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Candiru: É verdade a história do peixe que entra no pênis humano?

- Atualizado no dia 23 de dezembro de 2022 -

           Nos últimos 150 anos, um pequeno peixe aqui na América do Sul, mais precisamente na Amazônia, tem causado terror devido a um alegado hábito: uma atração sinistra pelo pênis humano, penetrando ativamente o interior desse órgão através da uretra quando um indivíduo azarado entra no rio sem uma sunga ou outro tipo de proteção. Aliás, os relatos vão mais além: o fino e alongado peixe seria capaz de entrar no pênis de homens fora da água mas urinando no rio, onde o esguio peixe pularia da água e nadaria pelo filete de urina até à abertura peniana! Afinal, qual é a verdade por trás dessa história? E o que as sanguessugas têm a ver com essa história?

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   RIO AMAZONAS E A LENDA DO CANDIRU

          Com quase 7 mil quilômetros de comprimento, e com sua fonte primária consistindo de gelo derretido da Cordilheira dos Andes, o Rio Amazonas representa o maior sistema fluvial do planeta. Metade das florestas úmidas persistindo na Terra e o habitat de dois terços das espécies de animais e plantas terrestres registados no mundo dependem da enorme bacia hidrográfica associada cobrindo uma área superior a 7 milhões de quilômetros quadrados.

           Entre os inúmeros animais que habitam as águas Amazônicas, existe um em destaque que alimenta o pesadelo de muitos: o famoso candiru.

          No século XIX e no início do século XX, exploradores Europeus na região Amazônica registraram relatos de um estranho pequeno peixe com hábitos perturbadores. Esse peixe, assim parecia alertar os povos nativos, entrava na uretra das pessoas quando essas urinavam no rio e o faziam com terríveis consequências. As mais antigas menções sobre esses eventos parecem ter sido feitas por Carl Friedrich Philipp von Martius (1794–1868), seguido por relatos similares por vários outros Europeus, a maioria naturalistas e exploradores Germânicos e Franceses. O medo era tanto que os homens locais usavam vestimentas protetoras e mesmo amarravam ataduras ao redor do pênis para prevenir a entrada do candiru. Muitos relatos de entrada do peixe-parasita na vagina e no ânus começaram também a eventualmente aparecer.

           Em 1930, no American Journal of Surgery (Ref.2), Willis Gudger publicou dois notáveis artigos analisando e revisando todos os relatos disponíveis para ele sobre o candiru. Os relatos destacados nesses artigos realçaram o alarme que o pequeno peixe causava na época: "... com grande violência ele força sua entrada e desejo de comer a carne...", "... tem o hábito de entrar com grande impetuosidade e rapidamente nas aberturas externas do corpo humano...", "... entrava na uretra e no reto, principalmente se aquele na água estivesse se aliviando...", "... o pequeno animal se lança para fora da água e penetra a uretra ao ascender na coluna de urina...", "... penetra como uma enguia nos orifícios de banhistas e causa várias acidentes fatais...", "... horrível sofrimento a introdução dessa agulha viva pode ocasionar...". Tratamentos relatados para o ataque desse peixe incluíam o consumo de chás quentes com a fruta Huito (Genipa americano), procedimentos dolorosos de extração e até mesmo amputação peniana. 

           Porém, apesar de Gudger concluir que havia ampla e "confirmada" (testemunhas) evidência, sólida prova dos ataques feito pelo peixe na genitália e outros orifícios humanos não foi encontrada. 

          Existe um único relato de caso publicado em 1997 e muito divulgado desde então descrevendo a alegada extração cirúrgica de um candiru da uretra de um paciente. A descrição do caso é de autoria do  Dr. Anoar Samad, formado na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e com mestrado de Urologia na Espanha (1995). Segundo relato do médico (Ref.5): 

          "Foi em 1997, eu recebi uma ligação do tio dele relatando o acontecido, achei ser piada, mas até que me convenci de que era verdade. O paciente chegou até minha clínica há 3 dias com o candiru na uretra, além do sangramento ele já não conseguia urinar. Eu examinei-o e fiz a cistoscopia e identifiquei o candiru, que tinha 12 centímetros de comprimento e 1,5 de largura", conta o médico. "A cirurgia durou cerca de duas horas, e com um endoscópio adequado e câmera para visualizar a uretra, conseguimos dar um tranco no candiru e retirá-lo de lá."

