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Cientistas confirmam que vírus letal na Bolívia é também transmitido entre humanos

 

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          Esta semana, no encontro anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene (Ref.1), pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) reportaram que um vírus letal encontrado na Bolívia pode ser, de fato, transmitido entre humanos. O vírus - chamado de Vírus Chapare e pertencente à família Arenaviridae -, até o momento era confirmado de ser transmitido apenas de forma zoonótica, provavelmente a partir de roedores, sendo responsável por dois pequenos surtos conhecidos, um em 2003-2004 e outro em 2019. O último surto, próximo da capital Boliviana La Paz, marcou o evento de transmissão de pessoa para pessoa, dentro de instalações hospitalares.


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   VÍRUS CHAPARE

           A família Arenaviridae é composta em grande parte por vírus cujos hospedeiros naturais são roedores, esses os quais são divididos em dois complexos: Mundo Antigo e Mundo Novo. Os vírus da Febre de Lassa e da coriomeningite linfocítica  (LCM) são considerados os mais importantes vírus do Mundo Antigo devido à associação com doenças severas. O complexo do Mundo Novo são divididos em 3 principais clados (A, B e C), com o clado B contendo todos os vírus associados à febre hemorrágica: Junín, Machupo, Guanarito e Sabiá, os quais causam, respectivamente, as febres Argentina, Boliviana, Venezuelana e Brasileira.

          Três desses vírus - Junín, Machupo e Guanarito - podem ser associados com grandes surtos de febre hemorrágica e casos de fatalidades intratáveis podem somar um excesso de 30%. O quadro clínico é similar para cada uma dessas doenças. A emergência dos sintomas segue um período de incubação de 1-2 semanas. Sintomas iniciais frequentemente incluem febre, indisposição e anorexia, seguido 3-4 dias depois por dor de cabeça, dor nas costas, tontura, náusea, vômito e prostração severa. Sintomas hemorrágicos e neurológicos, incluindo petéquia (pequenos sangramentos locais) e sangramento da gengiva, tremores e letargia, são comuns. Cerca de um terço dos casos não-tratados acabam evoluindo para sintomas neurológicos e/ou hemorrágicos mais severos, com equimoses (hematomas) difusas, sangramento de membranas mucosas ou locais de punctura, e/ou delírio, coma e convulsões. 

          Até 2008, só era eram conhecidos dois vírus patogênicos dessa família na Bolívia, os vírus Machupo e Latino, cujos vetores são roedores da espécie Calomys callosus. Porém, um estudo publicado no periódico PLOS Pathogens em abril de 2008 (Ref.3), identificou um terceiro vírus patogênico desse mesmo grupo no território Boliviano, em específico na região do Rio Chapare. O vírus estava associado a um pequeno surto iniciado em dezembro de 2003 e janeiro de 2004, em uma comunidade rural próxima de Cochabamba, ao leste de colinas na base do Andes. Foram 3 casos confirmados, e os pacientes apresentaram sintomas de febre hemorrágica e de comprometimento cardiopulmonar. Um dos infectados (22 anos, sexo masculino), após 14 dias de subsequente e abrupta deterioração e múltiplos sinais hemorrágicos, morreu no dia 17 de janeiro de 2004. Amostras de sangue e descrição clínica permitiram que, anos depois, os pesquisadores identificassem o novo vírus, chamado de vírus Chapare.



          Via sequenciamento do RNA viral, o vírus Chapare foi classificado como um membro do clado B do gênero Mammarenavirus (até 2012 chamados de arenavírus) do Novo Mundo, e próximo-relacionado ao vírus Sabiá, mas expressando substanciais níveis de divergência genética (15-40% de diferença nucleotídica) em um número de proteínas codificadas, especialmente nas proteínas S e L. Suspeita-se que o principal reservatório natural desse vírus seja representado por roedores do gênero Oligoryzomys.

          Os vírus do gênero Mammarenavirus são esféricos, com diâmetros variando de 50 a 200 nanômetros, e possuindo densos envelopes lipídicos. Na superfície, apresentam projeções glicoproteicas triméricas - necessárias para a penetração na célula hospedeira e uma das quatro proteínas estruturais expressas por esses vírus - e possuem como material genético uma fita única de RNA.


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   SURTO DE 2019

          Após o surto de 2003-2004, outro pequeno surto foi registrado em maio-junho de 2019, em áreas rurais e urbanas na capital Boliviana de La Paz, e envolvendo 5 casos, dois deles confirmados em laboratório (RT-PCR) e três mortes resultantes (taxa de mortalidade de 60%). A idade média dos paciente era de 42 anos e quatro deles eram homens. Todos os pacientes foram hospitalizados e admitidos em unidade de terapia intensiva (UTI). Os pacientes apresentaram febre e hemorragia no sistema digestivo superior, com dois deles desenvolvendo síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) e requerendo ventilação mecânica.

          O primeiro caso registrado nesse novo surto foi de um homem de 64 anos, no município Caranavi, e o qual foi atendido no Hospital Municipal de Caranavi. Esse paciente morreu um mês depois de hospitalizado e em sua casa (na região rural de Guanay) foram encontradas fezes de roedores, em uma área conhecida de ser habitada pelas espécies Calomys callosus e Oligoryzomys microtis. Por causa da falta de apropriados recursos de proteção biológica, uma estudante de medicina de 25 anos em seu último ano de curso, e que atendeu ao caso, acabou também desenvolvendo sintomas similares ao paciente em questão - febre, tremores, dor abdominal, náusea, vômito, diarreia, trombocitopenia e hemorragia severa do trato digestivo superior. Inicialmente a suspeita era de dengue hemorrágica. Uma semana depois, ela foi hospitalizada no mesmo hospital rural, até 5 dias depois ser transferida para um hospital privado em La Paz, onde a paciente morreu três dias depois.



