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Cortar o glúten da dieta traz benefícios?

                                          
- Atualizado no dia 15 de outubro de 2023 -

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         Uma dieta da moda hoje é a alimentação livre de glúten, esta a qual é considerada por muitos como uma "proteína vilã". Com promessas milagrosas de emagrecimento e benefícios à saúde, e usada por modelos e celebridades, a dieta glúten-free atraiu milhões de pessoas, levando à ascensão de um bilionário comércio de alimentos sem glúten e à demonização dessa proteína baseada muito mais em achismos do que em evidências científicas. Aliás, evidências arqueológicas mostram que o ser humano já consumia uma dieta com substancial quantidade de glúten há cerca de 14 mil anos (1), com o pão de trigo representando um alimento mais do que tradicional há milhares de anos, fazendo inclusive parte íntima da religião Cristã.


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   TRIGO E O GLÚTEN

          O cultivo de cereais e o consumo de produtos alimentícios a base de grãos e cereais tornaram os grãos contendo glúten um forte acompanhante da evolução humana e hábitos alimentares desde o desenvolvimento da agricultura a partir de ~9 mil anos a.C. A partir da revolução na agricultura, a produção e a utilização de trigo tem gradualmente se expandido por todo o globo, e hoje os alimentos, industrializados ou não, fornecem até 50% da energia calórica consumida pela população humana, tanto em países desenvolvidos quando em países em desenvolvimento, tornando essa planta parte vital da dieta moderna dos humanos. Segundo a Organização para Alimento e Agricultura das Nações Unidas (FAO), são produzidas hoje cerca de 734 milhões de toneladas de trigo anualmente, mais do que triplicando o valor de 1961 (222 milhões de toneladas).

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> Quer entender o processo evolutivo e as impressionantes características genéticas adquiridas pelo trigo ao longo da sua domesticação? Acesse: Como nova informação genética é gerada durante o processo evolutivo?
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          Os grãos do trigo contêm carboidratos (60-65%), lipídeos (1-2%), proteínas (10-14%) e água. O glúten em específico constitui 75-80% do total proteico e engloba uma complexa mistura de centenas de diferentes proteínas. Essa mistura é dividida entre os dois diferentes complexos/subgrupos proteicos: gliadina e glutenina. Gliadina é uma fração solúvel em etanol e subdividida em alfa-, beta-, gama- e ômega-gliadinas; já a glutenina, a qual é insolúvel em etanol, é subdividida em gluteninas de alto e de baixo pesos moleculares. Nesse sentido, a estrutura do glúten presente no trigo é muito similar às proteínas do centeio (secalina) e da cevada (hordeína) e, portanto, o termo glúten é frequentemente usado para se referir coletivamente a todos esses componentes proteicos. O trigo também contém outros proteínas não associadas ao glúten, como os inibidores amilase-tripsina.



          Devido à sua alta capacidade de se ligar à água e consequente maleabilidade e elasticidade, o glúten induz a formação de membranas viscoelásticas, portanto determinando a consistência adequada de massas diversas e permitindo o fácil processamento de farinhas (ex.: trigo) em pães e outros alimentos.

          Nas últimas décadas, as pessoas vêm evitando cada vez mais o consumo de glúten devido a causas científicas e não-científicas. Existem três desordens hoje associadas com o consumo do glúten:

- Doença Celíaca
- Alergia ao Trigo
- Sensibilidade ao Glúten Não-Associada à Doença Celíaca (NCGS)

          Porém, enquanto que essas três desordens em conjunto representam uma prevalência global de apenas 5%, e não estarem necessariamente associadas ao glúten, estimativas sugerem, por exemplo, que entre 10% e 20% da população nos EUA e na Austrália estão evitando alimentos com a presença de glúten. E, no geral, grande parte das pessoas já tendem a ver o glúten como algo prejudicial mesmo para indivíduos sem real condição clínica de intolerância ou de alergia, fomentando uma indústria cujo mercado global de produtos glúten-free era estimado de valer US$4,2 bilhões em 2017 e com previsão de aumento para US$6,5 bilhões para este ano (2023) (Ref.34)..