          Porém, existem muitas inconsistências e irregularidades associadas a esse caso, como o notável tamanho do peixe reportado (13,3 cm) e a insistência da vítima em dizer que o peixe pulou da água e ascendeu na coluna de urina (Ref.2, 17). Além disso, caso a natureza do candiru incluísse perseguir orifícios humanos ou caso acidentes nesse sentido fossem minimamente comuns, seria naturalmente esperado que vários relatos de caso estivessem presentes na literatura acadêmica descrevendo procedimentos de extração do parasita. Porém, a literatura acadêmica é vazia nesse sentido, contrastando dramaticamente a fama popular do peixe-parasita.

           De qualquer forma, esses relatos históricos, misterioso caso de 1997 e rápida disseminação popular das histórias contadas sobre o candiru acabaram tornando 'verdadeira' a existência do sinistro peixe no imaginário do povo. Inúmeras descrições ainda hoje na internet podem ser encontradas sobre esse "predador de pênis", incluindo flagrantes desinformações sobre o tema em notórios veículos de mídia. Entre essas descrições, temos ainda narrativas como "segue o fluxo de urina até a sua fonte", "aloja-se na bexiga da pessoa", "deposita milhões de ovos que eclodem e devoram a bexiga", "come as membranas mucosas e tecidos até a hemorragia matar o hospedeiro", "nada dentro da uretra e lá faz sua casa", "o peixe mata várias pessoas anualmente". É muito relatado também que o esguio peixe finca suas espinhas na uretra, tornando quase impossível e extremamente dolorosa a remoção sem cirurgia.

           Concluindo, apesar dos fartos e suspeitos registros históricos e relatos anedóticos na internet, é inexistente séria publicação na literatura acadêmica descrevendo cientificamente o peixe candiru como relatado nas histórias populares. Não existe real evidência científica dando suporte para essas histórias, as quais são melhor caracterizadas como lendas urbanas entre comunidades Amazônicas.

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   REAL CANDIRU

          O candiru referido nas histórias populares não é exatamente especificado, mas faz óbvia referência a peixes do gênero Vandellia, subfamília Vandelliinae, ordem Siluriformes (!); a espécie Vandellia cirrhosa é o mais "típico" representante nesse caso - popularmente também conhecido como "peixe palito de dente" ou "peixe-vampiro". Essa espécie é um pequeno, semi-transparente e esguio peixe geralmente com cerca de 4-8 cm de comprimento, mas podendo alcançar um máximo de 15-17 cm. Alimenta-se basicamente de sangue das guelras de peixes maiores e, para esse propósito, usa uma estrutura inter-opercular de espinhas - sim, as mesmas espinhas citadas nas histórias populares.


(!) Candiru é um nome genérico dado a vários clados de peixe nas famílias Trichomycteridae e Cetopsidae.

           Apesar do V. cirrhosa ser popularmente ligado a uma preferência por urina humana - e existir alguns relatos anedóticos de alegada atração desse peixe por ureia emitida pelas guelras das suas presas -, não existe qualquer evidência científica de qualidade nesse sentido, incluindo suposta invasão e parasitismo na uretra humana. Aliás, existe evidência apontando que esses peixes caçam através da visão e que não são atraídos por urina humana (Ref.17). Mesmo com as dimensões corporais permitindo a acomodação desse peixe na uretra, sem oxigênio disponível nesse ambiente e sem espaço para nadar, é improvável sua sobrevivência ali alojado mesmo que por alguns poucos minutos. E não é preciso mencionar a impossibilidade física de relatos sobre a subida desse peixe pelo filete de urina de pessoa urinando sobre um rio. Esse último ponto apenas reforça que as pessoas apenas estão passando a história para frente sem qualquer esforço de checagem.

           Aliás, o V. cirrhosa nem mesmo fica nadando livremente de bobeira. Esse 'peixe-vampiro' passa a maior parte do tempo escondido na areia ou na lama, esperando um peixe maior passar para que possa parasitá-lo nas guelras, cravando sua boca na artéria aorta - esta a qual passa pelas guelras para oxigenar o sangue a ser distribuído para os órgãos. Após perfurar o vaso sanguíneo com os dentes similares a agulhas, a pressão arterial faz o trabalho de empurrar o sangue para o estômago do parasita, o qual pode ficar cheio em poucos segundos. Após um curto período de alimentação de ~2 minutos, o candiru se desgarra do hospedeiro e se esconde novamente na areia ou na lama, onde fica em repouso para a digestão. 

           Nesse último ponto, não faz nem mesmo sentido o candiru entrar na genitália humana, onde ficaria incapaz de se alimentar de sangue já que não possui estruturas de bombeamento sanguíneo na boca ou na parte anterior do sistema intestinal, ficando dependente da pressão arterial do hospedeiro.

