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Ivermectina é eficaz para o tratamento da COVID-19?


- Atualizado no dia 22 de outubro de 2022 -

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          No momento, são quase 600 milhões de casos oficialmente confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) ao redor do mundo e ~6,5 milhões de mortes oficialmente reportadas decorrentes da doença associada (COVID-19) - ambos os números provavelmente muito subestimados (I). Segundo sugere a Organização Mundial de Saúde (OMS), 81% dos casos de COVID-19 são leves ou moderados, 14% progridem para uma forma severa e 5% são críticos (II). Como resposta ao avanço da pandemia, vacinas foram desenvolvidas e estão sendo aplicadas em massa ao redor do mundo, e vias terapêuticas que possam prevenir ou tratar o COVID-19 continuam sendo investigadas (III). Nesse último ponto, um número de estudos vêm sendo publicados desde o início do surto pandêmico avaliando antivirais e outros fármacos já existentes no mercado e que podem ser efetivos contra o SARS-CoV-2. 

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Para mais informações: 

          Uma desses fármacos "reposicionados" - mas com limitada evidência de suporte contra a COVID-19 - foi o vermífugo Ivermectina, amplamente usado para certas doenças parasíticas em humanos e em animais de criação. Após ganhar grande destaque em abril de 2020, em pouco tempo o medicamento se transformou em uma nova "febre" aqui no Brasil, especialmente após ser promovido como a "cura do novo coronavírus" inclusive por alguns médicos. Porém, relatos anedóticos, mesmo vindos de profissionais de saúde, NÃO são prova científica de eficácia, principalmente porque a maioria dos pacientes hospitalizados se recuperam apenas com suporte hospitalar básico. O mesmo ocorreu com a hidroxicloroquina, hoje comprovada ineficaz contra a COVID-19. 


   IVERMECTINA

          A ivermectina é um fármaco membro da família avermectina, a qual engloba compostos produzidos via fermentação por bactérias no solo da espécie Streptomyces avermitilis. Descoberta em 1975 e comercializada desde 1981, a ivermectina é o mais seguro e mais efetivo semi-sintético derivado de avermectinas, e possui um amplo espectro de atividade farmacológica anti-parasítica. Sua principal ação farmacodinâmica é se ligar a alguns canais de proteínas para íons cloro controlados por glutamato - típicos de classes específicas de invertebrados (vermes inclusos, especialmente helmintos) - causando uma maior permeabilidade a esse eletrólito, uma subsequente hiperpolarização da membrana celular, bloqueio de neurotransmissão inibitória em neurônios e miócitos, e, finalmente, paralisia e morte.


           Devido ao seu baixo custo, segurança e alta eficácia, a ivermectina está inclusa na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nos últimos 30 anos, cerca de 3,7 bilhões de deses do medicamento foram distribuídas ao redor do mundo.

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        Comprimidos de ivermectina são aprovados para o uso em pessoas para o tratamento de alguns vermes parasitas (estrongiloidiase e oncocercose) e formulações tópicas de ivermectina são aprovadas para uso em humanos apenas via prescrição para o tratamento de parasitas externos, como piolho e condições de pele como rosácea. Para animais diversos, o fármaco é aprovado para o tratamento de certos parasitas externos e internos. Formulações veterinárias NÃO devem ser usadas em humanos.

           Além da sua eficaz ação contra vermes em geral e outros parasitas invertebrados, estudos in vitro conduzidos nos últimos anos têm mostrado que esse fármaco possui potencial atividade antiviral contra vírus humanos e em outros animais (Ref.3). Em experimentos in vitro a lista inclui um amplo espectro de vírus de RNA, como o Zika vírus, Dengue, vírus do Nilo, vírus HIV-1, vírus chikungunya e, mais recentemente, o SARS-CoV-2.

          Ainda não é bem estabelecido o mecanismo de ação antiviral da ivermectina, mas recentemente foi proposto que os dois componentes moleculares do medicamento (22,23-diidroavermectina B1a e 22,23-diidroavermectina B1b) podem interagir entre si para formar uma "armadilha" de íons capaz de causar danos diversos à estrutura viral ou mesmo às proteínas de replicação viral (Ref.4).