          Durante o transporte para La Paz, a paciente foi acompanhada na ambulância por um médico de 45 anos de idade, o qual entubou a paciente para melhorar a ventilação. Quatorze dias depois do contato, ele também desenvolveu sintomas similares ao descrito, incluindo também falha hepática e renal, ataxia, encefalite e punctura lombar. O médico foi hospitalizado no mesmo hospital particular em La Paz e dias depois admitido na UTI de outro hospital privado da área metropolitana da capital. Melhorou eventualmente o quadro, após meses de hospitalização.

          Voltando ao caso da paciente de 25 anos, um gastroenterologista de 42 anos de idade também atendeu a paciente, realizando uma endoscopia digestiva superior dois dias após sua admissão (um dia antes da paciente falecer). Doze dias após esse contato, o médico também desenvolveu sintomas similares ao paciente de 45 anos. Foi hospitalizado na mesma instituição onde trabalhava, e 25 dias depois acabou morrendo.

          O último caso registrado foi do genro do primeiro caso, o qual desenvolveu sintomas 10 dias após a morte do sogro, incluindo febre, mialgia, artralgia e hemorragia do trato digestivo superior. Ficou hospitalizado por 23 dias, mas acabou se recuperando.

           A confirmação do vírus Chapere via RT-PCR ocorreu no terceiro e quarto casos (os dois pacientes médicos de 42 e 45 anos) (Ref.4). Nenhum dos infectados tinham significativas comorbidades prévias.

          Ainda não existem vacinas ou tratamentos específicos visando infecções com os vírus do gênero Mammarenavirus. Prevenção inclui evitar contato com roedores e seus dejetos (urina e fezes), e, no tratamento de pacientes, isolar os infectados e usar equipamentos de proteção biológica para reduzir o risco de exposição a fluídos (sangue, suor, saliva, etc.) potencialmente contaminados. 


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   CONFIRMAÇÃO DE TRANSMISSÃO ENTRE HUMANOS

           No novo estudo apresentado no 68° Encontro Anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene, os pesquisadores do CDC Norte-Americano analisaram retrospectivamente os casos de infecção do surto de 2019, e, como todas as evidências indicavam, foi confirmado que a transmissão do vírus Chapare não é apenas zoonótica, ocorrendo também entre pessoas. O estudo confirmou que a médica residente de 25 anos contraiu o vírus do primeiro paciente infectado, transmitindo depois o vírus para os outros dois médicos infectados. 

          Somando-se a isso, no sêmen de um dos sobreviventes, os pesquisadores conseguiram isolar RNA viral 168 dias após a infecção, levantando a possibilidade de transmissão sexual mesmo após longos períodos de pós-recuperação do paciente.

          Enquanto mais trabalhos investigativos e mais casos confirmados são necessários para identificar todas as possíveis rotas de transmissão, os pesquisadores recomendaram que extremo cuidado deve ser aplicado ao se lidar com pacientes infectados com o vírus Chapare, especialmente evitando contato com sangue, urina, saliva ou sêmen.

            Os pesquisadores também confirmaram o RNA viral do vírus Chapare na região rural associada ao surto de 2019, em roedores do gênero Oligoryzomys - especificamente a espécie Oligoryzomys nigripes, o qual também é comumente encontrado no Brasil e popularmente conhecido como rato-do-arroz. Ainda segundo os pesquisadores, o vírus Chapare pode estar circulando na Bolívia entre humanos há vários anos, mas pacientes infectados podem estar sendo erroneamente diagnosticados com dengue hemorrágica, doença também comum na Bolívia.


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   MUDANÇAS CLIMÁTICAS E DESMATAMENTO

            Tem sido sugerido que as mudanças climáticas e alagamentos estão associados com um aumento na exposição de roedores infectados a humanos em regiões endêmicas. Altas temperaturas e conversão de vegetação nativa para a agricultura, particularmente cultivo de cana de açúcar, mas talvez outros cultivares, como arroz, milho e mandioca, podem alterar a abundância de roedores que servem como principais reservatórios naturais de vírus do clado Arenaviridae. Mudanças antropogênicas da paisagem, como perda florestal ou desmatamento, queimadas, fragmentação, e uso de terra para a agricultura, estão relacionados com o fomento da abundância de espécies hospedeiras do gênero Mammarenavirus e prevalência em áreas tropicais, aumentando o risco de transmissão. Ao mesmo tempo, maiores níveis de precipitação - especialmente em regiões áridas - favorece um aumento na biomassa vegetal, o que aumenta os recursos ecológicos para roedores diversos, também aumentando o risco de infecção.

           Aqui no Brasil, existem roedores dos gêneros CalomysOligoryzomys, além da circulação de vírus da família Arenaviridae e o fato de sermos vizinhos da Bolívia. A crescente devastação ambiental que estamos testemunhando acompanhada das mudanças climáticas pode também representar um grande risco para a disseminação de letais vírus de roedores e de outros animais, incluindo potencialmente o vírus Chapere. Considerando a comprovação de transmissão entre pessoas, pequenos surtos em áreas rurais podem gerar graves epidemias, e os profissionais de saúde e a população em geral precisam ficar em alerta.


> Leitura recomendada: Ameba comedora de cérebros e o aquecimento global antropogênico


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. https://www.eurekalert.org/pub_releases/2020-11/b-esh110820.php
  2. https://www.cdc.gov/vhf/chapare/index.html
  3. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2277458/ 
  4. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7258484/
  5. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1477893920300508
  6. https://mames.ufes.br/lista/rodentia/rato-do-mato-7/
  7. https://talk.ictvonline.org/ictv-reports/ictv_online_report/negative-sense-rna-viruses/w/arenaviridae/1117/genus-mammarenavirus