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Por que humanos pré-históricos na Turquia produziam estatuetas de mulheres obesas?

Visão frontal e traseira da estatueta de Çatalhöyük.

- Atualizado no dia 27 de dezembro de 2025 -

          A fascinante estatueta nas fotos acima, representando uma mulher obesa sentada em um trono ladeada por duas leoas, é pré-histórica, feita há pelo menos 8 mil anos! Essa e várias outras estatuetas - feitas em sua maioria de argila - foram encontradas no sítio arqueológico de Çatalhöyük, na planície aluvial de Konya, no Centro-Sul da Turquia (Anatólia Central). Nesse local, existia um grande e sofisticado assentamento Neolítico, ocupado continuamente desde 7100 a.C. até 5950 a.C. Estima-se que chegou a ser ocupado por até 8 mil pessoas.


            Ao longo desses ~1000 anos de ocupação, no Monte Leste, a comunidade pré-histórica em Çatalhöyük parece ter mantido uma estrutura social igualitária e com sepultamentos sob o piso do lar, onde crianças e adultos que morriam eram enterrados dentro das casas ainda em uso. Os adultos geralmente eram sepultados sob plataformas elevadas do cômodo central e os subadultos (ex.: neonatos e bebês) frequentemente perto de lareiras ou sob depósitos. 

         Um Patrimônio Mundial da Unesco, o local de habitação tem sido comumente referenciado como uma das "cidades" mais antigas do mundo e possuía uma área de 13 hectares - um dos maiores assentamentos Neolíticos na Anatólia - e as construções eram feitas com tijolos de barro. Não existem evidências de edifícios públicos ou de desigualdade socioeconômica sistemática entre as casas, apesar da aparente presença de armazenamento privado de alimentos e da variação no tamanho das casas e no número de sepulturas O local traz também traços de atividades ritualísticas além dos túmulos intramurais, incluindo esqueletos pintados de vermelho e pinturas diversas nas paredes (Ref.6). 


Pinturas em Çatalhöyük. Em (A), esqueleto de um indivíduo do sexo masculino com idade entre 35 e 50 anos, com pintura vermelha no crânio, baseada em cinábrio - um mineral vermelho brilhante constituído sulfeto de mercúrio (HgS) e usado desde a Antiguidade como pigmento. É incerto ainda por que apenas alguns indivíduos enterrados eram pintados. Em (B), desenhos geométricos em uma parede. O pigmento mais comumente encontrado em Çatalhöyük é o vermelho ocre, um mineral conhecido como hematita (óxido de ferro Fe2O3). Ref.5

  

Esqueleto de uma jovem mulher, sem a cabeça/crânio, junto a um esqueleto fetal (seta preta), em um túmulo Neolítico de Çatalhöyük. A remoção do crânio era um costume fúnebre comum no local. Embora violência interpessoal é evidenciada na comunidade ao longo da história de ocupação, não existe registro descrito ou conhecido de agressão letal.

           A ocupação neolítica milenar de Çatalhöyük é subdividida em quatro fases. Essas fases apontam importantes mudanças culturais e demográficas. Entre os períodos de ocupação Inicial (7100–6700 a.C.) e Média (6700–6500 a.C.), a população aumentou gradualmente, as casas tornaram-se maiores e a elaboração simbólica no local aumentou. Durante os períodos de ocupação Tardia (6500–6300 a.C.) e Final (6300–5950 a.C.), as famílias tornaram-se mais autônomas. De 6500 a.C. até o abandono do local, os dados disponíveis sugerem maior mobilidade da população, independência econômica entre as famílias e aumento da especialização e diferenciação. No período final de ocupação do Monte Leste, parte da população migrou para uma região vizinha (Monte Oeste) que foi ocupada de 6100 a.C. até 5500 a.C., no início do período Calcolítico da Anatólia.

         Para os habitantes de Çatalhöyük, a transição para a agricultura aumentou a exposição a doenças (Ref.5). As taxas de natalidade mais elevadas levaram a um robusto crescimento populacional, com um pico de aproximadamente 3,5 mil a 8 mil indivíduos - uma população relativamente grande para a época. À medida que a comunidade crescia, as demandas por mão de obra e a necessidade de obter alimentos aumentavam. As condições de vida precárias contribuíram para a violência interpessoal, como indicado por traumatismos cranianos em esqueletos, bem como para o aumento do risco de infecção e transmissão de patógenos. As ovelhas, hospedeiras intermediárias de diversos parasitas humanos, representavam uma grande preocupação para a saúde pública. O consumo abundante de carboidratos vegetais, bem como de pão e mingau, levou a problemas dentários. A cultura material, incluindo pinturas murais e estatuetas, ilustra a evolução de uma sociedade complexa, e os túmulos ancestrais sob os pisos das casas atestam um forte senso de comunidade, tornando o local mais do que um simples assentamento.