   IVERMECTINA E O NOVO CORONAVÍRUS

          A especulação em relação à Ivermectina como um potencial tratamento para a COVID-19 teve início com um estudo publicado em abril de 2020 no periódico Antiviral Research (Ref.5), onde pesquisadores mostraram que esse fármaco podia inibir o SARS-CoV-2 dentro de 48 horas em culturas (redução na carga viral de 5000x) com apenas uma "dose", efetivamente erradicando o material genético do vírus in vitro (99,8% de redução do RNA viral). Como o medicamento é amplamente usado e aprovado pelo Agência de Drogas e Alimentos dos EUA (FDA), e associado a poucos e leves efeitos colaterais, os resultados do estudo logo ganharam a atenção do público e da comunidade médica. 

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          Porém, uma eficácia in vitro não garante qualquer eficácia in vivo, apenas sugere potencial terapêutico que precisa ser investigado em estudos clínicos randomizados. Além disso, a concentração de Ivermectina usada no teste in vitro para a completa inibição viral foi de 5 μM. Em um estudo publicado em maio de 2020 no periódico Clinical Pharmacology & Therapeutics (Ref.6), os pesquisadores mostraram que a concentração de Ivermectina resultando em 50% de inibição (2 μM) in vitro é mais de 35 vezes maior a concentração máxima no plasma de um humano após administração oral da dose aprovada pelo FDA quando dada em jejum.

            Usando modelos farmacocinéticos, os autores encontraram que mesmo a administração de uma dose 10 vezes maior de Ivermectina (120 mg) do que a aprovada pelas agências de saúde resultaria em uma concentração no tecido pulmonar do fármaco de 0,82 μM, ou seja, menos da metade da concentração necessária para a inibição de 50% do SARS-CoV-2. Eles concluíram que as chances de benefícios terapêuticos usando doses recomendadas do medicamento seriam muito baixas.

          Apesar de pequenos estudos clínicos sugerirem que esse fármaco parece relativamente seguro mesmo em doses de 120 mg dadas três vezes por semana (a cada 72 horas), é desconhecida a possibilidade de raros eventos adversos acima da dose recomendada, muito menos se doses ainda maiores do que 10x o recomendado forem aplicadas. 

          Outro estudo publicado em junho de 2020 no periódico Journal Biotechnology & Biotechnological Equipment (Ref.7) chegou às mesmas conclusões, e encontrou que para alcançar a concentração 100% inibitória de 5 μM seria necessário a administração de 50 vezes a dose recomendada, algo impraticável. Os autores do estudo concluíram que o uso clínico efetivo desse medicamento contra o SARS-CoV-2 seria improvável. Mesmo buscando uma ação anti-viral bem mais modesta, o paciente ainda seria exposto a doses muito altas. Segundo os autores do estudo, overdoses de Ivermectina em humanos têm sido associadas com vômito, taquicardia e ECG anormal, significativas flutuações na pressão sanguínea, efeitos no sistema nervoso central (tontura, ataxia) e distúrbios visuais (midríase).  

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           De fato, até hoje, nenhum estudo demonstrou boa eficácia antiviral in vivo da ivermectina em mamíferos. Por exemplo, mesmo sendo muito potente contra o Zika vírus in vitro, esse fármaco falhou em proteger ratos contra a infecção com esse vírus (Ref.3). O único reporte de eficácia antiviral in vivo veio de um estudo com peixes contra os vírus da raiva e da pseudo-raiva (Ref.3). Isso também reforçado por um estudo de revisão sistemática publicado no periódico The Journal of Antibiotics (Ref.15), onde os autores reforçaram que apesar do efeito antiviral da ivermectina ser bem estabelecido in vitro, testes in vivo têm falhado em mostrar eficácia terapêutica contra um amplo espectro de vírus. Os autores do estudo sugeriram que formulações seguras ou análogas sejam derivadas do medicamento para que concentrações terapêuticas mínimas sejam alcançadas na corrente sanguínea ou nos tecidos de interesse, permitindo que significativos efeitos antivirais possam ser observados.

