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Relatos de caso: Miíase e queijo Casu Marzu


- Atualizado no dia 13 de maio de 2023 -

           Um garoto de 3 anos de idade foi apresentado ao departamento de emergência com um histórico de 5 dias de um progressivo e dolorido inchaço no escalpo. O paciente tinha recentemente retornado da Austrália seguindo férias de 3 meses no Leste Africano. Ele estava sistematicamente bem, sem nenhum registro médico preocupante. Pouco antes da apresentação hospitalar, um aparente movimento foi notado na ponta da lesão, e uma única larva tinha sido expressa e removida pela mãe do paciente.


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           Exame laboratorial revelou um inchaço furuncular não-flutuante de 10 milímetros (mm) sobre o occipício (parte ínfero-posterior da cabeça), e com uma ponta cicatrizada (crosta) de 5 mm de espessura. Não existiam outras lesões, ou outro aspecto clínico relevante. A larva, trazida pela mãe do paciente, tinha 18 mm de comprimento e ainda estava móvel, como observado no vídeo abaixo.



           A larva foi identificada como pertencente à mosca-tumbu (Cordylobia anthropophaga), também conhecida como mosca da manga, mosca-tumba, mosca-putzi ou mosca da larva da pele. É uma espécie de mosca comum na África Central e Oriental, e um parasita de grandes mamíferos durante o estágio larval.


          A mosca-tumbu é uma causa comum de miíase furunculóide (ou furuncular) na África Subsaariana. As fêmeas dessa espécie deposita seus ovos sobre superfícies no solo, e a larva eclode sobre o contato com o calor corporal de mamíferos, se enterrando subsequentemente dentro do tecido subcutâneo do hospedeiro. Uma única ou múltiplas lesões furunculares, cada uma contendo uma única larva, se desenvolve com prurido (persistente coceira) e dor associados. Os espiráculos respiratórios podem se tornar visíveis no poro central do furúnculo à medida que a larva amadurece. Uma reação inflamatória ao redor da lesão progride até que a larva alcance maturidade 8-12 dias após a infecção inicial. O ciclo de vida é comparativamente mais curto do que aquele da mosca da espécie Dermatobia hominis (!), a outra causa comum de miíase furuncular. Nesse sentido, a identificação da espécie correta pode ser útil para determinar a probabilidade de lesões adicionais se tornarem mais aparentes.

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          O tratamento da miíase furunculóide é a remoção física da larva, algo que pode ser auxiliado pela obstrução da lesão (bloqueio respiratório) com parafina líquida visando induzir a larva a emergir. No caso do paciente em questão, um curso completo com o antibiótico cefalexina foi feito para tratar infecções bacterianas secundárias, e recuperação completa foi alcançada.


(!) MIÍASE: É uma infecção com o estágio larval de moscas em geral. Várias espécies de moscas em vários gêneros podem causar miíase em humanos. O agente primário de miíase em humanos é a mosca da espécie D. hominis, (!) esta a qual primeiro deposita seus ovos em um mosquito que se alimenta de sangue de mamíferos. Os ovos depositados são fixados com uma substância similar a uma cola. As larvas eclodem quando o mosquito vetor está se alimentando em um mamífero, e penetram ativamente na cavidade subdérmica por 5-10 semanas, respirando através de um buraco na pele do hospedeiro. As larvas maduras emergem da lesão e caem no chão, formando uma pupa e dando origem a uma nova mosca adulta cerca de 1 mês depois. A infecção com a larva da D. hominis é popularmente conhecida como berne. Em infestações com larvas dos gêneros  Cochliomyia e Wohlfahrtia, a larva se alimenta do hospedeiro durante uma semana, e podem migrar da camada subdérmica para outros tecidos do corpo, frequentemente causando extremos danos no processo. 

> Vídeo mostrando a remoção de larvas da espécie D. hominis na pele humana (4): https://youtu.be/MQ0KTg1ZOa0


   MIÍASE E QUEIJO CASU MARZU

          O queijo Casu Marzu (literalmente 'Queijo Podre'), encontrado quase que exclusivamente na ilha da Sardenha, Itália, é, sem sombra de dúvidas, um prato peculiar.

           Como ele é feito? O queijo, depois de manufaturado do leite da ovelha (pasteurizado ou cru), é colocado em um ambiente escuro e aberto para... atrair moscas! Sim, então esses insetos (no caso, a espécie Piophila casei) botam ovos no queijo, nascem as larvas, e estas larvas começam a comê-lo, principalmente a gordura, por cerca de 2 semanas, aumentando a fermentação do alimento e o deixando bem macio e com um sabor único. E quando as larvas estão bem crescidinhas, é hora de saborear a delícia: um queijo vivo, lotado de larvas! 



          E outra curiosidade, se já não bastasse a história toda: as larvas, quando incomodadas, pulam feito loucas, alcançando distâncias de até mesmo 15 cm! Por isso, é recomendado comer esse queijo com a proteção de óculos, para elas não colidirem com os seus olhos! Alguns retiram as larvas para comer, e muitos outros comem elas mortas, usando o seguinte método: pegam pedaços do queijo e o amarram em um saco plástico; com a falta de oxigênio, as larvas começam a pular para fora do queijo, emitindo barulhos característicos; quando os sons cessam, o lanche está pronto!

          O queijo ficou por décadas ilegal para venda na União Europeia, por ordens sanitárias (Lei N°. 238/1962). Nesse período era encontrado com altos preços no mercado negro. Mas depois acabou sendo meio que liberado, por alegações de ser um alimento 'tradicional' da ilha de Sardenha e que existiam métodos higiênicos de o produzirem. Isso se somou ao fato de vários outros alimentos serem produzidos direta ou indiretamente por insetos, como o mel. De qualquer forma, mesmo com métodos alegadamente higiênicos para a produção do queijo, ainda sua legalidade é ainda bastante questionada.