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   DOENÇA CELÍACA

          A doença celíaca é definida como uma enteropatia crônica do intestino delgado imune-medida, e precipitada pela exposição ao glúten ingerido junto aos alimentos e atingindo indivíduos geneticamente predispostos. O glúten é pobremente digerido em indivíduos sem e com a doença celíaca, mas nesses últimos, quando peptídeos intactos atravessam a submucosa do intestino delgado, uma forte reação imune é disparada, envolvendo linfócitos-T e produção de citocinas, o que resulta em lesões intestinais típicas da doença (1). Cerca de 1% da população mundial possui a doença, mas sua prevalência maior é nos países do Norte Europeu (1-5%) e nas populações Africanas vivendo no oeste do Saara (5-6%). Tende, ligeiramente, a afetar mais a população feminina do que a masculina.

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(1) O proteoma do glúten é extremamente complexo, consistindo de centenas de proteínas similares, e apenas uma pequena fração de todos os possíveis fragmentos do glúten são reconhecidos por células CD4+T glúten-reativas em indivíduos com doença celíaca. Muitos desses fragmentos reativos (epítopos) não foram ainda identificados ou bem caracterizados pelos cientistas, mas importantes avanços recentes têm sido alcançados nesse sentido (Ref.37). 
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          Os sintomas da doença celíaca geralmente englobam diarreia, dor abdominal, esteatorreia, e retardo no crescimento ou perda de peso devido à má-absorção associada ao lesionamento intestinal. Esses sintomas podem ocorrer em diferentes combinações e severidades, mas alguns poucos casos não apresentam sintomas aparentes. Quase metade dos pacientes podem também experienciais sintomas atípicos, como fatiga, anemia, dermatite, depressão, problemas neurológicos e infertilidade. O tratamento, basicamente, consiste em cortar totalmente o glúten da dieta.

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> E enquanto o glúten por si só não causa a doença celíaca, esta a qual é dependente de fatores genéticos, uma enzima bastante usada como aditivo alimentar - chamada de trans-glutamnase - vem sendo apontada como um gatilho para a emergência da doença em pessoas suscetíveis. Para saber mais, acesse: Aditivo presente em alimentos processados pode causar a doença celíaca

> De forma mais específica, a doença celíaca é uma complexa e poligênica enteropatia inflamatória causada pela exposição ao glúten da dieta que ocorre em um subconjunto de indivíduos geneticamente suscetíveis que expressam ou o haplótipo HLA-DQ8 ou o haplótipo HLA-DQ2. Está envolvido também no processo uma expressão em excesso da interleucina-15 (IL-15) no epitélio do intestino, células-T CD4+, citocina interferon-γ (IFNγ) e da enzima transglutaminase 2 (TG2) (Ref.29). E evidência recente sugere que células-T citotóxicas são rapidamente geradas (via reprogramação celular de certas células-T intraepiteliais) e mobilizadas em indivíduos com doença celíaca após a ingestão de glúten, mediando também danos gastrointestinais (Ref.38).
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        Nesse sentido, se você não possui a doença celíaca (2), na qual de fato existe uma intolerância específica à digestão do glúten, não é necessário abolir os alimentos contendo esta proteína da sua dieta apenas devido à presença do glúten. Além de não existir sólida evidência científica de que esse nutriente promova qualquer prejuízo para os indivíduos saudáveis tolerantes ao glúten, você ainda perde muitos nutrientes de diversas fontes, principalmente cereais que contêm essa proteína, como o trigo, aveia*, centeio e cevada. Somando-se a isso, muitos alimentos que contêm glúten costumam ser fortificados com minerais e vitaminas extras, como as farinhas de trigo, e são de fácil acesso à população em geral. E não existe ligação alguma entre a não ingestão do glúten e o emagrecimento, mas pode haver um resultado inicial na 'dieta glúten-free' porque você estará cortando massas processadas baseadas no trigo e outros produtos de alto valor calórico. Porém, muitas pessoas distorcem a dieta, e acabam consumindo alternativas pouco nutritivas que estão livres apenas do glúten, na ilusão de uma alimentação saudável. E outro relativo prejuízo associado à dieta livre de glúten: os produtos livres dessa proteína tendem a ser mais caros na média.