          Aqui é válido lembrar que a hidroxicloroquina também se mostrou altamente eficaz in vitro mas falhou in vivo para o tratamento da COVID-19. Aliás, um estudo recente publicado no periódico Antimicrobial Agents and Chemotherapy (Ref.13) sugeriu que a ineficácia clínica da hidroxicloroquina para o tratamento ou para a profilaxia pós-exposição da COVID-19 - entre outros fatores - compartilha a mesma causa sugerida para a ivermectina: concentrações muito baixas no plasma sanguíneo para efeitos antivirais significativos no tecido pulmonar.


   ESTUDOS CLÍNICOS

           Até o momento, entre os trabalhos relevantes publicados e revisados por pares, existem seis estudos clínicos randomizados de médio-grande porte e de alta qualidade investigando a eficácia da ivermectina no tratamento de pacientes com COVID-19. Os mais recentes deles, publicados no The New England Journal of Medicine (NEJM) e no The Journal of the American Medical Association (JAMA) - hoje o periódico de maior impacto na área médica -, têm sido considerados definitivos no sentido de provar total ineficácia desse fármaco no tratamento da COVID-19.

          O primeiro estudo - randomizado duplo-cego e placebo controlado (alta qualidade) - incluiu 476 pacientes (média de idade de 37 anos), investigando o uso terapêutico da ivermectina para o tratamento de COVID-19 leve (a alegada e suposta janela de oportunidade para o uso desse fármaco no tratamento dessa doença), e não encontrou significativa diferença de progressão clínica entre o grupo de controle (placebo) e os pacientes que receberam um curso de 5 dias de ivermectina a uma dose de 300 μg/kg de massa corporal (tempo médio de resolução de sintomas: 12 vs 10 dias, respectivamente). O estudo foi conduzido em Cali, na Colômbia, e foi publicado março de 2021 no periódico JAMA (Ref.37). Segundo os autores do estudo, os resultados não suportam o uso de ivermectina para o tratamento de COVID-19 leve, apesar de estudos clínicos de maior porte serem necessários para mais firmes conclusões.

            O segundo estudo, duplo-cego, randomizado, placebo-controlado, e publicado em julho de 2021 no periódico BMC Infectious Diseases (Ref.42), analisou 501 pacientes ambulatoriais na Argentina, recrutados dentro de 48 horas por telefone após confirmação laboratorial para infecção com o SARS-CoV-2. Os pacientes foram aleatoriamente colocados em dois grupos: 250 recebendo ivermectina e 251 recebendo placebo. A análise final dos resultados primários revelou que não houve diferença estatisticamente significativa nas taxas de hospitalização entre os dois grupos. Porém, aqueles recebendo ivermectina necessitaram de suporte ventilatório mecânico bem mais cedo, na média, do que aqueles no grupo de placebo (5,25 dias vs 10 dias, p = 0,019). Os pesquisadores concluíram que o tratamento precoce com ivermectina não possui eficácia para a prevenir hospitalização por COVID-19 e pode inclusive deteriorar mais rapidamente o paciente.

          O terceiro estudo, randomizado, controlado e publicado no periódico JAMA (Ref.43), analisou 490 pacientes com 50 anos ou mais de idade na Malásia com COVID-19 confirmada por teste laboratorial. Os pacientes foram aleatoriamente colocados em dois grupos: 241 recebendo diariamente uma dose de ivermectina (0,4 mg/kg) por 5 dias + tratamento hospitalar básico, e 249 recebendo apenas tratamento hospitalar básico. O tratamento básico consistiu em terapia sintomática e monitoramento por sinais de deterioração baseado em achados clínicos, resultados de testes laboratoriais e imagem do pulmão. Tratamento foi iniciado dentro da primeira semana de manifestação dos sintomas ("tratamento precoce"). A análise final do desfecho primário mostrou que 52 dos pacientes do grupo de ivermectina (21,6%) e 43 dos pacientes no grupo de tratamento básico (21,6%) progrediram para uma COVID-19 severa (requerendo suporte de oxigênio). Entre os resultados do desfecho secundário, incluindo necessidade de ventilação mecânica, taxa de mortalidade ao longo de 28 dias de hospitalização e tempo de hospitalização, não foram observadas diferenças estatisticamente significativas. Os pesquisadores concluíram que o uso de ivermectina não é eficaz para prevenir progressão severa da COVID-19.

