Por que inalar gás hélio muda a voz?
Esse é um experimento muito popular: uma pessoa pega um balão cheio de gás hélio, inala seu conteúdo e logo após a inalação começa a falar. A voz resultante sai modificada, engraçada e notavelmente mais fina e estridente. A explicação popular é que o hélio "aumenta a frequência da voz". Porém, a correta explicação é um pouco mais complexa.
O som é uma onda compressional em um gás, líquido ou sólido, e a onda, por sua vez, é uma perturbação periódica que viaja no espaço. A periodicidade espacial (ciclo de máximos e mínimos) das ondas é chamada de comprimento de onda. As ondas sonoras em específico são perturbações representadas por mudanças locais na pressão, densidade de massa e deslocamento de partículas em um meio (Fig.1). As variações na pressão e na densidade ocorrem em sincronia de fase, significando que ambas aumentam (compressão) ou diminuem (rarefação) em relação aos valores ambientais. A velocidade das ondas sonoras é determinada pelas propriedades do meio e a frequência dessas ondas é inversamente proporcional ao comprimento de onda (Fig.2).
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Leitura complementar:
> A velocidade do som no ar é de 343 m/s (em 20°C e 1 atm), a qual é 15 vezes menor do que a velocidade do som no aço (5960 m/s), enquanto em água é de 1482 m/s.
> Quando uma onda viaja ao longo de diferentes meios, a frequência permanece a mesma, mas o comprimento de onda muda com a mudança na velocidade do som.
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Na produção da voz humana, pressão dos pulmões faz ar fluir através da laringe, produzindo oscilação das cordas vocais. Isso resulta em um sinal acústico com uma frequência fundamental e vários harmônicos de amplitude decrescente (Fig.3a). A passagem de ar da laringe para a boca (filtro supralaríngeo) age como um filtro acústico que amortece algumas frequências no sinal acústico e permite que outras frequências passem sem atenuação. Na Fig.3b, temos a função de transferência associada com esse filtro acústico. O sinal acústico final emitido pela boca (voz percebida por terceiros) é o produto entre sinal original e função de transferência (Fig.3c).
As frequências de pico na função de transferência são chamadas de frequências formantes. A altura (pitch) da voz de uma pessoa é determinada pela frequência fundamental da fonte do sinal (tom), onde as baixas frequências são percebidas como "sons graves" (tom grave ou baixo) e as mais altas como "sons agudos" (tom agudo ou alto). Porém, a qualidade (ou timbre) da voz, em particular a percepção dos sons vogais, depende do espaçamento relativo entre as frequências formantes, assim como da largura das bandas associadas. Em termos de física, a existência das frequências formantes pode ser entendida como as frequências ressonantes para ondas sonoras em um ou mais tubos representando o trato vocal supralaríngeo (Fig.4).
Hélio (He) é o segundo elemento mais abundante do universo conhecido, após o hidrogênio. Esse elemento é um gás nobre e quase completamente inerte em condições normais. Com um ponto de ebulição extremamente baixo, próximo do zero absoluto, hélio é encontrado na superfície da Terra sempre como um gás e na forma monoatômica (átomos isolados). Em termos de densidade, é o segundo gás menos denso, atrás apenas do gás hidrogênio (H2). Nesse último ponto, hélio é significativamente menos denso do que o ar atmosférico, composto majoritariamente pelos gases nitrogênio (N2) e oxigênio (O2). Portanto, no hélio, a velocidade do som é muito maior, em torno de 1010 m/s em 20°C e pressão atmosférica de 1 atm.
Essa notável diferença na velocidade do som entre diferentes gases é a causa para mudança de voz causada quando hélio é introduzido no trato vocal.
A frequência fundamental e harmônicos no som produzido pela oscilação das cordas vocais não são afetados de forma significativa pela introdução de hélio. As propriedades elástica do tecido das cordas vocais são o principal determinante de ambos. Porém, as frequências formantes, associada com as propriedades do filtro supralaríngeo, são afetadas de forma significativa pela introdução do hélio por causa da maior velocidade do som nesse gás. Enquanto as frequências individuais produzidas pela laringe não mudam significativamente, a distribuição de energia favorece frequências mais altas. Nisso, as frequências formantes são deslocadas para cima (Fig.5). Como resultado, o timbre muda e a inalação de gás hélio torna a voz mais fina e estridente.
No mesmo sentido, se um gás mais denso do que o ar atmosférico é introduzido no trato vocal, as frequências formantes são deslocadas para baixo, ou seja, ocorre um aumento de energia transferida (ressonância) para frequências mais baixas no trato vocal e a voz da pessoa (timbre ou qualidade) é novamente modificada, sendo percebida como mais grossa. Mas novamente realçando: as frequências fundamentais - produzidas pela vibração direta das cordas vocais - não mudam e, sim, a distribuição de energia entre as frequências. Um exemplo de gás inerte que pode ser inalado para esse efeito oposto é o hexafluoreto de enxofre (SF6), como mostrado no vídeo abaixo. A velocidade do som no gás SF6 é de 135 m/s em 20°C e 1 atm (Ref.3).
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ALERTA: Inalação excessiva de gases inertes como o hélio pode ser perigosa, incluindo risco de sufocamento e embolismo. NÃO faça experimentos de inalação desses gases sem supervisão técnica e pronta assistência em caso de acidentes.
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REFERÊNCIAS
- Sound, Speech, and Hearing. (2007). Biological and Medical Physics, Biomedical Engineering, 555–628. https://doi.org/10.1007/978-3-540-29604-1_10
- Barnes, H. R. (2008). The uses of helium and xenon in current clinical practice. Anaesthesia, Volume 63, Issue 3, Pages 284-293. https://doi.org/10.1111/j.1365-2044.2007.05253.x
- Forinash & Dixon (2014). Helium and Sulfur Hexafluoride in Musical Instruments. The Physics Teacher, 52(8), 470–473. https://doi.org/10.1119/1.4897582
- https://physics.stackexchange.com/questions/122353/why-does-our-voice-sound-different-on-inhaling-helium
- https://fi.edu/en/sparkofscience/change-your-voice-science