            E indivíduos saudáveis tolerantes ao glúten que observam benefícios à saúde com a retirada dessa proteína geralmente é porque mudaram sua dieta para uma mais saudável em relação à antiga dieta contendo glúten, ao diversificar e enriquecer nutricionalmente suas opções alimentares. Esses indivíduos obteriam os mesmos benefícios, e de forma muito mais fácil e mais barata, se mantivessem opções contendo glúten, mas modificando sua dieta como um todo, diversificando mais os alimentos e optando por aqueles mais saudáveis. Para melhorar, em específico, as funções intestinais, uma aposta é a diversificação e maior consumo de fibras, incluindo fontes variadas desse nutriente, como frutas, verduras e cereais integrais (contendo ou não glúten) (3).
          Indivíduos que embarcam em dietas "livres de algum alimento" (ovo-free, glúten-free, leite-free, etc.) sem real necessidade para tal frequentemente acabam enfrentando variados graus de deficiência nutricional (Ref.35), especialmente se não seguem orientação de um nutricionista e apenas adotam "dicas da moda" promovidas por influencers nas redes sociais. E reforçando: produtos glúten-free em si podem ser significativamente menos nutritivos em relação aos produtos tradicionais substituídos. Por exemplo, um estudo recente (Ref.39), avaliando a qualidade nutricional de pães glúten-free ao redor do mundo, encontrou que esses produtos possuíam menos proteína e mais gordura do que pães tradicionais, além de uma concentração de fibras altamente variável entre países e tipicamente um alto índice glicêmico (associado ao extensivo uso de farinha de arroz e de amido como principais ingredientes na formulação glúten-free); o estudo também alertou que fortificação com micronutrientes não era comum nos pães glúten-free (ex.: ausência de farinha de trigo fortificada) (!). 

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(!) Para mais informações sobre esse tópico, estudos de destaque no final deste artigo. 
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   ALERGIA AO TRIGO E NCGS

           Como mencionado, o glúten é uma proteína constituída de uma complexa rede de gliadinas e gluteninas, tornando-o difícil de ser clivado. Isso permite que essa proteína escape da degradação por enzimas proteolíticas gástricas, pancreáticas e intestinais. Portanto, glúten acaba sendo parcialmente preservado após a remoção de amido, proteínas solúveis (em água) e albuminas durante a digestão do bolo alimentar. É argumentado que peptídeos não-digeridos do glúten podem provocar danos gastrointestinais além daqueles associados à doença celíaca e alterar a permeabilidade intestinal, facilitando a translocação de bactérias - e, consequentemente, afetando o sistema imune. Nesse contexto, o glúten estaria envolvido no desenvolvimento ou exacerbação de sintomas de outras desordens gastrointestinais e até mesmo na deflagração de respostas imunes inatas e adaptativas responsáveis por inflamação intestinal (Ref.40).

            Esse cenário traz em especial destaque uma alegada condição conhecida como Sensibilidade ao Glúten Não Associada à Doença Celíaca (NCGS, na sigla em inglês). Na NCGS, irritações intestinais e outros sintomas extra-intestinais em alguns indivíduos podem estar associadas ao glúten sem, necessariamente, existir a doença celíaca. 

         Existe também a possibilidade da pessoa ser alérgica ao trigo, uma condição não necessariamente ligada ou limitada ao glúten.


   NCGS: FATO OU FICÇÃO?

          A NCGS é tradicionalmente definida como uma síndrome caracterizada por sintomas intestinais e extra-intestinais relacionados à ingestão de alimentos contendo glúten, em indivíduos que não são afetados pela doença celíaca ou pela alergia ao trigo. Porém, essa síndrome é motivo ainda de muito debate e controvérsias no meio acadêmico, incluindo a forte suspeita de que tal condição não seja dependente do glúten.

          Apesar de existir certa dúvida quanto à real existência dessa síndrome, com alguns estudos sugerindo que essa condição possa ser fruto de um efeito placebo ou de um nocebo (4), as evidências contrárias são relativamente fortes. Inclusive, é estimado que a maior parte dos quadros de intolerância ao glúten sejam devido ao NCGS, algo antes ignorado pelos pesquisadores. Alguns estudos também sugerem que a NCGS possa ser baseada em uma resposta autoimune, similar à doença celíaca. De qualquer forma, assim como a alergia ao trigo e a doença celíaca, a NCGS parece afetar uma parcela muito pequena da população. Por causa das incertezas no diagnóstico clínico, estudos estimando a prevalência dessa condição entre a população mundial são altamente variáveis, com valores indo de 0,56% até improváveis 6%.