           O quarto e maior estudo clínico até o momento publicado, no NEJM (Ref.22)  foi conduzido aqui no Brasil, em Minas Gerais, sob o nome de TOGETHER, entre março e agosto de 2021. O estudo clínico - duplo-cego, randomizado, placebo-controlado - recrutou 3515 adultos testados positivamente para infecção com o SARS-CoV-2 em 12 hospitais públicos Brasileiros, e foram aleatoriamente divididos em três grupos: 679 no placebo, 679 recebendo ivermectina (400 microgramas por kg de massa corporal uma vez ao dia por três dias), e 2157 recebendo outro tipo de intervenção (sem interesse aqui). Para participar do estudo, quadro sintomático da infecção podia ter no máximo 7 dias (tratamento precoce) e o indivíduo (paciente ambulatorial) tinha que ter pelo menos um fator de risco para progressão severa da doença (ex.: obesidade, hipertensão, diabetes). Desfecho primário avaliado incluiu necessidade de hospitalização ou visita ao departamento de emergência por causa de COVID-19 dentro de 28 dias após o início do tratamento. No geral, 100 pacientes (14,7%) no grupo de ivermectina e 111 pacientes no grupo de placebo (16,3%) foram hospitalizados ou visitaram o departamento de emergência, uma diferença sem significância estatística após análise final levando em conta co-variáveis de risco. Tratamento com ivermectina também não afetou desfechos secundários. Em outras palavras, o tão alegado "tratamento precoce com ivermectina" novamente mostrou não ter valor terapêutico contra a COVID-19.

          O quinto estudo clínico, randomizado, duplo-cego e placebo-controlado, chamado COVID-OUT e publicado mais recentemente no The New England Journal of Medicine (Ref.45), não encontrou significativa eficácia de três medicamentos (ivermectina, metformina e fluvoxamina) para o tratamento inicial de pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 e sintomáticos há menos de 7 dias. O estudo englobou 1431 pacientes (1323 incluídos nas análises de resultados primários, os quais possuíam maior risco de uma progressão mais severa da doença; média de idade de 46 anos, 56% do sexo feminino e 52% vacinados contra a COVID-19). A ivermectina e a fluvoxamina (resultados primários e secundários) não foram mais eficazes do que um placebo para prevenir hospitalização, visita ao departamento de emergência, hipoxemia ou morte associados à COVID-19. Em termos de resultados secundários, a metformina mostrou possíveis benefícios que precisam ser investigados em futuros estudos clínicos (!).


          Por fim, resultados de um estudo duplo-cego, randomizado e placebo-controlado conduzido nos EUA - durante predominância das variantes Ômicron e Delta - e publicado no periódico JAMA (Ref.46) não encontrou benefício no uso de ivermectina no tratamento da COVID-19. O estudo englobou 1591 pacientes ambulatoriais adultos (≥30 anos de idade) com COVID-19 leve a moderada, os quais aleatoriamente receberam placebo ou ivermectina (400 μg/kg diariamente por 3 dias). Comparado com o grupo de placebo, pacientes recebendo ivermectina não diferiram de forma significativa quanto ao tempo de recuperação da doença. Aliás, no grupo da ivermectina houve 10 hospitalizações ou mortes, comparado com 9 no grupo de placebo - mas sem diferença significativa em termos estatísticos.