          Existe uma espécie (e gênero) ainda pouco caracterizada na subfamília Vandelliinae que parece também se alimentar de sangue humano de forma similar a uma sanguessuga, e foi apelidada de "candiru mordedor de humanos" (Ref.4). Porém, essa espécie é bem maior do que o tradicional candiru associado ao folclore popular, e só foi recentemente descrita.


   SEMPRE VAMPIROS?

           Um time internacional de pesquisa, liderado por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas, revelou uma espécie de peixe candiru, do gênero Paracanthopoma, que mostrou possuir um hábito distinto daquele de outros candirus. Ao invés de parasitar peixes maiores - fixando-se nas guelras como esperado -, o pequeno peixe foi flagrado se fixando nas escamas do Doras phlyzakion, uma espécie de peixe-gato. Existem duas hipóteses: ou o candiru está se escondendo de outros predadores no peixe hospedeiro de maiores dimensões, ou está pegando uma carona para alcançar distâncias maiores de forma mais rápida e com mínimo esforço.


          Ao examinar o intestino do peixe Paracanthopoma, nenhum vestígio de sangue, carne, pele ou muco foram encontrados. O achado - reportado e descrito no periódico (Ref.6) - sugere que a interação dos candirus com seus hospedeiros pode ser mais complexa do que antes pensado.

> OBS.: O gênero Paracanthopoma possui atualmente apenas uma espécie descrita (P. parva) e várias outras pouco caracterizadas.

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   SANGUESSUGAS

          Ao contrário do "candiru", existe real e comprovado potencial de infestação na uretra humana por outro parasita: sanguessuga. Existem entre 700 e 1000 espécies de sanguessugas ao redor do mundo, das quais ~100 são marinhas, 90 são terrestres e o restante vivendo em água doce (rios, lagos, etc.). Vermes hermafroditas do filo Annelida, espécies que comumente infectam humanos incluem Dinobdella ferox, Poecilobdella granulosa e Poecilobdella viridis. As menores sanguessugas crescem não mais do que 5 mm mas podem variar em tamanho de 7 a 200 mm quando alongadas, com uma média de comprimento de 15 a 35 mm e diâmetro de 2 a 10 mm. As sanguessugas tipicamente infestam a pele dos hospedeiro, onde suga grande quantidade de sangue; algumas de maior porte podem ingerir 10 vezes a própria massa corporal em sangue dentro de poucos minutos.


          Apesar de não ser tão comum quanto a anexação à pele, sanguessugas (adultas ou jovens) também possuem o ocasional hábito de entrar em orifícios anatômicos, como uretra, ânus, vagina, ouvido, nariz e garganta (Ref.7-14). No trato urinário inferior (feminino ou masculino) e no canal vaginal, sintomas tipicamente se manifestam como hematúria e dor suprapúbica, mas quadros de retenção urinária e severa anemia (necessitando de transfusão sanguínea) podem se desenvolver. Substâncias na saliva das sanguessugas - particularmente hirudina e calina - previnem coagulação sanguínea, levando a um contínuo e perigoso sangramento. Muitas vezes ocorre expulsão espontânea da sanguessuga do orifício de entrada com o auxílio de irrigação salina (deixa a sanguessuga atordoada), mas muitos outros casos necessitam de remoção cistoscópica. 



Sanguessuga removida da área nasofaríngea de um paciente de 5 anos de idade que se apresentou ao hospital com inexplicável e contínuo sangramento nasal, além de tosse com sangue e anemia. O parasita possuía 4 cm de comprimento, e podemos notar claramente na foto o aparelho sugador bucal em uma ponta e a estrutura de sucção na outra. A criança consumia água sem tratamento em um lago próximo da sua casa, em Mekelle, na Etiópia. Zemene et al., 2022

          Portanto, uso de sunga, cueca ou calcinha para nadar é altamente recomendado para prevenir o ataque indesejado de sanguessugas na região genital (entre outros possíveis parasitas ou patógenos). Essa recomendação - e evitar locais infestados com sanguessugas - é reforçada pelo fato das sanguessugas serem portadoras de vários vírus e bactérias, incluindo ocasionalmente HIV, malária e hepatite B (Ref.15).

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> Anemia possui várias causas é estimada de afetar 2 bilhões de pessoas ao redor do mundo. Causas comuns de anemia em países em desenvolvimento incluem deficiência nutricional (especialmente de ferro), desordens sanguíneas e doenças infecciosas (parasíticas ou não). Infestação com sanguessuga é outra causa frequentemente reportada em países com baixo desenvolvimento socioeconômico, onde acesso a água tratada é limitado.

