YouTube

Artigos Recentes

Sopa de barbatanas e injusta má fama estão dizimando os tubarões


- Atualizado no dia 13 de janeiro de 2024 -

Compartilhe o artigo:



           O cinema é famoso por trazer animais como protagonistas. Mas, infelizmente, muitos deles são retratados como monstros assassinos. Isso acabou gerando uma imagem muito negativa das pessoas em cima de vários integrantes da fauna, como cobras e tubarões. O tubarão-branco (Carcharodon carcharias) talvez seja o exemplo mais icônico, cuja fama de assassino foi deflagrada com o impactante filme 'Tubarão' (Jaws, 1975). E esse terror exagerado acaba acobertando milhões de mortes desnecessárias e preocupantes entre várias espécies. Os tubarões, em especial, estão sendo bastante prejudicados por isso, onde pescadores aproveitam dessa má fama e dos lucros gerados pelo comércio ilegal de barbatanas para efetuarem um verdadeiro massacre em alto mar.

          O termo 'tubarão' é um nome generalista dado aos peixes que possuem esqueleto cartilaginoso e um corpo altamente adaptado ao nado pertencentes à superordem Selachimorpha, esta a qual emergiu de ancestrais da subclasse Elasmobranchii cujos primeiros representantes evoluíram há cerca de 425 milhões de anos. Os tubarões modernos se diversificaram em um enorme número de espécies, incluindo famosos representantes extintos, como o gigantesco Megalodon (Carcharodon megalodon), ou enormes representantes hoje vivos, como o tubarão-baleia (Rhincodon typus), o qual pode alcançar 12,6 metros de comprimento e massa de 21,5 toneladas. 

          Podendo ser encontrados em profundidades de até 2000 metros, os tubarões habitam mares do mundo inteiro, mas algumas poucas espécies, como o tubarão-cabeça-chata (Carcharhinus leucas), podem também habitar águas doces. Apesar de imponentes caçadores e muito bem adaptados ao ambiente marinho, os tubarões hoje são um dos grupos de vertebrados mais ameaçados do mundo. Além da perda de habitat, perseguição e mudanças climáticas, sua super-exploração comercial é provavelmente a principal causa do acentuado declínio populacional que atinge praticamente todas as espécies. Isso pode ser explicado pelo típico ciclo de vida de várias dessas espécies, o que inclui lento crescimento, grandes longevidades, maturidade sexual tardia e baixa taxa de fecundidade.



          Mesmo com essa vulnerabilidade, a carne de tubarão vem fazendo parte da dieta humana há milhares de anos, sendo considerada um prato tradicional em nações ao redor de todo o globo, do ocidente ao oriente, em países desenvolvidos ou em subdesenvolvimento, especialmente em sociedades Asiáticas. Em comunidades costeiras é uma importante fonte de proteínas. Porém, durante a década de 1980, a pesca e a exploração dos tubarões se expandiu de forma descontrolada - fenômeno possivelmente fomentado pelo rápido crescimento das economias Asiáticas (principalmente a China) -, resultando em um aumento sem precedentes pela demanda de barbatanas para a feitura de sopas, um prato de celebração em muitos países Asiáticos.

- Continua após o anúncio -



          De fato, a sopa de barbatana de tubarão é um prato muito apreciado e valorizado no mercado Asiático. O preço do quilo de barbatana chega a valer 600 euros (algo em torno de 2500 reais) no mercado negro e isso encoraja grande parte dos navios pesqueiros a perseguirem os tubarões. Estudos realizados pela FAO (Organização das Nações Unidas sobre a Agricultura e a Alimentação) e por organizações de conservação ambiental independentes apontam anualmente têm sido capturados e mortos entre 100 milhões e 150 milhões de tubarões (!). Para se ter uma ideia, as importações mundiais de carne de tubarão no comércio legal alcançaram 121641 toneladas anualmente, associado a um valor de mercado de US$379,8 milhões apenas em 2011; e isso não engloba a absurda escala do comércio ilegal. Além das barbatanas, as partes comercializadas do corpo desses peixes são usadas na medicina Chinesa (a qual não possui base científica nenhuma que justifique o uso dos tubarões) e sua cartilagem em produtos farmacêuticos. O consumo alimentar de barbatana também é motivado em parte por supostos efeitos terapêuticos alegados.