          Alguns estudos observacionais prévios (Ref.8, 12, 16) tinham sugerido diferentes graus de eficácia da ivermectina como profilaxia ou mesmo tratamento contra a COVID-19, porém eram de pequeno-moderado porte, geograficamente limitados, nem todos revisados por pares, trazendo diferentes doses do medicamento e protocolos de administração, entre outras importantes limitações.          
          Existe também um número de estudos clínicos randomizados de pequeno-médio porte conduzidos em alguns países, principalmente em Bangladesh (Índia) e Egito, que avaliaram o uso de ivermectina para o tratamento de pacientes em ambulatório com COVID-19 leve e pacientes hospitalizados com COVID-19 (Ref.16, 32). Apesar desses estudos trazerem diferentes graus positivos ou inconclusivos de eficácia, os protocolos de uso e doses variam substancialmente entre eles, muitas vezes placebo não foi usado, outros medicamentos frequentemente acompanharam a ivermectina (ex.: doxiciclina), muitos não foram submetidos a revisão  por pares e muito menos publicados em um periódico de alto impacto.

          Na verdade, temos apenas um estudo clínico de alta qualidade (randomizado, duplo-cego, placebo-controlado) com resultados positivos favorecendo a ivermectina (Ref.18). Porém, o estudo é de 2020, incluiu apenas 24 pacientes (porte muito pequeno), foi publicado em um periódico médico não muito relevante, e trouxe resultados clínicos inconsistentes e inexplicáveis (ex.: redução de certos sintomas de COVID-19 mas não de outros). 

          Portanto, até o momento, a evidência acumulada NÃO suporta o uso da ivermectina contra a COVID-19, e estudos clínicos com resultados preliminares favoráveis são muito limitados, de baixa qualidade ou de porte muito pequeno. E é importante notar que os testes clínicos estão visando pacientes hospitalizados e usando altas doses. Não existe nenhuma boa evidência de que tomar ivermectina como profilaxia (pós- ou pré-exposição) ou terapia precoce - como muitos estão fazendo de forma irresponsável em casa - nas doses normais e sem suporte hospitalar irá prevenir ou atenuar o desenvolvimento da COVID-19.
          
           Em 2021, a própria farmacêutica Merck, responsável pela fabricação da ivermectina, alertou que não existia suficiente evidência científica dando suporte para o uso desse fármaco no tratamento ou prevenção da COVID-19, e reforçou a existência de potenciais sérios efeitos adversos (Ref.38). Após analisar os dados disponíveis de estudos clínicos publicados até fevereiro de 2021, os pesquisadores da empresa concluíram que, até aquele momento:

- Não há base científica para um potencial efeito terapêutico contra COVID-19 em estudos pré-clínicos;
- Não há evidência significativa para atividade clínica em pacientes com a doença;
- Existe uma preocupante ausência de dados sobre segurança da substância na maioria dos estudos;
- Doses de ivermectina indicadas em bula são recomendadas apenas para os fins já aprovados por agências regulatórias (ex.: ação vermífuga).

           De fato, e como já mencionado, muitos estudos clínicos estão usando doses muito acimas das recomendadas,  e para as quais não existem adequados estudos de segurança em humanos

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   META-ANÁLISE POLÊMICA

          Um estudo de meta-análise conduzido por pesquisadores da Universidade de Liverpool, Reino Unido, e liderado pelo Dr. Andrew Hill, ganhou grande destaque em 2021 e fomentou muita desinformação (Ref.34). Analisando 18 estudos clínicos randomizados investigando a ivermectina no tratamento da COVID-19, a meta-análise encontrou uma redução de 75% na mortalidade com o uso do fármaco em comparação com os pacientes nos grupos de controle. Isso foi suficiente para vários defensores desse medicamento afirmarem pelas redes sociais que o estudo trazia 'prova' de que a ivermectina era efetiva contra a COVID-19.

          Porém, como deixado claro e em destaque pelos pesquisadores responsáveis pela meta-análise: "Muitos estudos incluídos não foram revisados por pares e meta-análises tendem a ter problemas de contradição. Ivermectina precisa ser validada em estudos clínicos randomizados controlados e de grande porte apropriados antes que os resultados sejam suficientes para revisão por autoridades regulatórias". Aliás, nem mesmo a meta-análise foi ainda revisada por pares.