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(4O efeito nocebo emerge quando apenas a ideia de consumir ou receber algo prejudicial ou benéfico é suficiente para desencadear sintomas diversos no indivíduo, ou seja, não é preciso nem a utilização de um placebo para efeitos fisiológicos de importância surgirem. A NCGS, nesse caso, pode não existir e ser resultado apenas de uma histeria em massa devido à pesada e não-científica propaganda promovendo a ideia que a retirada do glúten da dieta é super-saudável e resolve quase todos os problemas de saúde. Para mais informações sobre o efeito nocebo, fica a sugestão de leitura: O que é o efeito placebo? E qual a relação entre vudu e nocebo?
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          De fato, devido ao forte marketing demonizando o glúten, não é surpresa que em estudos populacionais, 7% a 15% dos indivíduos relatam sintomas relacionados à ingestão do glúten na ausência de doença celíaca. Porém, em estudos clínicos duplo-cegos com o uso de placebo, apenas 1 em cada 6 desses indivíduos possuem a suspeita confirmada através de testes de intolerância ao glúten, sugerindo uma real NCGS. Um estudo clínico publicado recentemente (março/2019) no The Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition (Ref.23), analisando 500 indivíduos de 0 a 18 anos de idade que possuíam suspeita de terem alguma intolerância ao glúten, confirmou que apenas 26 (5,2%) possuíam de fato NCGS. Ou seja, mesmo em uma amostra bem específica de pacientes, a ocorrência da NCGS é bem incomum. Além disso, mesmo em pacientes com NCGS, testes clínicos já mostraram que boa parte costuma ter alta tolerância ao glúten (Ref.20). Outros componentes do trigo, como aglutininas, frutanos, ou inibidores de amilase tripsina, são propostos de também atuarem na patogênese dessa condição.

          Nesse sentido, muitos especialistas já preferem chamar a 'Sensibilidade ao Glúten Não Associada à Doença Celíaca' de 'Sensibilidade ao Trigo Não Associada à Doença Celíaca'. Um estudo duplo-cego randomizado publicado recentemente no periódico Nutrients (Ref.22), por exemplo, mostrou que a simples troca da variedade do trigo (tradicional para Senatore Cappelli) na dieta de pacientes com NCGS foi suficiente para diminuir substancialmente os sintomas gastrointestinais específicos e os extra-intestinais.

        Somando-se a isso, nos últimos anos alguns pesquisadores começaram a sugerir que o culpado por trás da NCGS parece nem mesmo ser o trigo ou o glúten, mas sim o consumo de carboidratos conhecidos como FODMAPs. Os FODMAPs reúnem oligo-, di-, e monossacarídeos e polióis de baixa fermentabilidade, os quais são carboidratos de cadeia curta não-digestíveis ou de baixa absorção no trato intestinal humano. Esses macronutrientes - encontrados em alimentos diversos, como cebolas, legumes, iogurtes, leite e maças - desencadeariam sintomas da síndrome do intestino irritável em uma pequena parcela da população, e deveriam ser consumidos em baixa quantidade nesses casos. Uma dieta glúten-free, por exemplo, acaba trazendo uma diminuição na ingestão dos FODMAPs, o que explicaria o alívio intestinal experienciado por algumas pessoas que optam por essa dieta. Porém, isso ainda é apenas uma hipótese.

         Para exemplificar essa confusão, um estudo recente, publicado no periódico Gastroenterology (Ref.14), analisou 59 pessoas que eram aderentes de uma dieta glúten-free por supostamente terem problemas gastrointestinais com essa proteína. Esses voluntários foram divididos de forma aleatória em três grupos: o primeiro iria consumir diariamente e por uma semana uma barra de cereais contendo glúten isolado; o segundo iria consumir barras com um FODMAP isolado (no caso, fructano); e o terceiro iria consumir uma barra sem nenhum dos dois macronutrientes suspeitos (placebo). Após analisar os sintomas deflagrados via testes de sangue e auto-reportes, os pesquisadores redistribuíram os participantes entre os três grupos até que todos tivessem ingerido todas as três barras e tivessem os possíveis sintomas associados analisados. O resultado foi que dos 59 participantes, 24 tiveram os mais expressivos sintomas de intolerância com as barras de frutano, 22 responderam mais às barras de placebo e apenas 13 às barras de glúten.