Dezenas de tubarões morreram apenas para encher esta pequena mesa no mercado de Hong Kong. Aliás, Hong Kong é a porta de entrada para cerca de 50% das barbatanas secas comercializadas no mundo, sendo dali re-exportadas em grande parte para a China continental. Entre 1960 e 2002, as importações desse produto cresceram em 6 vezes nessa região, apesar de declínios nos últimos anos devido às massivas campanhas internas de conscientização para a conservação dos tubarões. Por outro lado, existem evidências que outros mercados internacionais, como no Vietnã e e em Macau, estão compensando esses declínios com uma maior taxa de importação das barbatanas. Indonésia e Tailândia também aumentaram nos últimos anos o apetite por barbatanas, tanto para exportação quanto para turismo interno.


-----------
(!) Um estudo recentemente publicado na Science (Ref.15), estimou que o número anual de tubarões mortos na atividade pesqueira subiu de 76 milhões/ano em 2012 para uma média de ~80 milhões por ano entre 2017 e 2019. E, o mais contraditório: legislação protetora aumentou em mais de 10x durante o mesmo período (2012-2019). Mais de 30% das capturas de tubarões têm envolvido espécies atualmente ameaçadas de extinção. Cerca de 95% da mortalidade global está ocorrendo nas pescas costeiras. Quando tubarões não propriamente identificados pela espécie foram levados em conta, a mortalidade global estimada em 2019 foi de 101 milhões.

> Segundo os dados desse último estudo, a caça de barbatanas continua sendo um importante fator de declínio dos tubarões nas atividades pesqueiras, porém a caça pela carne desses peixes também vêm ganhando cada vez mais destaque. Proibições de caça de barbatana mostraram pouco impacto, mas regulações pesqueiras têm mostrado algum resultado na redução da mortalidade. Medidas mais eficazes de conscientização, aperto das regulações e criação de áreas marítimas de proibição de caça precisam ser implementadas para permitir exploração sustentável desses peixes e reduzir ao máximo a caça de espécies vulneráveis. Ref.15-17
-----------

          Para piorar, um inconcebível número de países, na maioria Asiáticos, permite a prática de cortar as barbatanas do corpo dos tubarões - contando que não os matem. Outras nações mais sensatas proibiram totalmente essa cruel prática, e podemos citar a União Europeia como exemplo (e mesmo o bloco Europeu só anunciou essa proibição em anos recentes). O problema maior nesse caso é que retirar as barbatanas dos tubarões, mesmo se apenas algumas, praticamente os entregam a curto prazo para a morte certa. Sem a integridade do conjunto de barbatanas, esses grandes peixes ficam impossibilitados de nadar direito, fazendo deles alvo fácil de outros predadores, além de interferir com sua capacidade de caça. Ferimentos também, consequentes do corte da barbatana, levam estes animais a adquirirem infecções letais. E apesar do corte de barbatanas ser ilegal em vários países, manter parte dos tubarões pegos sem querer durante a pesca para servir como isca ainda é, infelizmente, permitido para a grande maioria das espécies. E isso, obviamente, ajuda a acobertar a exploração ilegal.

As barbatanas visadas para corte (destacadas em marrom)

            As embarcações de atum são as que mais conduzem esse tipo de operação (exploração de tubarões para isca ou pelas barbatanas), legal ou não. Mesmo não visando inicialmente a pesca dos tubarões, esses peixes acabam somando (bycatch), em geral, mais do que 25% da massa de pescado em cada rede lançada, às vezes chegando à 50%. Eles são atraídos pela grande quantidade de atuns nas redes e acabam presos junto a esses peixes. Assim, a tentação em ganhar dinheiro fácil fomenta uma verdadeira carnificina, e a parte que pode ser usada como "isca" acaba quase sempre ultrapassando os limites legais. Isso inclusive leva ao descaso consciente de técnicas pesqueiras que comprovadamente diminuem as taxas de bycatch  (ou 'fauna acompanhante').

          Os esquemas de tráfico de barbatanas são múltiplos, com a carga do produto passando de navio para navio, ou para barcos menores. Quando alguém vai verificar a carga de uma embarcação suspeita, nada é encontrado, especialmente porque as barbatanas residuais são fáceis de serem escondidas entre o pescado, principalmente no meio de toneladas de atum (outro peixe ameaçado de extinção pela pesca predatória). Como os tubarões são peixes bem grandes, o resto do corpo destes animas geralmente é descartado, tendo em vista o valor bem menor frente às valiosas barbatanas, o que ainda gera mais espaço nos compartimentos das embarcações para outros pescados. Ou seja, por causa de algo que não chega a ser nem 5% do corpo destes animais, eles são mortos sem piedade. O vídeo abaixo, de 2012, mostra a existência da prática covarde aqui no Brasil.