          De fato, um reporte atualizado publicado pela Autoridade Regulatória de Produtos de Saúde da África do Sul (SAHPRA) (Ref.35), analisando os estudos clínicos e observacionais publicados até o início de janeiro de 2021, incluindo a meta-análise do Dr. Andrew Hill, reforçou as sérias limitações desses estudos - adicionando potenciais análises tendenciosas, poder estatístico baixo e diferentes métodos de investigação clínica - e concluiu que a ivermectina não parece ser superior a um placebo em termos de redução da carga viral ou progressão clínica, além de não existir nenhuma evidência de estudos clínicos randomizados controlados para qualquer redução nas taxas de mortalidade.

             Essa conclusão da SAHPRA é corroborada por uma uma revisão sistemática e meta-análise mais recente publicada no periódico Clinical Infectious Diseases (Ref.39) - periódico relevante na área de imunologia e de doenças infecciosas, e pertencente ao grupo Oxford Academic da Universidade de Oxford, Reino Unido -, utilizando a ferramenta Cochrane RoB 2·0 para reduzir ao máximo o viés, encontrou que a ivermectina não mostrou reduzir mortalidade, estadia hospitalar ou carga viral em pacientes com COVID-19. 

          No estudo de revisão, os pesquisadores incluíram 10 estudos clínicos randomizados (1173 participantes no total) com mínima qualidade para tal, publicados ou em preprint, e cinco deles usando placebo como controle. Eles concluíram, com base nos estudos analisados, que a ivermectina não é uma opção viável para o tratamento de pacientes com COVID-19. 

          Os pesquisadores também apontaram falhas metodológicas e graves limitações em algumas meta-análises prévias que haviam sugerido substancial eficácia da ivermectina contra a COVID-19 e reforçaram a baixa ou muito baixa qualidade, em geral, das evidências até o momento disponíveis (!). Repreenderam também políticos e outras autoridades usando evidência inexistente ou de baixa qualidade para orientar políticas de saúde pública.

           Por fim, como modelos farmacinéticos não encontram plausibilidade no uso de doses normais da ivermectina contra a COVID-19, a revisão apontou que muitos dos estudos clínicos publicados ou sendo conduzidos estão usando doses altas desse fármaco, até 10 vezes maior do que o limite seguro estabelecido pela Agência de Drogas e Alimentos dos EUA (FDA). Nesse sentido, os pesquisadores alertaram que a segurança dessas altas doses não é estabelecida para pacientes com COVID-19, apenas em indivíduos saudáveis, e existe o risco de preocupantes interações medicamentosas com outros medicamentos sendo usados concomitantemente para o tratamento do paciente.

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> A Universidade de Oxford está investigando a ivermectina como parte do teste clínico PRINCIPLE, o qual já engloba outros seis fármacos, incluindo o antiviral favipiravir. Já são mais de 5 mil voluntários ao longo do Reino Unido, e o objetivo do estudo randomizado de grande porte é avaliar se o uso desses medicamentos em indivíduos com maior risco de agravamento da COVID-19 pode ou não reduzir a severidade de progressão da doença e ajudar a prevenir a necessidade de hospitalização. Para mais informações: https://www.principletrial.org/
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   (!) EXEMPLO NOTÁVEL

          Um dos maiores estudos randomizados sobre a ivermectina que estava publicado como preprint e cujos resultados apontavam uma redução de 90% na mortalidade quando o fármaco era usado em pacientes hospitalizados foi retirado recentemente da plataforma Research Square por causa de flagrantes fraudes no seu conteúdo acusadas por grupos independentes de investigação (Ref.40-41). O estudo é de péssima qualidade, com plágios e dados alegadamente falsos por todo o paper. Para piorar, estava sendo amplamente citado e usado por estudos de revisão com meta-análise muito limitados que sugeriam resultados positivos para a ivermectina. Esses estudos de revisão estavam sendo usados por grupos promovendo o fármaco como uma "cura" para a COVID-19.

