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Qual a relação entre Ouro, Mercúrio e Relatividade?

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      *Antes de ler o texto abaixo, não é preciso ficar preocupado porque aspectos físico-químicos e relativísticos envolvidos não foram desnecessariamente aprofundados. Mas para entender idealmente os conceitos abordados, seria necessário um conhecimento acadêmico na área em um nível mais avançado. Qualquer dúvida, deixe registrado nos comentários para eventuais respostas.

- Atualizado no dia 13 de julho de 2019 -

         A famosa Teoria da Relatividade, Geral e Especial, é ainda um desafio abstrato para a maioria. São poucos os que realmente entendem a matemática desenvolvida pela genialidade de Einstein e de outros cientistas que ajudaram a dar base para as duas teorias (Albert A. Michelson, Hendrik Lorentz, Henri Poincaré, Max Planck, Hermann Minkowski e outros). Na verdade, os resultados da Relatividade parecem tão abstratos que muitos pensam que eles estão associados apenas com situações fora do nosso alcance cotidiano, sendo difícil conceber ideias como distorção temporal e diversos outros fenômenos ligados à gravidade e à velocidade da luz. Mas exemplos cotidianos comprovam a veracidade da teoria, incluindo o ouro e o mercúrio!

        Como já explorado em um artigo anterior (Qual é a relação entre GPS, Núcleo da Terra e Teoria da Relatividade?), o mais clássico exemplo de como a teoria da relatividade pode ser comprovada na prática é através do funcionamento do nosso conhecido GPS. Sem a Relatividade, não existe GPS! Mas para não ficarmos sempre presos no nosso sistema de localização para reafirmar as ideias relativísticas, algo bastante curioso também ocorre devido à relatividade: vocês podem não querer acreditar, mas a cor amarela do ouro e o estado líquido do mercúrio à temperatura ambiente são explicados apenas se efeitos relativísticos forem levados em conta (1)!

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          Para entendermos isso melhor, vamos recapitular algumas características gerais dos metais. Grande parte desses materiais são maleáveis, dúcteis, de cor prateada, sólidos à temperatura ambiente e bons condutores. E isso pode ser verificado desde o lítio até a platina. Logo depois da platina, na tabela periódica, vem o ouro e, depois, o mercúrio. Curiosamente, esses dois fogem à regra geral dos metais, com o primeiro exibindo uma cor dourada e o segundo sendo líquido a temperatura ambiente. O "logo depois" faz referência ao número atômico (Z) desses elementos, sendo que a platina possui Z igual a 78, o ouro 79 e o mercúrio 80. Para explicar as anômalas características do ouro e do mercúrio é onde finalmente entramos com a Relatividade, no caso em particular, a Relatividade Especial.

          O núcleo atômico é composto de prótons e nêutrons (exceto para o hidrogênio, o qual possui apenas um próton). Os prótons possuem carga positiva no mesmo valor em módulo da carga negativa de um elétron. A atração eletrostática entre ambos é o que os mantêm unidos no átomo. Acontece que quanto maior o número de prótons no núcleo (Z), mais forte é a atração que os elétrons na eletrosfera (camada no átomo onde os elétrons se movem ao redor do núcleo) sofrem do mesmo. Para os elétrons não caírem no núcleo positivo, eles precisam manter uma velocidade X (muito alta, na ordem de grandeza da velocidade da luz) para ficarem afastados a uma distância Y (utilizando, claro, o modelo atômico de Bohr; vamos deixar um pouco de lado o Princípio da Incerteza de Heisenberg para simplificar as coisas) (2). Quanto maior a atração, mais próximos os elétrons ficam do núcleo e, assim, maior é a velocidade necessária para essas partículas não caírem nesse núcleo, especialmente os dois primeiros elétrons na ordem de distribuição eletrônica na eletrosfera. E é aí que vem a parte interessante!

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             Os números atômicos do ouro e do mercúrio são muito altos, fazendo com que a atração que os dois elétrons sintam no primeiro subnível eletrônico seja enorme. Assim, a velocidade requerida pelos primeiros elétrons é algo próximo de 60% da velocidade da luz (a qual possui valor próximo de 300000 km/s no vácuo). Nessa velocidade absurda, o efeito da dilatação de massa para o elétron se torna bastante significativo, ou seja, a massa do elétron é aumentada - maior inércia e interação gravitacional à sua massa de repouso - para um valor de massa relativístico (melhor traduzido em 'energia total' [3]). Isso segue a equação abaixo (1°), a qual é produto direto da Relatividade Especial. Com essa nova massa (massa relativa), o raio do elétron (distância Y e, na equação abaixo, ao) em relação ao núcleo diminui ainda mais, somando-se com o efeito eletrostático, e isso de acordo com a segunda equação da figura abaixo (2°). Essa nova contração faz com que ocorra efeitos na eletrosfera do ouro e do mercúrio além do previsto quando os efeitos relativísticos não são levados em conta.
Com uma velocidade considerável, a massa do elétron (Me) aumenta significativamente, gerando uma massa relativa (Mrel) que, substituindo a massa normal do elétron na segunda equação, gera um raio de Bohr menor do que o esperado

            No mercúrio, os dois elétrons do orbital 6s ficam com um aspecto de 'nobre', tornando-se bem difíceis de desgarrarem de onde estão. Esse metal, em estado gasoso, por exemplo, apresenta-se quase sempre como átomos isolados de mercúrio. E, à temperatura ambiente, encontra-se líquido porque os elétrons "mais presos" não interagem como nos outros metais, fazendo com que as forças de ligação tenham um caráter mais fraco. Isso faz com que a forma líquida (caracterizada por  ligações interatômicas bem mais fracas do que no sólido) prevaleça a partir da baixíssima temperatura de -38°C. Até seu ponto de ebulição é muito baixo para um metal (356°C), algo que o fez (e faz, infelizmente...) ser bastante utilizado nas extrações de ouro (4).