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         Nesse último ponto, temos um notável caso de miíase acidental alertando para o perigo de ingerir as larvas vivas com o queijo. Em 2009, no periódico Microbiologia Medica (2), uma mulher de 48 anos apresentou-se ao hospital com uma dor no estômago muito forte que durava horas e até mesmo prejudicava seu sono. Seu marido, um médico, chegou a administrar o medicamento Ranitidina (usado no tratamento de úlceras e esofagite), mas sem qualquer efeito. A paciente reportou que chegou a encontrar na sua saliva três larvas com comprimento de 3 a 4 milímetros, as quais foram identificadas em laboratório como larvas da mosca P. casei. Tratamento com Albendazol (um vermífugo e anti-parasitário) resolveu o problema.


          A paciente tinha um histórico de ingestão de queijo Casu Marzu, provavelmente a origem das larvas que a infectaram.

          As larvas dessas moscas resistem à ação de sucos gástricos e às enzimas digestivas do estômago, passando para o intestino e podendo causar irritação nas paredes intestinais. Essas larvas também podem penetrar na parede estomacal ou intestinal, causando náusea, vômitos, dor epigástrica e/ou abdominal, às vezes diarreia (com ou sem sangue).


   MOSCAS-DAS-FLORES

          Quatro famílias de moscas são responsáveis pela maioria dos casos de miíase: Muscidae, Oestridae, Sarcophagidae e Calliphoridae. Dependendo do clado de mosca analisada, a miíase pode ser obrigatória ou facultativa. Se a larva de mosca completa se desenvolvimento obrigatoriamente em um hospedeiro vivo, a miíase é obrigatória. Se a larva pode se desenvolver em matéria orgânica tanto morta quanto viva, a miíase é facultativa. Existe, porém, um terceiro tipo de miíase chamada de miíase acidental ou pseudo-miíase. A miíase acidental ocorre quando a larva ou ovos de uma espécie normalmente de vida livre são engolidos com alimento contaminado, passando através do trato digestivo e onde pode causar reações patológicas. 

              Em especial, miíase acidental pode ser causada por larvas de moscas da família Syrphidae, conhecidas como moscas-das-flores. Os insetos adultos dessa espécie se alimentam de néctar e de pólen das flores e atuam como importantes polinizadores, enquanto as larvas exibem uma dieta diversificada, incluindo vários hábitos alimentares como fitofagia, saprofagia, micofagia e predação. A espécie de mosca-das-flores mais comumente associada com miíase é a Eristalis tenax, cujas larvas são do tipo "rabo-de-rato" (tribo Eristalini). A maioria dos casos reportados de miíase por moscas-das-flores são gastrointestinais ou entéricas, e animais infestados tipicamente descritos na literatura médica incluem humanos, vacas, porcos, cães e cavalos. 

Visão dorsal de um macho de Eristalis tenax. Moscas da espécie E. tenax são altamente antropofílicas e possuem uma ampla distribuição global. Essa espécie é notável pelo mimetismo, exibindo uma aparência muito similar a abelhas-de-mel da espécie Apis mellifera. São importantes polinizadores. Barra de escala: 1 mm. Ref.5

Larvas rabo-de-rato (terceiro estágio larval e pupa) da espécie Eristalis tenax expelidas nas fezes de um paciente de 43 anos, no Egito. Essas larvas possuem um característico segmento anal alongado com o processo respiratório posterior na ponta, permitindo a respiração de ar enquanto estão submersas em poças, lama e outras misturas líquidas ou semi-sólidas com acúmulo de matéria orgânica e/ou corpos animais e vegetais em decomposição. Larvas rabo-de-rato de algumas espécies são tolerantes a poluição e corpos de água com baixa concentração de oxigênio. Possuem importante função de biodegradação e também são relevantes nas áreas médica, veterinária e forense. Alguns estudos consideram a E. tenax como agentes de miíase facultativa. Ref.5-6

          Miíase por moscas-das-flores pode ser sintomática ou assintomática. Sintomas dependerão da região corporal afetada, mas podem incluir desconforto abdominal, dor abdominal e diarreia (Ref.5-7). A maioria das larvas ingeridas não conseguem sobreviver ao trato digestivo, mas acabam sendo expelidas vivas em episódios de diarreia. Algumas larvas, por outro lado, parecem especialmente capazes de sobreviver nessas condições (Ref.6). É sugerido que em casos de miíase retal, algumas larvas conseguem sobreviver bem ao colocar suas "caudas" para fora do ânus visando obtenção de oxigênio do ar externo (Ref.6).

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> É importante reforçar aqui que miíase pode ser causada pela infestação de larvas de quaisquer espécies de moscas, como exemplificado pelos casos envolvendo o queijo Casu Marzu e moscas-das-flores. Nesse sentido, é interessante mencionar um relato de caso publicado em 2016 no periódico Iranian Journal of Parasitology (5). No caso, uma paciente de 26 anos de idade teve o trato urinário infectado por larvas de mosca do gênero Psychoda, as quais não são carnívoras e nem se alimentam de sangue, mas, sim, de bactérias. De fato, a paciente estava também com uma infecção urogenital, incluindo sintomas de secreção vaginal mal-cheirosa e frequente necessidade de urina. Ou seja, as larvas estavam se alimentando da grande quantidade de bactérias no trato urinário da paciente.




REFERÊNCIAS