          O estudo recheado de irregularidades - conduzido pelo Dr. Ahmed Elgazzar, da Universidade de Benha, Egito - ocultava que usou pacientes com menos de 18 anos, ocultou pacientes que morreram antes do período alegado para análise dos dados, trazia datas inexistentes, dados repetidos de pacientes, mortes forjadas no grupo controle, mortes removidas do grupo recebendo ivermectina e, de forma bizarra, trechos copiados e colados de fontes diversas da mídia na introdução, gerando inclusive erros de lógica na escrita. Aliás, como alertado por especialistas, a dramática redução do risco de morte sugerida pelo estudo já deveria ter levantado forte suspeita.

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   ÁFRICA E IVERMECTINA

          Alguns estudos e especialistas também têm apontando uma possível relação entre ivermectina e COVID-19 no continente Africano (Ref.17, 24-25). Em um desses estudos, publicado no periódico Colombia Médica (Ref.17), os pesquisadores sugeriram que países na África subsariana englobados em uma massiva campanha da OMS visando o tratamento de verminoses com ivermectina têm apresentado uma mortalidade 28% menor pela COVID-19 e uma taxa de infecção 8% menor pelo SARS-CoV-2 em comparação com outros países Africanos. No entanto, é preciso reforçar que essas observações não necessariamente implicam na associação específica entre COVID-19 e ivermectina, e existem sérias inconsistências apontadas inclusive pelos autores desses estudos. 

          Primeiro, o mecanismo por trás dessa ação profilática não parece estar associado com a ação antiviral da ivermectina, porque o uso desse medicamento nessas campanhas em massa não é contínuo, apenas pontual, e a pessoa exposta ao SARS-CoV-2 nos países Africanos de interesse provavelmente não terá o fármaco circulando no corpo, devido à sua curta meia vida. Qual seria esse mecanismo profilático? 

           Segundo, a porcentagem das populações entre esses países recebendo ivermectina variam desde 30% até 90%, e as doses variam entre 0,15 mg/kg e 0,20 mg/kg, mas a incidência de COVID-19 e letalidade associada não variam significativamente com esses fatores. Como fazer sentido do fato de que não importa o número de pessoas recebendo a ivermectina nesses países, ou da dose desse fármaco, para o efeito protetor ser o mesmo? 

          A resposta pode estar nos próprios vermes, não na ivermectina

          É estimado que um terço da população humana pode estar infectada com parasitas helmínticos, especialmente em regiões com baixa sanitização ou limitado acesso a água tratada (como nos países Africanos alvos das massivas campanhas de ivermectina). E é muito bem estabelecido na literatura acadêmica (Ref.26-29) que esses vermes parasitas (helmintos) exercem efeitos imunomodulatórios e imunorregulatórios nos hospedeiros - fruto de uma co-evolução de vários milhões de anos - para garantir máxima sobrevivência, promovendo inclusive melhor limpeza viral e mudando dramaticamente a suscetibilidade a doenças. De fato, estudos têm sido publicados - inclusive em importantes periódicos como a Cell (Ref.30) e a frontiers in Immunology (Ref.31) - ligando justamente a maior prevalência de infecções com vermes helmintos e a menor incidência e/ou severidade da COVID-19. Seja durante infecções durante a infância ou recorrentes infecções com vermes helmintos, existem vários mecanismos propostos justificando uma maior proteção contra o SARS-CoV-2. Esses complexos organismos multicelulares parasitas são capazes de ativar mecanismos antivirais nos hospedeiros humanos - envolvendo células-T - e de atenuar substancialmente respostas pró-inflamatórias (lembram da "tempestade de citocinas", principal característica da COVID-19?), ambos os processos explicando perfeitamente a baixa letalidade da COVID-19 em vários países.