O abstratismo de Einstein gera resultados bem reais e palpáveis; o ouro (à direita) e o mercúrio (à esquerda) são exemplos mais do que claros de que a Relatividade nos acompanha para todo lugar

           Já no caso do ouro, o efeito relativístico da contração extra faz com que os orbitais 5d e 6s desse metal fiquem mais próximos um do outro do que o esperado. Assim, as absorções de energia entre esses orbitais são significativamente alteradas e o metal passa a absorver mais radiação azul da luz incidente do que o normal. Como o complementar do azul é o amarelo no espectro luminoso, passamos a ver muito mais amarelo saindo do ouro e, por isso, a cor dourada característica desse metal. A prata, por exemplo, a qual está na mesma família do ouro, também apresenta uma transição energética parecida entre os seus orbitais 4d e 5s. Mas como seu número atômico é menor, os efeitos relativísticos também são menos intensos, fazendo com que a distância entre esses orbitais permaneça em um valor tal que impede essa maior absorção do azul. Isso faz com que a prata mantenha ainda o prateado característico dos outros metais. 

          Se fizéssemos um cálculo de estado sólido sobre o ouro sem incluirmos os efeitos relativísticos, a cor de reflexão superficial encontrada para esse metal seria o nosso prateado metálico típico.

          Algo parecido com o ouro ocorre com o metal césio, o qual possui um número atômico também razoavelmente alto (55). O césio, diferente dos outros da sua família (metais alcalinos) possui uma cor meio amarelada, devido a um efeito relativístico mais tímido.

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            Diversos outros efeitos químicos inesperados ocorrem devido aos efeitos relativísticos. Os dois fenômenos acima foram exemplificados e explorados porque são bem conhecidos do público geral, sendo que os outros envolvem um entendimento mais complexo de físico-química. De qualquer forma, o objetivo foi mostrar que as teorias da relatividade geral e  especial possuem notáveis implicações no mundo macroscópico, e não ficam apenas no campo abstrato. 
        
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(1) Além do efeito relativístico, grande parte da contração experienciada na eletrosfera do ouro e do mercúrio se deve ao chamado 'efeito dos lantanídeos', no qual a blindagem do orbital 4f não é efetiva o suficiente, gerando uma maior atração dos elétrons em subníveis eletrônicos mais exteriores.

(2) É preciso reforçar que no decorrer do século XX, o modelo atômico passou a ser inteiramente explicado pela Mecânica Quântica. Os elétrons, nesse sentido, são partículas pontuais adimensionais que não estão descrevendo uma 'órbita' em torno do núcleo, mas dispostos espalhados na forma de "nuvens" de probabilidades com formatos específicos e como uma função de onda. Partículas no mundo quântico possuem um comportamento muito diferente daquelas visíveis no mundo macroscópico. Ou seja, na explicação dada neste artigo, continua a relação de equilíbrio entre energia potencial e energia cinética, mas em termos de função de onda e obedecendo aos resultados da equação de Schrödinger.

(3) Para complementar o assunto, leitura recomendada: A velocidade do Flash.

(4) Nos centros de mineração mais rudimentares (ou antigos) o ouro é extraído facilmente quando se usa o mercúrio para dissolvê-lo. A solução final é chamada amálgama (liga metálica entre mercúrio e um outro metal) e, no caso do ouro, uma liga bem densa é formada e aglutinada, ficando fácil separá-la dos outros minerais. Para recuperar o ouro da amálgama, esta é aquecida, fazendo com que o mercúrio evapore e deixe para trás somente o ouro. Não é preciso dizer que esse é um método extremamente perigoso por causa da formação de vapor tóxico de mercúrio. Diversos mineradores morreram ou ficaram gravemente doentes devido à exposição dos vapores ao longo da história.

Mas e o cobre? O cobre é a única notável exceção que foge da própria regra de exceção das cores dos metais. Para começar, é preciso deixar claro que a cor 'vermelha-amarronzada' do cobre que vemos no dia-a-dia é devido à oxidação da sua superfície, ou seja, é devido à presença de óxido de cobre (I). Porém, mesmo quando polimos bem o cobre ou o obtemos sólido em um ambiente não oxigenado, sua cor ainda permanece um tanto rosa-alaranjada. Sim, esse metal não possui a cor prateada metálica típica dos outros metais, assim como o ouro. No entanto, a explicação para isso não tem nada a ver com efeitos relativísticos, e, sim, com a configuração eletrônica específica desse elemento. Nesse caso, o subnível 3d totalmente preenchido do cobre é menos blindado pelos subníveis s e p do que o esperado, interferindo significativamente e de forma anômala na diferença de energia entre os subníveis 3d e 4s (semi-preenchido).




Artigo Relacionado:  Não existe gravidade no Espaço?



REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. Física (Vol. 4); Sears, Zemansky, Young & Freedman (14a. edição)
  2. Fundamentos de Física; D. Halliday, R. Resnick e J. Walker
  3. Física Moderna (6a. edição, 2014); P. Tipler e R. Llewellyn Ed. LTC
  4. http://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/ed068p110
  5. http://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/cr00085a006
  6. http://scitation.aip.org/content/aip/journal/jcp/91/3/10.1063/1.457082
  7. http://pubs.rsc.org/en/content/articlelanding/1997/dt/a605473k/unauth#!divAbstract
  8. http://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/ja00045a027
  9. http://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-physchem-032511-143755