar pacientes, geralmente em combinação com outros medicamentos como benzodiazepinas (ex.: midazolam) ou outras classes terapêuticas como propofol e dexmedetomidina. Outros opioides, como morfina e metadona, e rotas de administração além da intravenosa (ex.: enteral ou subcutânea) também têm sido usados para reduzir a agitação e agonia de pacientes durante a ventilação mecânica.

          A pandemia da COVID-19, nesse sentido, trouxe mais uma preocupação para países enfrentando uma crise de opioides, como EUA e Canadá. Aqui no Brasil, em especial devido à pouca prática de uso e prescrição de opioides pelos profissionais de saúde, preocupações de uso inadequado e abuso têm sido também levantadas - apesar dessas preocupações não estarem necessariamente associadas com potenciais epidemias no país. 

           Durante a COVID-19, houve orientações nacionais [Brasil] para o uso de opioides em pacientes hospitalizados com formas severas da doença, especialmente aqueles necessitando de ventilação mecânica, com recomendações preferenciais para o uso de opioides potentes com curta meia-vida, como fentanila e remifentanila - via infusão contínua. Esses opioides mais potentes poderiam ser substituídos por morfina em casos de escassez dos fármacos recomendados.

          Um estudo recentemente publicado no periódico Scientific Reports (Ref.23) alertou que houve um relevante aumento no consumo intra-hospitalar de alguns opioides potentes em 2020 durante a pandemia de COVID-19 no Brasil, especialmente fentanila e metadona (intravenosa e enteral), em paralelo com uma redução no consumo de morfina, sufentanil e tramadol. Os autores do estudo recomendaram que os profissionais e autoridades de saúde no país aumentem a vigilância sobre o uso prescrito ou não prescrito de potentes opioides fora do ambiente hospitalar por pacientes com COVID-19 severa liberados, assim como potenciais desvios desses medicamentos para uso ilegal (ex.: venda de drogas nas ruas).


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    CONCLUSÃO

           No final, os opioides são uma espada de dois gumes: podem ser extremamente benéficos ou extremamente maléficos, dependendo do manuseio da arma. Enquanto o relaxamento burocrático excessivo pode trazer péssimas consequências para a saúde pública de um país, como os EUA, o extremo travamento na liberação desses medicamentos constituem também um grave problema médico, como no Brasil. É preciso razoabilidade, profissionalismo e foco no paciente. Além disso, é necessário impedir que as influências da indústria farmacêutica ditem as vendas abusivas desses medicamentos, como ocorreu nos EUA. E caso você esteja enfermo e sentindo muita dor, exija do seu médica o uso de opioides caso os analgésicos tradicionais não estejam funcionando. Mas, na situação oposta, não aceite a prescrição de opioides por médicos, ou qualquer outra pessoa, caso sua dor não seja significativa. O envolvimento consciente e responsável do paciente também é de extrema importância nesse cenário.


Dr. House
CURIOSIDADE: Quem acompanha ou conhece a série 'House', deve ter notado que o Dr. Gregory House, personagem principal da série, é um dependente químico de analgésicos, fazendo todo tipo de tramoia e se metendo em vários problemas para conseguir quantidades abusivas desses fármacos. Os analgésicos em questão são justamente representados por um opioide, a hidrocodona.



IMPORTANTE: Nunca faça uso de opioides sem expressa prescrição e acompanhamento médico! A dependência dessas substâncias não é muito diferente da dependência com narcóticos, onde a própria heroína é um opioide. Tratamentos feitos com esses medicamentos são idealmente de curto prazo e em doses extremamente controladas, só sendo recomendados em casos de real necessidade.


Artigo relacionado: Qual é o problema dos inibidores de apetite?


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16485087
  2. http://www.cdc.gov/drugoverdose/pdf/guidelines_factsheet-a.pdf
  3. https://www.drugabuse.gov/about-nida/legislative-activities/testimony-to-congress/2016/what-federal-government-doing-to-combat-opioid-abuse-epidemic
  4. https://www.drugabuse.gov/publications/research-reports/prescription-drugs/opioids/how-do-opioids-affect-brain-body
  5. http://www.hhs.gov/opioids/about-the-epidemic/
  6. https://www.nlm.nih.gov/medlineplus/magazine/issues/spring11/articles/spring11pg9.html
  7. http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0304395904004476
  8. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/controle_da_dor.pdf
  9. http://www.anvisa.gov.br/divulga/public/livro_eletronico/Dor.html
  10. Abuso e dependência dos derivados do ópio (Ministério da Saúde)
  11. https://www.cdc.gov/drugoverdose/index.html
  12. https://www.nytimes.com/interactive/2017/08/03/upshot/opioid-drug-overdose-epidemic.html
  13. https://www.cdc.gov/opioids/index.html
  14. https://www.bbc.com/news/world-us-canada-48437082
  15. https://www.annalsthoracicsurgery.org/article/S0003-4975(19)30588-0/fulltext
  16. https://www.eurekalert.org/pub_releases/2019-06/sm-m060619.php
  17. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/02791072.2019.1626953
  18. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/ecin.12819
  19. Costa et al. (2021). Risco de abuso de opioides em ambulatório de dor crônica não oncológica. BrJP, 4(3). https://doi.org/10.5935/2595-0118.20210037
  20. Piovezan et al. (2022). Uso e prescrição de opioides no Brasil: revisão integrativa. BrJP, 5(4):395-400. https://doi.org/10.5935/2595-0118.20220051-p
  21. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9937628/
  22. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC10366477/
  23. Carvalho et al. (2023). Shift in hospital opioid use during the COVID-19 pandemic in Brazil: a time-series analysis of one million prescriptions. Scientific Reports 13, 17197. https://doi.org/10.1038/s41598-023-44533-5
  24. Bastos & Krawcyk (2023). Reports of rising use of fentanyl in contemporary Brazil is of concern, but a US-like crisis may still be averted. The Lancet Regional Health, Volume 23, 100507. https://doi.org/10.1016/j.lana.2023.100507
  25. Gottschalk, M. (2023). The Opioid Crisis: The War on Drugs Is Over. Long Live the War on Drugs. Annual Reviews, Volume 6: 363-398. https://doi.org/10.1146/annurev-criminol-030421-040140
  26. https://www.reuters.com/business/oklahoma-court-overturns-465-million-opioid-award-against-johnson-johnson-2021-11-09/
  27. https://www.reuters.com/world/us/drug-companies-say-enough-us-states-join-26-bln-opioid-settlement-proceed-2021-09-04/