 

Assentamento no Monte Leste. Em (A), reconstrução artística do assentamento principal de  Çatalhöyük e a paisagem associada. Na época, quando humanos modernos (Homo sapiens) primeiro se estabeleceram em Çatalhöyük, o lugar era uma planície alagada, com clima úmido e chuvoso. Nesse sentido, uma abundância de recursos alimentares era naturalmente disponível, incluindo peixes, aves e ovos. Nas áreas mais secas, agricultura era praticada. Os agricultores e criadores de animais em Çatalhöyük se alimentavam de cevada, trigo, ervilhas, ervilhaca, carnes bovina e caprina, além de iogurte ou queijo do leite coletado dos animais domesticados. Em (B), ilustração com detalhes arquitetônicos das casas. (Ilustrações: John Swogger). Ref.3-4

          Apesar das doenças e outras dificuldades que acompanharam a evolução do assentamento, evidências bioarqueológicas sugerem uma população geralmente saudável, dado o grande número de sepultamentos de subadultos nas casas, indicando alta fertilidade. A agricultura e a pecuária eram as principais fontes de subsistência em ambos os montes (leste e oeste), embora a caça de animais selvagens também tenha continuado e se refletisse fortemente no simbolismo de Çatalhöyük (ex.: pinturas). 


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            O significado simbólico da figura feminina obesa em um trono (estatueta referenciada no início deste artigo) é incerto. Pesquisadores sugerem uma divindade - culto de uma Deusa Mãe - ou um símbolo de fertilidade. É difícil elucidar o pensamento simbólico de antigos humanos em um contexto pré-histórico. Aliás, foram reveladas várias outras estatuetas femininas similares no local, como exemplificado na foto abaixo. Seria indício de uma sociedade matriarcal?


          Um estudo publicado na Science (Ref.5) analisou amostras genéticas extraídas de ossos e dentes de 131 indivíduos enterrados em 35 casas de Çatalhöyük e encontrou evidência de que a linhagem materna conectava de forma dominante os membros dessas moradias. Os autores do estudo estimaram que em 70 a 100% das vezes as filhas permaneciam nas casas, enquanto que os filhos adultos saíam de casa para estabelecer famílias em outros lugares (matrilocalidade). Além disso, análise arqueológica dos túmulos revelou que bebês e crianças do sexo feminino enterrados recebiam 5 vezes mais oferendas (ex.: adornos ou artefatos de ossos, chifres e pedras) do que aqueles do sexo masculino. O estudo também apontou que adoção tornou-se uma prática cada vez mais comum com o passar do tempo: grupos de bebês sem parentesco genético enterrados na mesma casa - talvez espelhando as diferentes fases de ocupação em Çatalhöyük, mas persistindo a prioridade nas linhagens femininas.  
          Essa é a primeira evidência direta de práticas centradas no sexo feminino no Sudeste Asiático do Neolítico e nas primeiras sociedades humanas agrícolas. A maior influência feminina pode talvez ajudar a explicar por que o desenvolvimento de estratificação social foi prevenido na comunidade de Çatalhöyük, contribuindo para o estabelecimento de relações mais igualitárias. Por outro lado, é incerto a relevância das estatuetas de mulheres obesas para as funções e papéis de gênero na comunidade, já que aparecem apenas de forma tardia em Çatalhöyük. É também incerta a extensão do poder de voz e de liderança das mulheres dentro das casas e de outras esferas sociais.

> Ainda mais interessante é apontar que há mais de 30 mil anos, pesquisadores revelaram uma figura muito similar (Vênus de Willendorf) na Áustria; uma tendência que persistiu no Paleolítico. Fica a sugestão de leitura: Mistério pode ter sido resolvido sobre a origem dessa estatueta feminina de 30 mil anos atrás


REFERÊNCIAS

  1. http://users.stlcc.edu/mfuller/catalhuyuk.html
  2. https://student-journals.ucl.ac.uk/pia/article/id/1375/
  3. https://www.catalhoyuk.com/book/export/html/54
  4. Hendy et al. (2018). Ancient proteins from ceramic vessels at Çatalhöyük West reveal the hidden cuisine of early farmers. Nature Communications 9, 4064. https://doi.org/10.1038/s41467-018-06335-6
  5. Larsen et al. (2019). Bioarchaeology of Neolithic Çatalhöyük reveals fundamental transitions in health, mobility, and lifestyle in early farmers. PNAS, 116 (26) 12615-12623. https://doi.org/10.1073/pnas.1904345116
  6. Schotsmans et al. (2022). New insights on commemoration of the dead through mortuary and architectural use of pigments at Neolithic Çatalhöyük, Turkey. Scientific Reports 12, 4055. https://doi.org/10.1038/s41598-022-07284-3
  7. Yüncü et al. (2025). Female lineages and changing kinship patterns in Neolithic Çatalhöyük. Science, Vol. 388, Issue 6754. https://doi.org/10.1126/science.adr2915