          Outras duas patologias associadas ao glúten, mas muito raras na população em geral, é a dermatite herpetiforme (genética e caracterizada por erupções cutâneas crônicas que coçam muito, é englobada no espectro da doença celíaca) e a glúten ataxia (manifestação neurológica que pode ser englobada dentro do espectro da NCGS). Reforçando novamente que o glúten não é a causa dessas doenças, e, sim, um gatilho que dispara os sintomas dessas doenças já presentes no indivíduo.

          Nesse sentido, existe também a sugestão de que uma pequena parcela dos indivíduos sofrendo de Síndrome do Intestino Irritável possam ter parte dos sintomas associados disparados pela exposição ao glúten e/ou ao trigo, mas é mais provável que a causa seja componentes nutricionais comuns presentes tanto no trigo quanto em outros alimentos, ou ao fato desses pacientes possuírem, na verdade, NCGS.

           Finalmente, é válido reforçar que os mecanismos patogênicos de um alegado quadro de NCGS não são bem esclarecidos, e não existe suporte científico para uma total restrição ao glúten como efetiva estratégia visando resolver problemas gastrointestinais além da doença celíaca (Ref.40).


   ALERGIA AO TRIGO

          A alergia ao trigo é uma reação alérgica medida pela Imunoglobulina E (IgE) às proteínas encontradas no trigo e em outros cereais relacionados, como o centeio e a cevada. Um espectro de diferentes proteínas do trigo estão envolvidas nessa reação, incluindo gliadinas, gluteninas, serpinas, tioredoxina, aglutinina e as ATI. A reação depende da rota de exposição, incluindo a pele, gastrointestinal e respiratória. Essa alergia pode ser vista também na forma de asma ocupacional, rinite, anafilaxia exercício-induzida trigo-dependente e urticária de contato.

          A prevalência global da alergia ao trigo, incluindo todas as formas, é de aproximadamente 4%, sendo mais prevalente em crianças (2-9%) do que nos adultos (1-2%). Nas crianças, a alergia ao trigo é normalmente vista em combinação com dermatites atópicas suaves a moderadas. Nos adultos, a forma mas comum é aquela associada aos exercícios físicos, onde os sintomas ocorrem apenas em combinação com uma série de atividades físicas feitas após a ingestão de alimentos contendo trigo. Os sintomas gastrointestinais dessa alergia são frequentemente leves e difusos, normalmente expressos como uma diarreia e/ou inchaço abdominal.

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> Existe a alegação de que o glúten e a caseína (uma proteína do leite) fazem mal para crianças com autismo, e que tirar esses nutrientes da dieta ajuda a tratar seus sintomas. Não existem sólidas evidências científicas suportando essa alegação. E, mais uma vez, o glúten só mostra trazer problemas para indivíduos alérgicos ou intolerantes a essa proteína, com ou sem autismo. Aliás, um estudo clínico recente publicado no periódico Journal of Autism and Developmental Disordens (Ref.28) reforça esse esclarecimento, ao não encontrar benefícios de tal intervenção ao longo de 12 meses de tratamento.
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   TRIGO ANTIGO E MODERNO

          Nos últimos anos se tornou bastante comum também a afirmação de que o problema não seria especificamente o consumo de glúten, mas o consumo do trigo mais moderno, o qual teria sido alvo de pesada engenharia genética e detrimentosos cruzamentos, se tornado prejudicial à saúde humana. Isso, claro, não possui embasamento científico (Ref.24-25).

          Englobando as variedades de 'trigo antigo', temos o Einkorn (Triticum monococcum L., diploide), Emmer (T. dicoccum L., tetraploide) e o Spelt (T. aestivum ssp. spelta, hexaploide). Englobando o 'trigo moderno, temos o Durum (T. durum L., tetraloide) e o Trigo Comum (T. aestivum L., hexaploide). Para começar, muitos citam o DNA gigantesco das variedades modernas, sugerindo que o DNA das espécies antigas era bem menor e mais simples. No entanto, em ambos os grupos temos grandes tamanhos genômicos (tetraploides e hexaploides). Somando-se a isso, as espécies modernas não emergiram via fruto de engenharia genética, mas via cruzamentos nos últimos milhares de anos de domesticação. Modificações genéticas modernas foram feitas de forma pontual para certos fenótipos de resistência em algumas variedades.

