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Existem ainda geleiras na Venezuela?

Figura 1. No Pico Humboldt (elevação à direita), a 4942 metros de altitude, é onde está localizada a última geleira da Venezuela, pelo menos até o ano de 2020. A foto acima foi tirada antes de 2019. É provável que hoje não existam mais geleiras na Venezuela.

- Atualizado no dia 2 de junho de 2023 -  


           Julho de 2023 quebrou o recorde como o mês mais quente desde o início dos registros históricos. No geral, a temperatura média superficial global ficou acima de 1,54°C acima da média pré-industrial para o mês (Ref.1). O ano de 2023 como um todo foi o mais quente desses registros e a temperatura média alcançou +1,4°C em relação ao pré-industrial e +1,2°C em relação ao período de 1951-1980, e este ano provavelmente vai ser ainda mais quente (Ref.6, 9, 13). O excesso de gases atmosféricos de efeito estufa emitidos pelas atividades humanas - responsável pelo aquecimento global antropogênico (1) - está aquecendo de forma muito acelerada a superfície do planeta (oceanos, continentes e atmosfera) e alimentando eventos climáticos e temporais extremos, assim como rápido degelo da criosfera (ex.: geleiras e calotas polares) (2). Nesse último ponto, as geleiras nos trópicos - massivos corpos de gelo presentes em regiões montanhosas - estão sofrendo um grande impacto e desaparecendo a uma taxa extremamente rápida.

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Para mais informações:


           Em especial, as geleiras nos Andes - uma extensa cadeia montanhosa aqui na América do Sul - vêm sendo reduzidas dramaticamente devido ao aquecimento global nos últimos 100 anos, particularmente nas regiões tropicais. E desde a década de 1950, a média de retração das geleiras Andinas é maior do que a média global, com notável aumento após a década de 1970. Várias geleiras nos Andes Tropicais já desapareceram (foram "extintas") e várias outras são esperadas de serem extintas nos próximos anos. Entre 2001 e 2018, houve uma perda de ~1 gigatoneladas/ano de massa de gelo nas geleiras dos Andes Tropicais, acompanhando uma aumento na temperatura superficial do ar de 0,3°C/década desde 1980, particularmente em altas elevações. 

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> Segundo estudo do MapBiomas (Ref.10), analisando dados de satélites entre 1985 e 2021, as geleiras dos Andes amazônicos, que fornecem água para milhões de pessoas e alimentam as nascentes dos grandes rios da região, perderam 46% de seu gelo no período analisado. Um estudo prévio, conduzido por cientistas do MapBiomas e publicado no periódico Sensing Remote (Ref.11), havia encontrado que no período de 1985 até 2020, cerca de 42% da área total de geleiras havia sido perdida nos Andes Amazônicos. Esses e outros estudos nos últimos anos vêm também mostrando que os massivos incêndios florestais na Amazônia estão contribuindo significativamente para o degelo acelerado das geleiras Andinas, através da produção de carbono preto (sólidos na fuligem de fumaça) que escurecem o gelo, aumentando a absorção de radiação solar e, subsequentemente, o aquecimento local (Ref.12).

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            Cerca de 70% das geleiras tropicais estão localizadas no Peru, e nessa região a perda têm sido também assustadora e ameaça boa parte da população, porque inúmeras pessoas dependem do gelo nos Andes Peruvianos para sobreviverem (fonte primária de água fresca). É estimado que houve uma perda de 48% de área glacial no Peru entre 1962 e 2021 (Ref.2). Geleiras tropicais nos Andes representam uma essencial fonte de água para milhões de pessoas, especialmente ao armazenar água que alivia períodos de seca. Além disso, possuem importante valor cultural para vários povos.

           No Norte Andino, várias geleiras são esperadas de desaparecer ainda neste século, e é provável que todas desapareçam até 2050. E nessa região, temos o exemplo mais dramático: a Venezuela é o primeiro país do mundo que provavelmente já perdeu todas as suas geleiras devido ao aquecimento global antropogênico, ou está muito próximo de se tornar a primeira nação pós-glacial nos Andes. Em 2020, um estudo revelou que apenas uma geleira na Venezuela ainda resistia (no Pico Humboldt), mas restando apenas 0,045 km2 da sua extensão original (quase 99% de redução da área) (Ref.3). Alguns cientistas inclusive já consideram que a Venezuela não mais possui geleiras (Ref.4). Um estudo publicado em 2022 no periódico Scientific Data (Ref.5) não detectou nenhum movimento de qualquer massa de gelo remanescente na Venezuela.


Figura 2. A geleira La Corona, cobrindo os picos Humboldt e Bonpland (sobre o Pico Espejo), em 1910 (a) e em 2013 (b). A face noroeste do pico Bolívar em 1910 (c) e já sem geleira em 2020 (d). Ref.3

Figura 3. Geleira sobre a região do Pico Espejo, na Venezuela, em 1925 e em 2019, durante um período sem cobertura de neve, apenas persistindo uma pequena geleira no Pico Humboldt. Ref.3

            Entre 1952 e 2019, ~98% da área glacial na Venezuela desapareceu (de 2,317 km2 para 0,046 km2), com uma taxa de retração máxima de -16,9% entre 2016 e 2019.