                           


          Aliás, um estudo publicado em 2019 na Scientific Reports (Ref.7) mostrou que a busca descontrolada e ilegal por barbatanas está atingindo em larga escala até mesmo o mercado Europeu. Analisando 78 amostras em lojas de frituras, 39 amostras de vendedores de peixes - a maioria no sul da Inglaterra -, 10 barbatanas de um supermercado, e 30 barbatanas apreendidas na fronteira do Reino Unido indo de Moçambique para a Ásia, os pesquisadores encontraram várias barbatanas de espécies ameaçadas - como o tubarão-martelo (gênero Sphyrna), tubarão-cabeça-chata (C. leucas) e uma pequena espécie de tubarão que possui espinhos venenosos muito afiados nas barbatanas dorsais (Squalus acanthias) - sendo comercializadas no Reino Unido. As análises de identificação dos tubarões a partir das amostras de barbatana - coletadas em 2018 - foram feitas com base no material genético extraído. Muitas pessoas na Europa e em várias outras partes do mundo que compram produtos alimentícios a base de tubarão não sabem que podem estar consumindo espécies fortemente ameaçadas de extinção. Somando-se a isso, é muito difícil distinguir barbatanas de uma espécie para outra no meio comercial apenas via inspeção visual.



           Hoje, aproximadamente um terço dos tubarões de mar aberto e aproximadamente 24% de todas as espécies de tubarões estão perigosamente ameaçados de extinção por causa da caça excessiva e muitas outras espécies de tubarão podem ser extintas nas próximas décadas se mais campanhas de conscientização não forem promovidas e se regulações na exploração comercial dos tubarões mais rígidas e efetivas não forem globalmente adotadas. É estimado que anualmente mais de 1,8 milhões de toneladas de tubarões, raias (superordem Batoidea) e quimeras (ordem Chimaeriformes) - todos peixes cartilaginosos muito ameaçados de conservação - sejam pescados, ultrapassando absurdamente o máximo de 200 mil toneladas definido como exploração comercial sustentável desses animais. Em 2009, mais de 50% de todos os tubarões pescados tiveram origem da Indonésia, Índia, Espanha, Taiwan, México, Paquistão, Argentina, EUA, Japão e Malásia. Só na Indonésia, o maior país em termos de pesca de tubarão, a massa de tubarões capturados ultrapassa as 100 mil toneladas todos os anos.

           Em um estudo publicado em 2021 no periódico Nature (Ref.10), pesquisadores encontraram que desde 1970 a abundância global de tubarões e raias nos oceanos declinou 71% devido ao crescimento relativo da pressão de pesca de 18 vezes. Segundo concluiu o estudo, esse dramático declínio populacional coloca três quartos (75%) das espécies em considerável risco de extinção. Estritas proibições para espécies em risco de extinção e limitação de pesca para espécies em declínio populacional mas ainda não em risco de extinção são urgentemente necessárias para evitar colapsos populacionais, disrupção de importantes funções ecológicas e promoção de recuperação das espécies ameaçadas.

          Os especialistas propõem que as campanhas de conscientização visem principalmente o incentivo ao abandono do uso de barbatanas para a alimentação e produção de remédios (Ref.9), já que essas partes anatômicas representam uma pequena fração do corpo dos tubarões - ou seja, muitos indivíduos precisam ser mortos para resultar em um montante considerável de barbatanas - e são as mais valorizadas. Algumas espécies já tiveram suas populações diminuídas em quase 90% desde o início do século XX, e, atualmente, apenas 37% das espécies de tubarões não estão ameaçadas. Existem leis que protegem integralmente certas espécies mais vulneráveis, como o tubarão-branco, mas o problema é que a fiscalização em alto-mar é muito difícil de ser feita, mesmo com a ajuda de ambientalistas voluntários. Soma-se a isso a ajuda escondida de diversos governos Asiáticos por causa dos imensos lucros gerados, e a corrupção em diversos setores é comum.          