           Existem, obviamente, outros fatores que podem ajudar a explicar o aparente menor impacto da COVID-19 na África subsariana, como média da idade populacional muito baixa (~19 anos); baixa taxa de entrada de estrangeiros; amplas campanhas de vacinação, incluindo BCG (II); baixa taxa de obesidade (um dos principais fatores de risco para COVID-19 severa) em comparação com vários países muito afetados pela pandemia; e variantes genéticas promovendo menor suscetibilidade à COVID-19 (III).

Leitura recomendada:

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   SAÚDE PÚBLICA

        A promoção da ivermectina se tornou tão forte no Brasil nos últimos meses, que em Natal, Rio Grande do Norte, a Secretaria Municipal de Saúde começou a recomendar o uso de ivermectina para prevenção e tratamento da COVID-19, advogando - sem evidência científica de suporte - que esse medicamento pode ser usado regularmente para prevenir o risco de infecção e para manter a carga viral baixa. No YouTube, redes sociais, blogs e na TV, o medicamento está sendo pesadamente promovido, fomentando a auto-medicação e compras sem prescrição. Não existe estudo sobre a segurança da ivermectina para um uso regular, especialmente se doses em excesso forem usadas.

          Riscos de efeitos colaterais não-desejáveis podem ser também potencializado por interações não conhecidas com outros medicamentos, as quais podem afetar a fisiologia do sistema nervoso central (barreira sangue-cérebro), resultando em potenciais e sérios efeitos adversos à saúde. Mais recentemente, foi reportado no periódico The New England Journal of Medicine que pacientes com mutações no gene ABCB1 são suscetíveis a sérios danos neurológicos mesmo com uma única dose de ivermectina (Reportado sério caso de intoxicação com a ivermectina em um garoto de 13 anos).

        Aliás, durante as campanhas de promoção da ivermectina, raramente é citado que esse medicamento não é recomendado para grávidas. Estudos in vivo (camundongos, ratos e coelhos) têm indicado danos fetais a partir de doses cumulativas (Ref.10). Isso é mais do que preocupante, porque frequentemente as mulheres não sabem que estão grávidas no primeiro semestre. Estudos em humanos para analisar o perfil de segurança nas grávidas ainda são limitados e inconclusivos, e as agências de saúde alertam que as campanhas de uso em massa de ivermectina para quaisquer que sejam as patologias visadas precisam focar um esforço adicional para prevenir o uso por mulheres grávidas.

          Por fim, a promoção de uma suposta cura e solução para a infecção do vírus na forma de ivermectina ou outros medicamentos sem comprovação científica de eficácia pode reduzir a adesão da população às medidas não-farmacológicas e cientificamente comprovadas de prevenção e controle epidêmico, como o uso de máscaras faciais, distanciamento e isolamento sociais, e a lavagem das mãos, devido à falsa sensação de segurança.

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   CONCLUSÃO

          A ivermectina demonstrou alto potencial antiviral contra o novo coronavírus, porém, apenas em testes in vitro. NÃO existe boa evidência científica de eficácia do medicamento para o tratamento de pacientes com COVID-19 e modelos de farmacologia sugerem que as doses tipicamente recomendadas e aplicadas do medicamento são ineficazes contra o SARS-CoV-2 em indivíduos infectados. Estudos clínicos randomizados de alta qualidade publicados até momento fortemente sugerem ineficácia da ivermectina, inclusive no tão defendido "tratamento precoce". É, portanto, falso anunciar esse medicamento como a 'cura do novo coronavírus' ou eficaz para a prevenção de hospitalização por COVID-19. Além disso, mais campanhas de conscientização precisam ser feitas para reforçar que esse medicamento não deve ser usado em grávidas ou em mulheres tentando engravidar, e em crianças muito novas.


REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
  1. https://www.fda.gov/animal-veterinary/product-safety-information/fda-letter-stakeholders-do-not-use-ivermectin-intended-animals-treatment-covid-19-humans
  2. https://www.who.int/bulletin/volumes/82/8/editorial30804html/en/
  3. https://ann-clinmicrob.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12941-020-00368-w 
  4. https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/s00210-020-01902-5.pdf 
  5. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0166354220302011 
  6. https://ascpt.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/cpt.1889 
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