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> Cordilheira dos Andes é uma vasta cadeia montanhosa, formada por um sistema contínuo de montanhas ao longo da costa ocidental da América do Sul, sendo a formação geológica da mesma data da do período Terciário. Ela possui aproximadamente 8000 quilômetros de extensão e é a maior cadeia de montanhas do mundo (em extensão), e em seus trechos mais largos chega a 160 quilômetros do extremo leste ao oeste. Sua altitude média é de ~4000 metros e seu ponto culminante é o pico do Aconcágua com 6962 metros. A Cordilheira dos Andes se estende desde a Venezuela até a Patagônia, atravessando toda a América do Sul, caracterizando a paisagem do Chile, Argentina, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela.

> Geleiras, assim como o granito, são um tipo de rocha. O gelo da geleira é na verdade uma rocha formada por um único mineral, no caso, a forma cristalina da água (H2O), gerada através do metamorfismo de dezenas de milhares de flocos de  neve individuais em cristais de gelo bem maiores e mais densos. O peso associado à massa crescente de gelo acumulado é responsável pelo metamorfismo. Geleiras são classificadas pelo tamanho, localização e regime térmico (ex.: polar, temperado, tropical) e são indicadores sensitivos de mudanças climáticas.

> Nos Alpes Europeus, a perda de massa das geleiras também é notável e aumenta a cada ano. Um exemplo bem estudado é a geleira Hintereisferner, nos Alpes de Ötzal, Áustria, a qual vem sendo continuamente monitorada desde 1952. As significativas e rápidas perdas de massa dessa geleira ao longo das últimas décadas representam outro claro sinal do avanço do aquecimento global antropogênico (Fig.4). É estimado que em 10 a 20 anos metade da massa de Hintereisferner será perdida (Ref.7).

Figura 4. Vista de Hintereisferner em 23 de junho de 2018 (à esquerda) e no dia 23 de junho de 2022 (à direita). O ano de 2018 já era considerado um péssimo ano para o balanço de massa dessa geleira, e piorou dramaticamente em 2022. Ref.8

> Em regiões frias, o aquecimento global antropogênico está substituindo neve por chuva, reduzindo drasticamente o armazenamento de água sólida no inverno e ameaçando um crítico suprimento compensador de água para populações no Hemisfério Norte durante períodos de precipitação variável (Ref.14).

> Além de enormes impactos no ecossistema e ameaça aos recursos hídricos de várias populações, o massivo derretimento de geleiras pode trazer de volta ao ambiente vários seres patogênicos preservados por milhares de anos no gelo. Entenda: Aquecimento global está liberando antigos patógenos presos no gelo potencialmente muito perigosos

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REFERÊNCIAS

  1. https://www.nature.com/articles/d41586-023-02552-2
  2. Taylor et al. (2022). Multi-Decadal Glacier Area and Mass Balance Change in the Southern Peruvian Andes. Frontiers in Earth Science, Volume 10. https://doi.org/10.3389/feart.2022.863933
  3. Resler et al. (2020). The end of the eternal snows: Integrative mapping of 100 years of glacier retreat in the Venezuelan Andes. Arctic, Antarctic, and Alpine Research, Volume 52, Issue 1. https://doi.org/10.1080/15230430.2020.1822728
  4. https://link.springer.com/article/10.1007/s42398-021-00184-8
  5. Vries et al. (2022). Glacier thickness and ice volume of the Northern Andes. Scientific Data 9, 342. https://doi.org/10.1038/s41597-022-01446-8
  6. Li et al. (2023). Record-breaking High-temperature Outlook for 2023: An Assessment Based on the China Global Merged Temperature (CMST) Dataset. Advances in Atmospheric Sciences. https://doi.org/10.1007/s00376-023-3200-9
  7. Voordendag et al. (2023). Brief communication: The Glacier Loss Day as an indicator of a record-breaking negative glacier mass balance in 2022. The Cryosphere, Volume 17, Issue 8. https://doi.org/10.5194/tc-17-3661-2023
  8. https://www.uibk.ac.at/de/newsroom/2022/negativrekord-gletscherbilanz-rutscht-immer-fruher-ins-minus/
  9. https://www.nature.com/articles/d41586-023-02995-7
  10. https://brasil.mapbiomas.org/2022/12/02/amazonia-perdeu-97-de-sua-vegetacao-natural-em-37-anos/
  11. Moreno et al. (2022). Mapping Three Decades of Changes in the Tropical Andean Glaciers Using Landsat Data Processed in the Earth Engine. Remote Sensing 14(9), 1974. https://doi.org/10.3390/rs14091974
  12. Magalhães et al. (2019). Amazonian Biomass Burning Enhances Tropical Andean Glaciers Melting. Scientific Reports 9, 16914. https://doi.org/10.1038/s41598-019-53284-1
  13. https://www.nasa.gov/news-release/nasa-analysis-confirms-2023-as-warmest-year-on-record/
  14. Han et al. (2024). Streamflow seasonality in a snow-dwindling world. Nature 629, 1075–1081. https://doi.org/10.1038/s41586-024-07299-y