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REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS

  1. Nseyo et al. (2015). Fri-03 Candiru: The 'Urethral Invader' Fish - Myths and Facts. The Journal of Urology. Vol. 193, No. 4S. https://doi.org/10.1016/j.juro.2015.02.481 
  2. Irmgard L. Bauer, PhD, DrIntlHlth, (2013). Candiru—A Little Fish With Bad Habits: Need Travel Health Professionals Worry? A Review, Journal of Travel Medicine, Volume 20, Issue 2, Pages 119–124. https://doi.org/10.1111/jtm.12005
  3. Mehlhorn H. (2014). Myth and Reality: Candiru, the Bloodsucking Fish That May Enter Humans. In: Klimpel S., Mehlhorn H. (eds) Bats (Chiroptera) as Vectors of Diseases and Parasites. Parasitology Research Monographs, vol 5. Springer, Berlin, Heidelberg. https://doi.org/10.1007/978-3-642-39333-4_10 
  4. Sazima et al. (2021). Medical importance of candiru catfishes in Brazil: A brief essay. Revista Brasileira de Medicina Tropical. https://doi.org/10.1590/0037-8682-0540-2020 
  5. https://portalamazonia.com/amazonia/candiru-conheca-as-verdades-por-tras-do-peixe-mais-temido-da-amazonia
  6. Lubich et al. (2021). A candiru, Paracanthopoma sp. (Siluriformes: Trichomycteridae), associated with a thorny catfish, Doras phlyzakion (Siluriformes: Doradidae), in a tributary of the middle Rio Negro, Brazilian Amazon. Acta Ichthyologica et Piscatoria, 51(3); 241-244. https://doi.org/10.3897/aiep.51.64324
  7. Cook et al. (2021). Urological Emergencies and Diseases in Wilderness Expeditions. Wilderness & Environmental Medicine, Volume 32, Issue 3, Pages 355-364. https://doi.org/10.1016/j.wem.2021.03.008
  8. Banu et al. (2012). Cystoscopic Removal of Leeches in the Lower Urinary Tract: Our Experience. European Journal of Pediatric Surgery, 22:311–314. https://doi.org/10.1055/s-0032-1315811
  9. Lahmini et al. (2019). A Rare Cause of Hypovolemic Shock in Prepubertal Girl: Vaginal Leech Infestation. https://doi.org/10.1155/2019/3459837
  10. Sebazungu et al. (2021). Leech Infestation in the Vulvar Region: Causes of Vaginal Bleeding in a Six years old Child. The East African health research journal, 5(2), 142–143. https://doi.org/10.24248/eahrj.v5i2.664
  11. Agarwal  & Gupta (2021). Nasopharyngeal hirudiniasis: a hidden culprit—a case report. The Egyptian Journal of Otolaryngology 37, 68. https://doi.org/10.1186/s43163-021-00132-7
  12. Sapkota & Bhatta (2019). Alive leech in the airway: a case report. Journal of Society of Surgeons of Nepal, 22(1), 23–25. https://doi.org/10.3126/jssn.v22i1.28712
  13. Mansoor et al. (2016). Reach the Leech: An Unusual Cause of Hematuria. Journal of the College of Physicians and Surgeons Pakistan, Vol. 26 (2): 156-157. 
  14. Majidi et al. (2019). Pediatric Vaginal Leech Infestation with Severe Bleeding: A Case Report and Review Article. Journal of Pediatric and Adolescent Gynecology. https://doi.org/10.1016/j.jpag.2019.03.007
  15. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK518971/
  16. Lai, Y.-T. (2019). Beyond the epistaxis: Voluntary nasal leech (Dinobdella ferox) infestation revealed the leech behaviours and the host symptoms through the parasitic period. Parasitology, 1–33. 
  17. Hadjipavlou & Philippou (2015). 994 Candiru: The “urethral invader” fish – myths and facts. European Urology Supplements, 14(2), e994. https://doi.org/10.1016/S1569-9056(15)60982-4
  18. Araújo-Wang et al. (2019). Ecological interaction of a “parasitic” candiru catfish and botos (Inia geoffrensis ). Marine Mammal Science. https://doi.org/10.1111/mms.12593
  19. Zemene et al. (2022). Unusual Cause of Persistent Epistaxis with Severe Anemia in a Child. Case Reports in Otolaryngology. https://doi.org/10.1155/2022/8557755