          O pessoal também cita que as espécies de trigo modernas expressam mais glúten e proteínas de pior e mais nociva digestão do que as espécies antigas. Além disso não ter embasamento científico, temos alguns estudos que sugerem o contrário. Podemos primeiro citar um estudo de 2017 publicado no periódico Food Research International (Ref.26), onde através de ensaios clínicos de digestão gástrica in vitro pesquisadores mostraram que as espécies antigas de trigo produzem uma maior quantidade de peptídeos contendo sequências imunogênicas e tóxicas para indivíduos celíacos. Já um estudo publicado no periódico Foods (Ref.27) mostrou que as espécies antigas de trigo possuem maior quantidade de proteína e de glúten do que as espécies modernas; o trigo comum mostrou possuir um conteúdo maior apenas de glutenina.

        Já um estudo mais recente (2020), publicado esta semana no periódico Journal of Agricultural and Food Chemistry (Ref.30) reforçou que o potencial de "patogenicidade" do trigo moderno e do antigo praticamente não diferem, e mais: o trigo moderno parece ser menos prejudicial para quem possui intolerância ao glúten. No estudo, os pesquisadores analisaram genomicamente 60 cultivares (inverno) germânicos de trigo primeiro registrados entre 1891 e 2010 (sementes conservadas no Instituto de Genética de Plantas e de Pesquisa em Plantações Leibniz, Alemanha), plantados em 2015, 2016 e 2017 sob as mesmas condições climáticas e geográficas.

         As análises mostraram que as variedades modernas na Alemanha possuíam um conteúdo levemente menor de proteínas, e que o glúten total permaneceu relativamente constante ao longo dos últimos 120 anos, mas com variações nos dois subgrupos principais de proteínas constituintes (gliadinas e gluteninas): 18% menos gliadinas e aumento de 25% de gluteninas. Níveis de chuva influenciaram muito mais no conteúdo de glúten do que as variedades. A nível proteico, os pesquisadores concluíram que não foi encontrada evidência de suporte para um suposto aumento do potencial imunoestimulatório das variedades modernas do trigo.

           O subgrupo das gliadinas é o mais suspeito de causar reações imunes indesejadas nas patologias associadas ao glúten, e os estudos observavam um aumento na fração apenas de gluteninas nas variedades mais modernas de trigo.

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   (!) ESTUDOS DE DESTAQUE

- Um estudo de revisão publicado em 2016 (Ref.10) fez um alerta quanto às deficiências nutricionais associadas a um regime que exclui o glúten. Entre os macro e micro nutrientes que mais sofrem uma diminuição de consumo, quando analisada uma dieta tradicional da maior parte da população, estão as fibras, vitamina D, vitamina B12 e ácido fólico (o trigo, por exemplo, é normalmente enriquecido com ácido fólico), ferro, zinco, manganês e cálcio. Além disso, as pessoas em uma dieta livre de glúten tendem a consumir mais alimentos com gorduras hidrogenadas e de alto índice/carga glicêmica. Como dito no texto acima, é preciso tomar um maior cuidado com a dieta quando se é submetido a esse tipo de restrição alimentar. 

-  Um importante aviso para as pessoas que escolhem uma dieta 'Glúten Free'. Um estudo realizado na Universidade de Illinois, em Chicago, EUA, e publicado em 2017 (Ref.11) mostrou que as pessoas consumindo apenas alimentos livres de glúten estão sob um maior risco de serem expostos a uma maior quantidade de arsênio e mercúrio, dois tóxicos metais que podem levar ao desenvolvimento de problemas cardíacos, câncer e danos neurológicos.

Isso é consequência da maior quantidade de outros alimentos consumidos para compensar a retirada daqueles que contêm glúten. Em especial, essa dieta restritiva leva ao aumento do consumo de arroz (incluindo os alimentos embalados ´glúten-free´ que tendem a ser ricos em farinha de arroz em substituição à farinha de trigo). O arroz é bem conhecido de ser um bioacumulador, incluindo mercúrio e, principalmente, arsênio ( Entenda mais sobre o assunto no artigo Arroz Venenoso).

No estudo, mostrou-se que pessoas submetidas à dieta glúten-free tinham a concentração de arsênio no sangue quase duas vezes maior e, de mercúrio, 70% maior.