- Continua após o anúncio -



          E, para completar o desastroso cenário, ainda temos o fator 'rejeição popular'. Como mencionado, as pessoas tendem a temer excessivamente os tubarões por causa da má fama associada a esses animais. Se é um fofo panda, o público corre para apoiar a sua preservação. Mas se é um tubarão, o mesmo público ignora o "monstro", e muitos acham que os pescadores estão fazendo um serviço benevolente para a humanidade, livrando-nos desse "perigo marinho". De fato, em um estudo publicado no periódico Human Dimensions of Wildlife (Ref.11), pesquisadores encontraram que 96% de 109 filmes registrados no IMDB até janeiro de 2020 sobre tubarões retratam esses animais como uma ameaça aos humanos; apenas 3% retrataram como 'potencial' ameaça e apenas um retratou interações entre humanos e tubarões sem a sensacionalista visão de ameaça.

           Se as pessoas soubessem do desastre ecológico causado pelo desaparecimento gradual dos tubarões, mudariam rápido de pensamento.

              Além de estarem no topo da cadeia alimentar marinha e, portanto, controlar de forma saudável as populações de outros animais, eles ainda fazem um serviço de limpeza ambiental, eliminando os indivíduos fracos e doentes do sistema (suas presas prioritárias), contribuindo para a saúde de milhares de espécies oceânicas. Sem eles, animais doentes poderiam infestar muitos outros, levando a mortes em massa. Outra importante função desses peixes é na reciclagem de nutrientes através das fezes (Ref.14). E outra: das mais de 500 espécies de tubarões conhecidas, apenas pouco mais de 30 estão envolvidas em incidentes com seres humanos, mais para se defenderem, ou quando nos confundem com uma foca (!), do que qualquer outra coisa. Os tubarões vem evoluindo muito antes da emergência dos primatas no planeta, mamíferos estes que, obviamente, não pertencem ao mar. 

-------------
(!) No caso dos temidos tubarões-brancos (Carcharodon carcharias), existe evidência de que esses predadores podem às vezes confundir nadadores e surfistas sobre pranchas - considerando a visão dos tubarões de silhuetas na superfície do mar - com algumas das suas presas favoritas (focas e outros pinípedes) (Ref.11). Mas isso é muito longe da ideia de que esses animais saem caçando humanos pelos mares e em locais desconexos com suas presas marinhas.
------------

              Somando-se a isso, todas as praias do mundo são obrigadas a informar se existem aparições frequentes de tubarões, para manter os banhistas afastados. Mas vários ignoram esses avisos. E para você ter uma ideia: por ano, apenas em torno de 10 pessoas morrem vítimas de ataques relacionados a tubarões no mundo inteiro. Enquanto isso, matamos mais de 100 milhões deles no mesmo período direta e indiretamente.

Por que arriscar? Por que aumentar a má fama desses animais sem necessidade? Aliás, por que colocar a expressão 'ataque' se são os humanos invadindo o habitat dos tubarões? 
           

REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. http://www.fao.org/ipoa-sharks/tools/software/isharkfin/en/
  2. http://www.state.gov/e/oes/ocns/fish/bycatch/shark/
  3. http://wwf.panda.org/wwf_news/?210550/Hong-Kong-Government-Issues-Shark-Fin-and-Bluefin-Tuna-Ban
  4. http://www.marineconservation.org.au/pages/shark-finning.html
  5. http://www.nmfs.noaa.gov/stories/2012/08/08_13_12new_shark_week_splash_page.html
  6. http://www.greenpeace.org.au/blog/shark-attack/
  7. https://www.nature.com/articles/s41598-018-38270-3
  8. http://csum-dspace.calstate.edu/handle/10211.3/207944
  9. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0308597X18303038
  10. https://www.nature.com/articles/s41586-020-03173-9
  11. https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/10871209.2021.1951399
  12. Ryan et al. (2021). A shark's eye view: testing the ‘mistaken identity theory’ behind shark bites on humans. Journal of the Royal Society Interface, Volume 18, Issue 183. https://doi.org/10.1098/rsif.2021.0533
  13. Robinson et al. (2022). Fisher–shark interactions: A loss of support for the Maldives shark sanctuary from reef fishers whose livelihoods are affected by shark depredation. Conservation Letters, 00, e12912. https://doi.org/10.1111/conl.12912
  14. https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rspb.2017.2456
  15. Worm et al. (2024). Global shark fishing mortality still rising despite widespread regulatory change. Science, Vol. 383, No. 6679, pp. 225-230. https://doi.org/10.1126/science.adf8984
  16. https://news.ucsb.edu/2023/021304/global-study-reveals-pathways-save-threatened-sharks-despite-rising-mortality-trends
  17. https://www.science.org/content/article/shark-kills-rise-more-100-million-year-despite-antifinning-laws