Só nos EUA, em 2015, 1 em cada 4 pessoas reportaram que tinham abandonado o consumo de alimentos com glúten, um aumento de 67% em relação ao ano de 2013, e algo que preocupa os especialistas. Portanto, é preciso ficar bem alerta no que se está consumindo quando se está nessa dieta, para não ter a saúde prejudicada.

Em um estudo conduzido por pesquisadores do Centro Médico da Universidade de Columbia, Hospital Geral de Massachusetts e Escola de Medicina de Harvard, e publicado no Britsh Medical Journal (BMJ) (Ref.12), mais de 100 mil homens e mulheres foram analisados em relação ao consumo de uma dieta contendo glúten. Os resultados mostraram que se a pessoa não possui a doença celíaca, o consumo de glúten não está associado com o aumento de riscos de doenças cardíacas.

Os pesquisadores envolvidos reforçaram que a ingestão de glúten por pessoas que não possuem alergia à essa proteína não faz mal à saúde cardíaca e que, pelo contrário, retirar diversos alimentos integrais (certos grãos e cereais, por exemplo) que contêm glúten pode causar danos, já que os mesmos mostram efeitos de proteção contra doenças cardíacas. Eles também lembraram que afirmações populares e da indústria alimentícia de que o glúten é prejudicial não possuem fundamento científico, e que a única coisa que fazem é gerar maiores lucros para os produtores de alimentos 'livres de glúten/glúten free'. Na conclusão, deixaram claro que uma dieta livre de glúten não deveria ser encorajada para pessoas sem a doença celíaca.

Um estudo publicado na Nature Communications (Ref.18) mostrou que indivíduos saudáveis conseguem benefícios intestinais - especialmente na composição da microbiota - via dieta glúten-free quando mudam a composição de fibras em relação a uma dieta rica em glúten. Em outras palavras, isso reforça que não é a retirada do glúten, e, sim, uma alimentação mais saudável a causa primária de possíveis benefícios associados à mudança dietética. Nesse sentido, os autores do estudo alertaram que muitos produtos glúten free presentes no mercado são nutricionalmente pobres, apenas não possuindo glúten, o que pode trazer prejuízos à saúde dos consumidores. Independentemente se a pessoa possui ou não problemas com o glúten, ela precisa planejar bem sua nova dieta livre de glúten para torná-la saudável.

Um estudo publicado em 2020 no periódico European Journal of Nutrition (Ref.32), analisando dados genômicos e da dieta de 39927 participantes do UK Biobank sem doença celíaca, não encontrou associação significativa entre consumo de glúten e marcadores de saúde metabólica. Os autores do estudo concluíram que limitar o consumo de glúten é improvável de fornecer benefícios metabólicos para a população em geral.

- Um estudo mais recente publicado no periódico URNCST Journal (Ref.36) encontrou que indivíduos com e sem doença celíaca consumindo uma dieta glúten-free perdiam as bactérias do gênero  Methanobrevibacter do microbioma intestinal, com incerta implicação para a saúde.

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   CONCLUSÃO

          Se você não possui a doença celíaca ou raras reações adversas associadas ao glúten, não tenha medo de comer uma saudável aveia* ou um centeio. O comum 'Não contém glúten' nas embalagens é um alerta apenas para os portadores de enfermidades específicas. É o mesmo que demonizar o amendoim só porque algumas pessoas possuem alergia a esse alimento. E a lógica do emagrecimento é simples: consuma menos calorias do que você gasta por dia, prestando atenção no que você come. Não existe fórmula mágica.

          E caso você esteja sofrendo com problemas intestinais e desconfie do glúten e/ou do trigo, busque primeiro orientação e ajuda de um profissional de saúde capacitado. O médico e o nutricionista irão melhor atendê-lo para confirmar através de testes clínicos específicos e análise do seu histórico se existe uma real desordem associada a algum nutriente ou alimento em específico. Não saia cortando nutrientes e alimentos da sua dieta, ou aplicando tratamentos por conta própria, porque isso pode piorar seu estado de saúde.

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*A aveia só costuma possuir glúten porque é processada junto ao trigo e outros grãos nas indústrias. Sua proteína é a avenina e, caso seja bem purificada ou tratada separadamente durante seu tratamento industrial, a aveia passará a não ter mais o glúten, ficando segura para o consumo de indivíduos com a doença celíaca ou outras sensibilidades associadas.
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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
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